Heero POV

Sei que estou quase abrindo um buraco no chão com o meu andar, mas não posso evitar em ficar apreensivo, ainda mais quando ninguém me informa nada. E eu detesto ficar mal informado.

Sally prometeu que me avisaria se qualquer coisa acontecesse, mas já se foram duas horas e até agora nada. E eu tenho certeza que um procedimento desse tipo não é tão demorado assim, a não ser que alguma coisa tenha saído errada.

-Heero… - ouvi a voz de Quatre ecoar ao longe no turbilhão de pensamentos dentro do meu cérebro, e me virei para encarar um par de olhos azuis confortadores e preocupados. Quatre, sempre doce, sempre preocupado, sempre companheiro. Trowa era um homem de sorte. Sim, Trowa, pois finalmente esses dois resolveram sair, como Duo diria, "do chove e não molha". Duo, pensar em Duo fazia uma dor surgir em meu peito. Fazia seis anos que ninguém tinha notícias de Duo. Meses depois do meu casamento ele encerrou qualquer contato comigo, mas fiquei sabendo pelos outros que ele ainda mantinha contato com eles. Mas, um tempo depois, ele encerrou a comunicação com os outros pilotos e também sumiu. Claro que tentamos procurá-lo! Mas quantos Maxwell vocês acham que existem nas Colônias e na Terra? E quem garante que ele esteja usando o nome dele?

Ainda não entendo o porquê de ele ter desaparecido, mas acredito que ele se estivesse com algum problema, ou precisasse de ajuda, ele nos procuraria. Ao menos é o que eu acho. Mas isso não muda o fato de que eu gostaria que ele estivesse aqui do meu lado há essa hora, no dia mais importante da minha vida. Queria ter o meu melhor amigo ao meu lado no dia em que eu seria pai.

Duas horas e meia, Relena estava dentro daquela sala de cirurgia há duas horas e meia, e eu já estava ficando com medo. Algo estava errado, só poderia ser. E eu creio que nem eu, nem Relena, suportaríamos uma nova perda. Esse bebê já era a nossa quarta tentativa de filhos, e era um milagre ele ter chegado tão longe na gestação. E por mais que Relena insista, eu ainda não posso evitar em me culpar por toda a dor que passamos durante esses anos por causa dos bebês perdidos.

O fato é que, além de o meu fator Rh não combinar com o de Relena, sendo o meu positivo e o dela negativo, o que faz o bebê ser sempre positivo e rejeitado pelo corpo da mãe, as experiências que o Doutor J fez em mim quando eu era soldado, alterou por demais o meu dna de modo que um útero normal não é forte o suficiente para suportar uma combinação de genes minha com o de outra pessoa. Por isso eu estou nesse estado de nervos, porque dessa vez a gravidez conseguiu chegar a um estágio onde a criança se forma completamente. Porém, Sally, a nossa médica porque nos ajudou na guerra e entende a estrutura de um piloto Gundam como ninguém, não quis arriscar esperar até o nono mês, forçando um parto prematuro antes que o corpo rejeitasse a criança novamente.

-Heero, fique calmo. – Wufei apoiou uma mão em meu ombro e eu por um momento considerei em pedir que ele entrasse na sala de cirurgia para saber como estão as coisas. –Sally é uma ótima médica, e você sabe disso. – falou em um tom firme, como se me desafiasse a discordar de que a Srta. Po, quero dizer, a recente Sra. Chang, não fosse boa o suficiente para salvar a minha mulher e o meu filho.

-Eu sei, eu sei. – soltei um suspiro derrotado e deixei o meu corpo cair no sofá da sala de espera. Eu odiava esperar.

Três horas, quando completou três horas de cirurgia, Sally reapareceu na sala, retirando a máscara e as luvas, com um ar cansado. Levantei rapidamente, não dizendo nada, apenas olhando para ela e transmitindo as minhas dúvidas através do meu rosto. Os anos me fez ficar mais expressivo. Embora às vezes, para poder me proteger de choques e adversidades da vida, eu escorregasse para o módulo soldado perfeito. Porém, esse não era o momento de ser a cubo de gelo que eu fui um dia.

-Venha Heero. – foi tudo o que ela disse para mim, começando a andar. A única coisa que pude fazer foi acompanhá-la para onde quer que ela esteja me levando.

Paramos em um corredor da área pediátrica do hospital e ela me apontou uma vitrine, pela qual olhei.

-A incubadora no canto esquerdo da sala. – olhei na direção indicada e vi uma enfermeira aplicando injeções nos tubos que se ligavam a um pequeno bebê, de aparência frágil, dentro da redoma. –É a sua filha Heero. – algo entalou na minha garganta diante dessas palavras. Minha filha, eu era… pai. –Relena passa bem, já foi levada para o quarto para se recuperar. Meus parabéns Yuy. – mal ouvi o que ela disse para mim, ainda fascinado pela criaturinha dentro da incubadora, com os olhos cobertos e os braços e pernas magros mexendo-se no ar. Ela parecia tão frágil, mas ao mesmo tempo transmitia uma força tão grande… Resolvi chamá-la de Audrey.


Duo POV

Segurei Nathaniel com mais força em meus braços, apoiando a sua cabeça em meu ombro esquerdo e o ninando, enquanto ele dormia em meu colo. Ao mesmo tempo em que fazia isso, andava de um lado para o outro na sala de espera do hospital, que se tornou tão familiar no último ano. Já era quase uma rotina eu cruzar com Nathan esses corredores. Olhei para o relógio na parede da sala e vi que eram duas da manhã.

Cansado, sentei na cadeira mais próxima e ajeitei meu filho em meus braços. O corpinho de seis anos dele remexeu um pouco e se encolheu contra o meu peito, provavelmente em busca de calor. Ele não deveria estar aqui, hospital não era lugar para crianças, mas ele insistiu tanto em querer estar ao lado da mãe nesses últimos momentos. Sim, últimos momentos. Apesar de novo, Nathan era esperto o suficiente para saber que estávamos perdendo a Hilde. A leucemia estava levando a minha maior aliada, companheira e amiga. E estava levando a única mãe que o Nathan conheceu em sua curta vida.

Joguei a cabeça para trás, soltando um suspiro e mirando o teto branco da sala. Se ao menos tivéssemos percebido mais cedo, haveria uma chance de salvação. Mas quando nos demos conta de que o que Hilde estava sentindo não era gripe, já era tarde, a doença estava em um estado muito avançado e a luta contra ela tornou-se mais difícil. Eu testemunhei a minha amiga definhar, sofrer, encarar sessões de quimioterapia, esperar por um doador, durante esse ano inteiro. Todo o capital que adquiri com a minha pequena empresa de softwares foi direcionado ao tratamento dela. Claro que Hilde insistiu para que eu não me desse ao trabalho, mas eu não deixaria a mulher a quem devo a minha vida e de meu filho morrer, não sem antes lutar, e muito!

-Sr. Maxwell? – abaixei a cabeça e mirei o Dr. Jones. Certo que essa não era a especialidade dele, mas o homem trabalhava ao lado de Hilde desde que ela se formou, e eu sei que ele a considerava uma filha. E com certeza, junto comigo, ele foi o que mais lutou para poder salvar a vida dela.

-Sim? – tentei demonstrar força, mas creio que não tinha mais isso. Quando as coisas ficavam ruins ou desesperadoras, eu sempre tirava as minhas forças de Hilde, ou de Nathan. Com uma das minhas fontes partindo, eu me sentia cansado demais para parecer forte.

-Ela quer te ver. – ele falou em um sussurro e eu assenti com a cabeça, me erguendo da cadeira. No meu colo, Nathan acabou despertando com o súbito movimento.

-Papai? – seus grandes olhos azul-violeta me olharam por debaixo da rebelde franja castanha escura que ele possuía. Algo que ele tinha herdado de Heero, entre outras coisas.

-Vamos ver a mamãe Nathan. – sorri para ele, tentando confortá-lo, mas nem eu mesmo tinha conforto, e comecei a caminhar em direção ao quarto onde Hilde estava internada.

Ao entrar no quarto encontrei uma cena nada animadora. Hilde estava deitada na cama, magra, pálida, com um lenço colorido, contrastando com a roupa do hospital, cobrindo a cabeça sem cabelos. Parecia tão frágil, tão diferente da mulher que há anos atrás estava me ajudando a trazer Nathan ao mundo. Me senti miserável diante da minha incapacidade de poder mudar o destino dela. Ela não merecia isso, não ela, que dentre todas as pessoas que eu já conheci, foi a mais maravilhosa.

-Hei bonitão. – a voz dela não era mais que um sussurro, mas o belo sorriso ainda estava no rosto magro, e os olhos ainda brilhavam apesar de tudo.

-Mamãe! – Nathan remexeu-se em meus braços e eu o coloquei no chão. Rapidamente ele correu para o lado dela, subindo na cama e a abraçando como podia, sem desconectar as máquinas que estavam ligadas a ela.

-Meu anjinho. – pude ver as lágrimas brotarem nos olhos azuis. Hilde sempre se emocionava cada vez que Nathan a chamava de mãe, mas creio que fui eu que mais chorei quando ele me chamou de papai pela primeira vez. E sempre que podia Hil ficava me provocando por causa disso, dizendo que eu estava me tornando um coração mole. Bem, eu sempre fui um coração mole, apenas não deixava isso transparecer muito porque precisava de um pouco de controle sobre as minhas emoções se queria ter sucesso em minhas antigas missões.

-Mamãe, quando a senhora vai voltar para casa? – ele perguntou, escondendo o rosto na curva do pescoço de Hilde. Senti o coração apertar diante da pergunta tão inocente. Nathan ainda possuía esperanças, enquanto a nossa já estava esvaindo. Hilde me olhou por cima dos cabelos castanhos rebeldes, e eu vi o medo no olhar dela. Não o medo da morte, mas sim do que deixaria para trás. Ela tinha medo de nos deixar sozinhos. Me deu um pequeno aceno negativo de cabeça e eu percebi que era hora de Nathaniel sair do quarto.

-Nathan… - chamei e ele ergueu a cabeça para me olhar com curiosidade. Caminhei até a cama e o tirei dela pela cintura. -… porque não vai ficar um pouco com o Dr. Jones lá fora? Eu preciso conversar com a mamãe. – ele assentiu e saiu de meus braços, correndo porta afora.

-Duo… - novamente a voz fraca e eu senti meus olhos arderem.

-Hil… - sentei ao lado dela na cama e segurei sua mão entre as minhas.

-Duo… você… vai contar a verdade para ele? – essa conversa de novo não. Eu não queria discutir com ela sobre isso novamente, ainda mais nesse momento.

-Hilde… nós já falamos sobre…

-Duo! Ele tem o direito de saber.

-Saber? Como eu vou contar para uma criança de seis anos que a mãe dele não é a mãe dele?

-Nathan é inteligente Duo, e agora que a ciência evoluiu… o fato de ele… - ergui uma mão a interrompendo bruscamente. Eu não queria ouvir sobre isso. A maldita ciência tinha evoluído o suficiente nos últimos anos para pesquisas começarem a surgir sobre gravidez masculina, para assim casais gays terem a possibilidade de terem os seus próprios filhos. Claro que por detrás dessa evolução ainda tinha muita burocracia e luta de grupos conservadores contra esse assunto, mas ainda sim as pessoas hoje em dia eram muito mais receptivas em relação a isso do que há séculos atrás. E o fato dessa pesquisa estar começando a ser posta em prática, não faz mais do meu Nathan uma raridade no mundo. No entanto, a ciência não tinha evoluído o bastante para salvar a vida de Hilde.

-Não quero saber sobre isso. Não quero ouvir sobre isso.

-Mas Duo…

-Estamos bem assim, Hilde. Por que você quer mudar tudo logo agora?

-Porque ele tem o direito de saber.

-Ele é só uma criança.

-Eu não estou falando do Nathaniel e você sabe disso! – outro assunto que sempre gerou discussão. Heero. A cada dia que passa Nathan está ser tornando mais parecido com Heero. Não falo apenas fisicamente, pois ele é uma mistura de nós dois, assim como não falo somente de personalidade, mas sim internamente. Merda, eu sempre soube que o Soldado Perfeito não era apenas perfeito por causa de treinamentos físicos e mentais, mas que ele também serviu como rato de laboratório para o Dr. J. Creio que todos os pilotos serviram de experiência para os seus respectivos superiores. Uns mais, outros menos. E eu acho que Heero foi o que mais sofreu, claro se você desconsiderar o fato de que eu sou o primeiro homem da história a ficar grávido. E por causa dessas experiências, meu menino estava apresentando um quadro muito interessante… ele estava se tornando… perfeito.

Nathan tinha um sistema imunológico mais resistente que o normal. Um raciocínio rápido e elevado demais para alguém tão novo. Descobri isso quando com quatro anos, ele pegou o meu laptop para brincar e conseguiu penetrar no sistema de defesa de um programa que eu estava fazendo para um laboratório farmacêutico. Ou quando houve uma epidemia de catapora, que afetou metade das crianças da escola dele, mas que não o afetou. Desde que era pequeno ele não contraiu uma doença. Isso e outras coisas me faziam suspeitar que o meu filho era especial demais e eu não estava a fim de compartilhar isso com o mundo.

-Não posso chegar para Heero a essa altura do campeonato e apresentar o Nathan para ele. Não seria justo com o Nathan, não seria justo com Relena, não seria justo comigo.

-Duo… - a voz dela estava cansada. –Desde que Nathan nasceu eu tenho um mau pressentimento em relação a isso…

-Como mau pressentimento? Estamos indo bem Hilde. E já se foram seis anos.

-Sim… mas ninguém nunca lhe disse que mentira tem pernas curtas? E logo você Duo, que nunca… mentiu.

-Foi por uma boa causa Hil.

-E isso será por uma boa causa Duo. Eu não quero deixar vocês sozinhos… e Nathan vai precisar dos dois pais ao lado dele. Toda criança precisa.

-Ele tem a mim Hil… ele tem a voc

-Duo… - ela sorriu calmamente para mim. -… eu estou morrendo, e você sabe disso. – era um fato, mas mesmo assim ouvir ela dizer isso ainda doía. Era como se fosse uma declaração de que nada mais poderia ser mudado.

-Então… quando você partir… teremos um ao outro.

-Duo… - ela olhou nos meus olhos, como se procurasse algo escondido em minha alma, e então sorriu. Um sorriso tão sereno e doce, que nesse momento eu soube porque ela insistia tanto que eu dissesse a verdade a Heero. Ela sabia, ela sabia que os meus pensamentos e sentimentos confusos se clarearam de acordo com os anos, à medida que eu via Nathan crescer e se parecer cada vez mais com o outro pai. À medida que eu me recordava daquela noite e das sensações que ela despertava em mim. Das lembranças de guerra, de fatos da minha vida onde a presença do japonês era sempre constante.

Ela sabia que eu amava Heero Yuy.

-Eu não posso Hilde… - murmurei, apoiando a minha testa contra a dela e deixando as lágrimas rolarem. -… eu não posso destruir a vida dele assim. Eu não posso jogar essa responsabilidade sobre ele. Eu disse a ele, no dia de seu casamento, que estava feliz por ele. E eu não posso destruir essa felicidade, por mais que me doa vê-lo com Relena, formando uma família, enquanto eu estou aqui batalhando para criar o nosso filho. E agora continuarei nessa batalha sozinho… como eu sempre fui. – falei em um sussurro, sentindo a dor em meu peito apertar, segurando a mão dela com mais força entre as minhas.

-Não estará sozinho Duo… tem o Nathaniel. E como você mesmo disse… agora vocês têm um ao outro… - ela falou com uma voz mínima e a sua respiração ficou cada vez mais fraca, até que cessou de vez. Ao meu lado, o monitor de controle dos batimentos cardíacos começou a emitir um som contínuo, mas eu não me importei. Apenas continuei na posição em que estava enquanto médicos e enfermeiras entravam no quarto para ver o que havia acontecido.

Sim, Hil… agora a gente só tem um ao outro. E assim será até o fim dos meus dias… eu espero.


Audrey - nobre força