Nathan POV

Levantei da terra fofa e molhada pela chuva da noite anterior e olhei para as flores que estavam em frente à lápide. Já fazia dez anos desde que ela se foi. E, embora minhas lembranças mais nítidas eram as da época da doença, ainda sim sentia a sua falta. Afinal, quem não sente falta da própria mãe? Sei que o meu pai também sente falta dela, mas ele prefere vir fazer as suas homenagens sozinho. Acho que é porque ele sempre gosta de conversar com ela e prefere fazer isso a sós. E eu não sei o que eles "conversam" tanto, mas seja o que for sempre o faz voltar mais animado para casa, mesmo que esse dia devesse ser um dia triste, por ser um aniversário de morte.

Bati os resquícios de terra das minhas calças jeans e olhei para o cemitério a minha volta, onde algumas pessoas passavam por entre as lápides, iluminadas pelo sol artificial da Colônia. Olhei para o teto da Colônia e soltei um longo suspiro, pensando em como seria o céu da Terra.

Eu nunca estive na Terra. Meu pai não gosta de ir para a Terra. Por um tempo pensei que era porque ele não gostava de viajar em ônibus espaciais, mas descartei essa possibilidade depois que descobri que o meu tão centrado, controlado, e carinhoso pai foi um dia um dos mais temidos, habilidosos e famosos pilotos Gundam. É, meu pai é um personagem da história terrestre e das colônias. Mas parece que ele não se importa muito com isso, porque ele não gosta de falar muito sobre a guerra, ou sobre os outros pilotos. Nunca entendi o porquê, mas parei de perguntar quando notei que o assunto o deixava chateado.

Voltei o meu olhar para o meu relógio de pulso e vi que estava na hora de ir para o hospital, onde eu era voluntário há uns dois anos. Sei que pode parecer estranho um jovem de dezesseis anos ser voluntário em um hospital de câncer, quando a maioria dos adolescentes prefere as noitadas e sair com os amigos. Eu também gosto de fazer isso, assim como gosto de ajudar pacientes e famílias de portadores de leucemia. Vi a minha mãe definhar a morrer por causa dessa doença, sei como pode ser doloroso perder um ente querido.

Sai do cemitério e entrei no carro que ganhei de aniversário do meu pai quando fiz dezesseis anos, e rumei para o Hospital de Câncer Infantil de L2. Poderia dizer, apesar de ser novo, que aquelas crianças eram a minha vida. Gostava de vê-las sorrindo cada vez que eu contava uma piada para elas, ou do modo como elas me rodeavam pedindo para eu fazer mágicas e contar histórias. Meu pai às vezes se surpreende diante da minha paciência e dedicação perante as crianças, mas eu não posso evitar. Não gosto de ver ninguém sofrendo, ainda mais quando eu presencio a dor todos os dias quando eu volto para casa.

Sim, dor. Não sei qual é o problema com o meu pai, mas tem vezes que eu o flagro olhando pela janela, os olhos com um brilho ferido, como se estivesse lamentando sobre algo há muito tempo ocorrido. Como se lamentando por um amor perdido. E eu tenho certeza que esses lamentos não tem nada a ver com a minha mãe.

Estacionei o carro na minha vaga usual em frente ao hospital e entrei no prédio, preparado para mais um dia de brincadeiras e sorrisos na vida dessas crianças.


Relena POV

O grito agudo vindo dos jardins desviou a minha atenção dos bolos enormes de papéis que estavam sobre a minha mesa. Soltando um suspiro cansado, resolvi levantar da cadeira e ver qual era a origem do grito, e caminhei até a porta da varanda que dava vista para o enorme jardim da mansão Peacecraft dentro do reconstruído Reino Sank. Sorri com o que vi no gramado.

Audrey gritava e ria ao mesmo tempo, batendo com as suas mãos pequenas nas costas largas de Heero, pedindo que ele a colocasse no chão. Porém, Heero parecia não ouvir os apelos da menina, pois continuava a carregar sobre um dos ombros, como um saco de batatas, através dos jardins, atraindo a atenção de seguranças e empregados. A cena fez todo o meu cansaço por causa do trabalho sumir rapidamente. Ver a minha garotinha sorrindo era algo extremamente raro, assim como era raro ver Heero sorrir. E somente minha filha conseguia essa façanha sobre o japonês.

Audrey era a garotinha dos olhos de Heero, a sua pequena princesinha. O meu ex-marido, sim, ex-marido, Heero e eu nos divorciamos quando nossa filha tinha apenas cinco anos – motivo? Apenas vimos que não era aquilo que queríamos. Nos casamos jovens, tínhamos um amor jovem no coração, mas era apenas isso. O amor não amadureceu com os anos e com o tempo a chama foi se apagando e tudo o que restou foi uma boa amizade, por isso resolvemos seguir com as nossas vidas separadamente. Porém, ainda bastante unidos por causa da nossa pequena. Heero ainda não era o senhor das emoções, como todo homem, embora eu tenha orgulho em dizer que junto com os outros pilotos, que se tornaram meus grandes amigos durante os anos, conseguimos quebrar o gelo que envolvia o coração do japonês. E Audrey foi o ápice dessa transformação. Ao lado dela, ele sofria uma mutação. Brigaria, mataria, morreria por ela. E por causa disso que me doía vê-lo deprimido cada vez que retornávamos de mais uma sessão de quimioterapia.

Veja bem, tivemos a benção, depois de três tentativas, de conseguir trazer Audrey ao mundo, mesmo diante de todas as dificuldades. Mas, infelizmente, nossa filha não veio muito saudável. A pouco menos de um ano descobrimos que a nossa garotinha tem leucemia, e uma corrida contra o tempo começou. Sessão de quimioterapias, internações, radioterapia, tudo para ela poder voltar à saúde perfeita.

O problema é que nenhum tratamento dá resultado, pois o sistema dela não reage. E a única salvação que nos resta é um transplante de medula. E é aí que entra o nosso desespero e o martírio de Heero. Já é raro encontrar um doador compatível fora da família, embora toda a esfera terrestre esteja comovida com o nosso drama e esteja se oferecendo para fazer os testes de compatibilidade, o mesmo acontece nas colônias, e Heero e eu não podemos tentar outro filho para ter um doador. Primeiro que as tentativas com certeza seriam falhas, e Audrey poderia não ter tanto tempo assim até a gente acertar. Mas a pior parte estava tudo no sangue, o sangue de Heero, a herança genética dele que passou para Audrey. Porque, mesmo que encontremos um doador, o organismo dela pode rejeitar o sangue "fraco". Afinal, pai e filha têm cadeias de dna que diferem dos seres humanos comum.

Os outros pilotos tentaram nos ajudar, por terem sofrido experiências em tempo de treinamento, mas nenhum teste que eles sofreram nas mãos dos cientistas mudou tanto assim a estrutura genética deles. E a nossa única opção ainda não testada era Duo, mas esse sumiu há dezesseis anos. Então, o jeito ainda era nos agarramos a qualquer fio de esperança e continuar lutando.

-Mamãe! Me ajuda! – ouvi o grito de minha filha e sai dos meus devaneios, observando a menina que se retorcia de cócegas sob o corpo de Heero, em meio a gargalhadas. –Papai está me torturando. Me ajuda mamãe! – dei um sorriso quando ela finalmente conseguiu fugir das mãos do japonês e correr para longe. Mas a fuga dela não durou muito tempo, pois ela parou subitamente e caiu de joelhos na grama. Como um raio Heero já estava ao lado dela e eu estava descendo as escadas que ligava a varanda ao jardim, para poder ver o que aconteceu.


Heero POV

Senti o meu coração vir à boca e mal percebi os meus pés tocando o chão de tão rápido que eu corri assim que vi Audrey cair. Em uma velocidade que surpreendeu até a mim, eu já estava ao lado da minha filha, a erguendo no colo e olhando para aquele rostinho angustiado e contorcido de dor. Meu peito doeu diante dessa expressão, como se a dor que ela estava sentindo, eu também estivesse sentindo. Eu odiava tudo isso. Os hospitais, as sessões de quimioterapia, as internações. Audrey era tão nova, tão alegre. O sorriso dela poderia iluminar uma sala na completa escuridão. E não era justo o que estava acontecendo. Eu tinha vontade de gritar, de bater, de atirar em alguém, culpar alguém. Mas não podia culpar mais ninguém a não ser a mim mesmo. E acima da minha pessoa, Doutor J e suas experiências malditas. Juro que se um dia nos encontramos no inferno, torturarei aquele infeliz com todas as técnicas de "persuasão" que ele mesmo me ensinou.

-Heero? – nem ouvi Relena se aproximar, e apenas notei a presença dela quando a sua mão tocou o meu braço. Ergui os meus olhos do rosto de Audrey, que se escondia dentro de meu peito, e mirei os orbes azuis da minha ex-mulher. Lá eu via o que sempre via quando nossa filha sofria uma dessas crises. Relena estava me dizendo claramente, com aquele olhar firme e decidido dela, que ela usava dentro de reuniões diplomáticas, que era para eu parar com o martírio. Que a culpa não era minha. Mas eu não podia evitar. Mesmo que ela não me acusasse de nada, eu ainda me sentia responsável.

Eu arrisquei a minha vida no passado para salvar a vida de milhares, e naquela época eu apenas seguia ordens, sem nenhum sentimento por detrás de minhas ações. Porém, agora que eu estou disposto a dar tudo, inclusive a minha vida, de boa vontade pela minha filha, eu não posso. Nada do que eu faça pode ajudar a minha menina, não sou compatível com ela. Pois ao mesmo tempo em que os nossos genes são tão parecidos, eles também se rejeitam. É como se eu fosse a composição pura e Audrey a diluída, e ambas não se misturam. Precisaria de uma outra composição diluída para poder salvar a vida da minha menina. E isso, apenas um milagre poderia resolver.

-Melhor a levarmos para o quarto Heero. Creio que chega de brincadeiras por hoje. – ela sorriu para mim, calma e tranqüila, características que ela adquiriu durante os anos como diplomata. Claro que Relena ainda era uma mulher passional, ainda mais quando o assunto era política, mas não era mais tão impulsiva como era quando mais jovem, e por muitas vezes sou surpreendido quando é ela que precisa me dar forças cada vez que a nossa filha passa mal. Deveria ser o inverso, eu deveria ser o alicerce dela e não ela o meu. Mas no momento não creio que eu tenha energia para suportar mais uma vez em ver a dor no rosto da minha filha. Assim como também sei que parte da postura corajosa de Relena é apenas fachada. Sei que essa mulher, tão poderosa para o restante do mundo, carinhosa para a filha, e companheira para mim, não suportaria perder um de seus mais preciosos tesouros. Não depois de ter perdido três filhos no processo, antes de Audrey conseguir vencer a batalha para poder viver.

Caminhamos em silêncio, lado a lado, até o quarto de Audrey, e eu a depositei na cama assim que chegamos. Relena pegou os remédios que o médico havia receitado e deu a menina, que minutos depois estava dormindo com uma expressão serena e relaxada. Nos sentamos nas cadeiras que tinham no quarto e ficamos velando o sono dela, com medo de que ela nos deixasse se saíssemos daqui.

-Heero? – desvio os olhos do rosto adormecido de Audrey e olho para Relena do lado oposto da cama.

-Hum?

-Recebi uma ligação do hospital de manhã. – senti meus músculos retesarem. Sempre detestei hospitais durante a guerra. Agora os odeio com todo o meu ser. –Eles disseram que encontraram outro compatível. – suprimi um suspiro. Não era a primeira vez que recebíamos avisos desse tipo. Sendo a filha da Ministra da Paz que estava doente, o mundo se mobilizava para ajudar. E eu nunca estive tão agradecido pela influência de Relena sobre as pessoas. Porém, por mais boa vontade que elas tenham, querer ajudar, no nosso caso, não era o bastante.

-Lena… - eu sabia que não poderia perder as esperanças, mas eu estava ficando cansado dessas viagens, partindo com as expectativas elevadas e voltando com o coração despedaçado.

-Não podemos desistir Heero. – ela levantou-se e veio até mim, ajoelhando-se em minha frente e segurando minhas mãos entre as suas. –Cada ponta de esperança tem que ser considerada. E temos que continuar insistindo. Audrey venceu a sua primeira batalha quando conseguiu nascer. E está lutando bravamente pela sua vida novamente. E temos que lutar ao lado dela, sempre fortes. Ela é uma guerreira Heero… - nisso ela sorriu para mim. -… como o pai. – não era a toa que Relena era o símbolo da paz. Apenas as suas palavras conseguiam aliviar os corações mais aflitos. E eu tive que sorrir um pouco.

-E onde fica esse possível doador?

-L2. – L2, a Colônia de Duo. Eu não ia a L2 há dezoito anos, e mesmo depois de eu entrar para os Preventers, geralmente as minhas missões eram mais terrestres. Talvez a esperança realmente estivesse no espaço.

Com isso em mente, me ergui da cadeira onde estava e sai do quarto rapidamente. Precisava preparar tudo para a minha ida a L2, porque estranhamente eu tinha a sensação de que dessa vez, a viagem valeria a pena.