Duo POV

Os canais da televisão passavam diante dos meus olhos, mas eu mal prestava atenção neles. Olhei novamente para o relógio pendurado na parede da sala e soltei um grande suspiro. Ainda faltava uma hora para Nathan voltar para casa. E essa casa sem ele parecia fria e vazia.

Joguei o controle em cima do sofá, depois de ter parado em um canal qualquer, e lancei a minha cabeça para trás do encosto, fechando os olhos. Pensar em Nathan sempre trazia uma estranha paz, e um sorriso, em meu coração. Meu garotinho estava se tornando um homem, e estava me orgulhando tanto com os seus atos e pensamentos que eu acho que eu poderia morrer amanhã realizado. Eu consegui, Hilde! Sobrevivi sem você, obrigado.

Porém, lembrar de Nathan, por outro lado, trazia uma certa dor. Dor por causa de Heero.

Nunca cheguei a contar ao meu filho que a Hilde não era a mãe dele, e que ele nasceu de mim. Nunca cheguei a contar mas às vezes eu tenho a estranha sensação que aqueles olhos, por vezes tão inocentes, mostram uma sabedoria que está além da minha compreensão. E eu tinha medo, medo por ele ter descoberto alguma coisa, qualquer coisa, ou a verdade inteira. Ter descoberto que tinha dois pais e quisesse saber quem era o seu outro progenitor. Mas então, cada vez que eu o via sorrir quando chegava em casa depois da escola, eu esquecia todas essas preocupações. Nathan ainda era uma criança, ao menos perto do que eu era na idade dele, ele ainda pode ser considerado uma criança. Já é uma maravilha o meu filho ter uma vida normal, coisa que eu não tive nem de longe, aos dezesseis anos. Mas ainda sim, as últimas palavras de Hilde ainda estão marcadas dentro de mim:

"…mas ninguém nunca lhe disse que mentira tem pernas curtas?"

Mentiras, quase toda a minha vida foi construída sobre mentiras. E elas me perseguiam.

Fui tirado dos meus pensamentos por uma chamada na tv. Voltei a minha atenção ao aparelho, pronto para trocar de canal. Tinha sem querer deixado num canal onde passava programas de fofocas. Iria apertar o botão quando algo me parou. A notícia que estava passando era sobre Relena e as novidades sobre o caso da filha dela com Heero, Audrey, eu acho que esse era o nome da menina… da irmã de Nathan.

Fiquei novamente com pena de Relena e Heero por estarem passando por isso. Sei como é doloroso, pois acompanhei toda a evolução da doença de Hilde. Mas também fiquei com inveja, porque apesar de eu ter Nathan naquela época, ele ainda era muito pequeno para ter uma compreensão completa do que estava acontecendo, embora tenha sofrido tanto quanto eu, por isso não tive tanto apoio assim enquanto via a minha melhor amiga definhar. Mas Relena tinha Heero, e sempre teria Heero. Eu tinha meu filho, e embora às vezes eu dissesse a mim mesmo que isso bastava, cada vez que olhava para aquele rosto, a cada dia mais parecido comigo e com Heero, vinha uma dor no meu coração dizendo que essas afirmações eram apenas mais uma mentira. E que eu estava sendo egoísta.

E por fim, vinha o medo. Eu pesquisei, claro que pesquisei, querendo saber como a filha do herói da Terra e das Colônias e da Ministra da Paz não tinha conseguido um doador ainda. Ainda mais quando vivia aparecendo nos noticiários que o mundo estava se mobilizando diante do drama do casal. E foi pesquisando que eu consegui entrar nos arquivos de Sally Po, que com muita surpresa eu descobri que há pelo menos sete anos é senhora Chang, e soube o porquê. Heero, era por causa de Heero. Audrey herdou a genética de Heero, assim como Nathaniel, e isso não possibilitava que ela fosse compatível com qualquer doador normal. E então o meu desespero crescia e eu rezava para Deus, o mesmo que me ajudou no passado apesar de tudo, para eles encontrarem alguém antes de descobrirem o Nathan. Porque senão, creio que o meu pequeno segredo não vai ser mais tão secreto assim.


Heero POV

Minhas mãos estão suando frio e minhas pernas não param de tremer. Nunca pensei que um vôo da Terra para L2 demorasse tanto. Ou é a minha ansiedade que estava causando a minha impaciência?

Havia jurado para mim mesmo que não alimentaria tanto as esperanças, que iria ver esse possível doador do modo mais racional possível, como algo rotineiro. Mas é difícil não elevar as expectativas quando uma luz no fim do túnel parece surgir. Ainda mais que nos últimos tempos viajar pelo mundo e pelo espaço é o que mais tenho feito.

Peguei novamente a ficha que Sally me passou, pois era ela que estava à frente do tratamento de Audrey por saber o bastante sobre a anatomia de um ex-piloto Gundam e o que isso pode afetar em seus descendentes, e comecei a reler os dados que estavam impressos na folha. Parecia que o nome do candidato era Nathaniel Maxwell… Maxwell me lembrava Duo, mas fora esse tal de Nathaniel, nunca mais ouvir falar de nenhum outro Maxwell em anos. O rapaz tinha dezesseis anos, era voluntário no hospital de câncer infantil e por isso havia se inscrito na lista de doadores para portadores de leucemia. Parece que o motivo foi pela mãe dele ter morrido, quando ele era criança, por causa da mesma doença. Então esse garoto com certeza entende o meu desespero, e eu realmente espero que ele seja útil. Na verdade, eu tenho a estranha sensação de que eu posso depositar as minhas esperanças nele.

O ônibus finalmente pousou no espaço-porto e eu peguei a bagagem de mão às pressas do compartimento de carga acima do meu assento. Queria resolver logo essa situação para ver se eu saía de L2 com um doador, ou desolado como nas outras vezes.

Aluguei um carro em uma agência dentro do espaço-porto e comecei a seguir pelas ruas da Colônia, em direção ao subúrbio. L2 havia mudado muito desde a última vez que eu estive aqui, durante a primeira guerra. Era uma colônia emergente e bem estruturada, e estava recebendo grandes investimentos para a sua evolução. Com certeza bem diferente de como era na época da guerra, ou na época em que Duo vivia nessas mesmas ruas pelas quais estou passando.

E novamente meus pensamentos se voltaram para Duo. Não sei porque. Acho que sinto mais falta dele do que poderia imaginar. Não é fácil assim esquecer do primeiro, e melhor, amigo que você teve na vida. E durante esses momentos difíceis pelo qual estou passando meus pensamentos sempre se voltam para o americano. A alegria e o entusiasmo dele seria de grande ajuda para tirar a melancolia e a tristeza do meu coração, cada vez que vejo a minha filha ser internada naquele maldito hospital para mais uma sessão de drogas na veia.

Dobrei uma esquina, entrando na rua que estava impressa nos arquivos. Diminui a velocidade do carro a fui olhando de casa em casa, procurando pelo número 102, até que eu o encontrei. Estacionei o carro e desci, olhando para a típica casa de subúrbio, branca com um jardim na frente e de cerca baixa. Algo bem familiar, como todas as casas nessa área. Abri o pequeno portão da cerca e andei pelo caminho de pedra até a porta da frente, e toquei a campanhia, ansioso pelo que iria encontrar do outro lado.

Quanto à porta da frente se abriu, levei o maior choque que poderia ter levado em toda a minha vida.

Violetas… eu estava olhando para olhos violetas… Eu estava olhando para Duo.


Duo POV

Estava com a atenção dividida entre o noticiário da tarde da tv e o novo programa que estava fazendo para um cliente que adquiri recentemente, quando ouvi a campanhia da porta tocar. Rapidamente salvei a programação no meu laptop e o fechei, o colocando em cima do sofá e caminhando em direção a porta. A abri sem o menor cuidado e sem me importar com quem estava do outro lado. Com certeza deveria ser a sra. Murphy, reclamando novamente sobre o fato de que o nosso cachorro – é, eu tenho um cachorro, e daí? – Nick, estava brincando no jardim dela novamente. Na verdade ela só gosta de me encher o saco porque é uma velha gagá.

Abri a porta para mandá-la perturbar outro, pois Nick nem estava em casa, pois Nathan foi brincar com ele no parque, quando as palavras entalaram na minha garganta. Não era a senhora Murphy que estava na minha porta, e nunca em todos esses anos eu desejei tão ardentemente que fosse ela. Na verdade, era o meu pior pesadelo parado na minha frente. Era… Heero.

Empurrei a porta para poder fechar na cara dele, mas ele foi mais rápido, como sempre, e colocou o pé na porta para impedir a minha grosseria, reflexo do meu pavor. O que inferno ele estava fazendo aqui? Por que ele estava aqui? Será que ele descobriu? Não… ele tinha uma cara mais para confusa do que para irritada. Então… Deus… Deus… acho que eu não estou me sentindo bem… acho que o quadro de hipertensão que eu tive na gravidez de Nathan está voltando… porque com certeza a minha pressão estava indo as alturas.

-Duo? – eu não podia… eu não estava pronto para encarar Heero de novo. Eu sei que já foram dezesseis anos… mas eu ainda não estava pronto merda! E não consegui responder ao chamado dele, apenas virei de costas e voltei para a sala, deixando a porta aberta em um convite mudo. A decisão era dele.

Cheguei na sala e me joguei no sofá, enfiando o rosto nas mãos. Meu coração estava ecoando em minhas orelhas e eu sabia que estava perdendo todo o meu controle. Era o meu maior medo se tornando realidade… e eu não sabia o que fazer.

-Duo? É você mesmo? – essa pergunta me surpreendeu e eu levantei o meu rosto para olhá-lo. Ele parecia surpreso em me ver e por isso eu franzi a testa. Ele não estava aqui por minha causa? Isso tudo era uma cruel ironia do destino?

-O que você está fazendo aqui Heero? – arrisquei a pergunta quando finalmente encontrei a minha voz.

-Eu vim… - ele entrou na sala e fechou a porta atrás de si, caminhando até mim e parando na minha frente. -… Sally me deu uns relatórios… - Sally? Eu estava começando a ter um mau pressentimento.–Ela me disse que tinha encontrado um possível doador… - me ergui bruscamente do sofá e passei uma mão trêmula pela minha franja. Um doador? Deus… Nathaniel. Meus piores pesadelos estavam se tornando reais. Ou talvez isso fosse um pesadelo de verdade e quando eu abrisse os olhos iria descobrir que eu dormi de novo no sofá.

-Por acaso será que eu errei de endereço? Aqui vive algum Nathaniel Maxwell? – ele olhou para mim longamente e eu dei as costas para ele, caminhando até a janela da sala para olhar o movimento na rua. A tensão era palpável no ar, ao menos de minha parte. E de algum modo, lá no fundo, eu sabia que isso aconteceria. Eu sabia que eles encontrariam meu filho na possível lista de doadores. Foi por isso que eu assinei com tanta relutância a autorização para ele entrar naquela lista, quando ele me pediu. Mas isso foi há dois anos atrás, e naquela época a filha de Heero não estava doente. Se eu ao menos soubesse que isso aconteceria…

Tá, a quem você quer enganar Maxwell? De "se" é que a vida se estrepa. Se eu não tivesse dormido com Heero eu nunca teria descoberto o que realmente sentia por ele. Se eu soubesse as conseqüências que aquela noite traria eu teria feito tudo de novo? Se eu não tivesse bebido, se eu tivesse atentado ao estado de saúde de Hilde, se eu não tivesse aceitado roubar aquele móbile suit Padre Maxwell e os outros estariam vivos. Se, se, se… SE!

-Duo? – dei um pulo de susto quando senti a mão dele no meu braço. Estava perdendo o tato. Ele se aproximou de mim sem eu nem mesmo perceber. Eu sabia que a gente estava em paz há anos, mas certos instintos de soldado não iam embora assim facilmente, ainda mais quando eu sempre tinha que ficar alerta quando Nathan era bebê para qualquer sinal de choro ou travessura.

-O quê?

-Você não respondeu a minha pergunta… Vive algum Nathaniel Maxwell aqui? – e, como se para responder a pergunta de Heero, a porta da frente da casa se abriu e uma voz bem familiar para mim ecoou na sala.

-Pai… cheguei! – e o prelúdio do fim do mundo veio com essa simples frase.