-Mal atravessei a rua e a sra. Murphy já estava me olhando de cara feia. Juro que quase fui tirar satisfações com ela, dizendo que ela está de perseguição em cima do Nick… - me virei em direção da nova voz que entrava na sala e levei um susto quando vi um adolescente com brilhantes olhos violetas e cabelos castanhos escuros entrar na casa. Quando ele notou a minha presença, piscou ainda mais os olhos, tentando entender o que eu estava fazendo ali. Mas eu estava fascinado demais para esboçar qualquer reação ou me apresentar… era quase…
Olhar para esse garoto era quase… como olhar para um espelho.
Ele tinha os cabelos iguais aos meus, castanhos escuros e rebeldes. Tinha traços em seu rosto que me lembravam muito de quando eu era jovem. Mas eu poderia ver, em cada gesto, em cada piscada de olho, em cada expressão que ele fazia, Duo. Ele era todo Duo… com mais alguém.
Meu cérebro pareceu voltar a raciocinar e ligar os pontos, como em um joguinho de jornal. Ele tinha chamado Duo de pai. Bem, eu creio que ele chamou o Duo, porque a não ser que ele tenha entrado na casa errada, Duo, além de mim, era o único outro homem aqui.
-Nathan… - ouvi a voz de Duo ao meu lado e o menino a nossa frente pareceu sair de seu transe, pois ele estava me encarando abertamente com extrema curiosidade. –Esse é Heero Yuy. – os olhos adolescentes piscaram para mim e um grande sorriso surgiu no rosto jovial. Sim, ele era filho de Duo. Com esse sorriso, não poderia ser de mais ninguém.
-Senhor Yuy! – ele pegou a minha mão entre as suas e a sacudiu entusiasticamente. –É um grande prazer conhecer o marido da Ministra, o ex-piloto do Wing… o herói…
-Nathaniel! – Duo disse com uma voz firme e tão séria que me surpreendeu. Sei que não éramos mais aqueles jovens de anos atrás, mas eu sempre pensei que Duo, não importa quantos anos passasse, sempre seria o mesmo sujeito brincalhão e alegre. Mas agora, olhando para ele, eu via uma pessoa cansada e… aquilo em seus olhos era medo? Mas ele estava com medo de quê?
-Menos… Heero está aqui para… falar sobre o fato de você ser compatível com a filha dele. – Nathaniel, então esse era Nathaniel Maxwell? Ele soltou a minha mão e o sorriso em seu rosto sumiu.
-Eu realmente sinto muito por sua filha senhor Yuy. Sei como o senhor se sente.
-Eu sei… li na sua ficha que a sua mãe morreu da mesma doença… - meus olhos se voltaram para Duo, que estava novamente sentado no sofá e escondia o rosto entre as mãos. O que havia de errado com o americano? Ele não parecia nada feliz em me ver depois de tantos anos.
Duo POV
Eu tinha vontade de me encolher no sofá e chorar, chorar como jamais chorei desde o dia que eu descobri sobre a existência de Nathan. Estava tudo terminado. Quando eles fizessem os exames para comprovar a compatibilidade, eles descobririam a verdade, e eu perderia o meu filho. E eu não poderia perder o meu filho. Ele era tudo o que eu tinha, tudo o que me restou. Era egoísmo, poderia ser, mas tudo na minha vida me foi tirado e eu não poderia permitir que mais uma pessoa que eu amo fosse levada para longe de mim. Pode até parecer melodramático, eu posso estar exagerando, mas antes prevenir do que remediar.
-Nathaniel. – levantei decidido. Eu criei essa mentira e mantive esse segredo por dezesseis anos. E levaria os dois comigo pelo resto dos meus dias, até a minha morte. –Vá para o seu quarto.
-O quê? Mas por quê? – eu já mencionei que o meu filho consegue ser mais teimoso do que eu?
-Não discuta comigo. – sei que estava sendo muito ríspido, raramente agia assim, mas às vezes precisava ser duro se quisesse impor autoridade. E só agora entendo porque algumas vezes Heero era tão grosseiro comigo durante a guerra. Tinha hora que eu poderia ser muito chato. Vi ele subir as escadas para o segundo andar com uma enorme tromba, mas não me abalei. Conhecia a minha cria, e aquela cara emburrada era só charme. Mas hoje não me dobraria, pois eu tinha uma missão a cumprir: tirar Heero da minha casa. E quando fizesse isso, eu sumiria de L2 com o meu filho.
-Duo? Por que você sumiu? E por que nunca nos disse que casou? – a voz de Heero me chamou a atenção para ele de novo. Pude perceber pelo tom que ele estava chateado por eu ter cortado relações com ele. E se Heero Yuy estava chateado, não queria nem saber como seria a reação dos outros. Já posso até imaginar aqueles olhos azuis de Quatre em cima de mim.
-Eu nunca me casei Heero. Hilde e eu não chegamos a trocar votos. – eu não precisava dizer isso, eu sabia, mas eu tinha que pregar na mente dele que Hilde era a mãe de Nathan, para não levantar nenhum questionamento. Porém, sei que falhei um pouco ao ver o olhar estranho que Heero me deu. Eu sei o que ele estava pensando, pois é a mesma coisa que muitas pessoas, que conheceram Hilde, pensam quando vêem Nathan. O japonês poderia não se lembrar muito da minha falecida amiga, mas com certeza a memória dele tinha arquivado o suficiente para ele perceber que Nathaniel não lembra em nada a suposta mãe. Maldito genes.
-Sei… - o tom dele ficou mais frio do que antes e eu tive a ligeira sensação de que estaria encarando o soldado perfeito nessa conversa. Merda! Ele está mais magoado do que eu pensei. Porque eu sei perfeitamente que Heero só entra no módulo soldado quando quer esconder alguma fraqueza ou quando não quer demonstrar que seus sentimentos foram feridos por alguém. E isso era bom, eu sabia lidar com o soldado… e se eu irritasse o soldado, ele iria embora e me esqueceria, como fez muitas vezes durante a guerra.
Nathan POV
Subi as escadas como o ordenado, pois sei que quando o meu pai adquire esse tom mandão, o melhor é não contestá-lo. Mas quando estava no último degrau, pronto para entrar no corredor que levava aos dois únicos quartos que tinha no andar superior da casa, eu parei, me virando e sentando no topo da escada, encolhendo as minhas pernas junto ao meu corpo. Daqui eu não poderia vê-los, assim como eles não poderiam me ver, mas eu podia ouvi-los e eu queria saber o que estava acontecendo.
Se o senhor Yuy estava aqui por causa da filha dele, por que o meu pai estava então agindo desse jeito? Ele foi o primeiro a me apoiar quando eu disse que queria ser voluntário no Hospital de Câncer Infantil, embora eu lembre que ele assinou com muita relutância a autorização para eu entrar na lista de doadores. Mas mesmo assim ele sempre esteve ao meu lado dentro de muitas decisões que eu tomei. Éramos uma equipe, éramos mais que pai e filho, éramos amigos. E agora ele agia desse jeito… como se não quisesse que eu ajudasse a filha do sr. Yuy. E isso era muito suspeito.
Sei do passado do meu pai, pois ele não me esconde nada do que fez durante a guerra, e até porque fica meio difícil esconder algo que está dentro de todos os livros de história moderna das Colônias e da Terra. O nome Duo Maxwell, assim como dos outros pilotos Gundam, é bem conhecido por aqueles que se interessam pela história da guerra. E eu sou uma dessas pessoas. E é por isso que eu acho estranho que o meu pai trate com tanta frieza e distância um ex-companheiro de guerra, um amigo. Ao menos eu acho que eles foram amigos, pois já encontrei várias coisas do passado do meu pai que indicasse isso.
-Então… soube sobre a sua filha. Sinto muito. – inclinei-me um pouco para ouvir mais de perto a voz do meu pai.
-Então creio que eu não preciso dizer o que vim fazer aqui. Seu filho foi indicado como propenso doador compatível. E, sinceramente, acredito que dessa vez estamos no caminho certo. – não podia saber qual era a reação deles apenas ouvindo as suas vozes. Por isso, desci um degrau. Poderia ser arriscado, eles poderiam me ver, mas eu tinha que tentar.
Sentei no primeiro degrau de descida da escada e me encolhi o máximo que pude para poder não ser detectado.
-O que você quer dizer com isso? – foi um movimento quase imperceptível, mas eu vi os ombros do meu pai tencionarem, e sei que o sr. Yuy também percebeu isso. Mas o que estava acontecendo? Nunca vi o meu pai tão tenso e nervoso em toda a minha vida. Era como se ele estivesse… escondendo alguma coisa, e alguma coisa bem grande.
Mas isso era ridículo, esse pensamento era ridículo. Meu pai não mentia, e muito menos esconde coisas… não de mim.
-Você sabe muito bem que os cientistas brincaram de Deus com a gente quando nos treinavam para a Operação Meteoro. – agora sim eu percebi claramente que algo estava incomodando o meu pai. O modo como o rosto dele se contorceu em uma quase careta, como se essa frase do sr. Yuy o afetasse mais do que ele gostaria.
-Não me diga… - sarcasmo, meu pai nunca foi sarcástico, ao menos eu nunca vi. Sei que ele às vezes pode meter medo, como uma vez que ele brigou com um sujeito no parque perto daqui de casa, pois o cara tava implicando comigo. Nunca tinha visto o meu pai tão irritado antes daquele dia. Até eu fiquei com medo, mas também fiquei fascinado com o modo como ele botou o cara para correr. Bem, eu tinha sete anos naquela época e para uma criança de sete anos, seu pai é sempre um herói. Na verdade, o meu ainda é o meu herói.
-Isso não foi divulgado na impressa para não fazerem uma novela maior do que estão fazendo sobre Audrey, mas você deve saber que a minha filha não nasceu parecida com as outras crianças…
Duo POV
Se eu sabia? Claro que eu sabia que sendo filha de Heero Yuy, a menina não seria nada normal. Bosta! Eu tinha um adolescente lá em cima, agora mesmo, que era capaz de quebrar os sistemas de defesa dos Preventers com os olhos vendados. Sem contar que ele poderia derrubar um sujeito de dois metros e cento e vinte quilos com uma mão só. Claro, óbvio, que a filha de Heero não ficaria para trás!
-E o que isso tem a ver com o Nathan? Eu vejo o noticiário Yuy. – percebi como ele ficou incomodado pelo modo formal com que eu o chamei, mas eu queria tirá-lo da minha casa, e não reatar laços de amizade. –Sei que não foram poucos os candidatos a doadores para a sua filha.
-Eu sei, mas são doadores comuns. Os outros ex-pilotos também fizeram testes, mas apesar de dois deles terem se mostrado compatíveis, ainda sim o sistema de Audrey recusa a medula deles. Já fizemos o transplante, e não durou nem um mês antes de ela ficar doente de novo. E eu sei que, depois de J, G foi o que mais brincou de cientista louco. Mas como não te achávamos em lugar algum… - eu sou uma besta sabia? Eu deveria ter sumido, eu nunca deveria ter assinado aquela merda de autorização para o Nathan. Eu deveria ter mudado de nome. Mas não, eu achei que Maxwell sendo um nome tão comum… ninguém associaria nome à pessoa. Sem contar que quais eram as chances de eles localizarem logo o meu filho na longa lista de doadores voluntários para a jovem Audrey Peacecraft-Yuy?
-Bem, eu não tenho culpa de que você é o maldito Soldado Perfeito! – eu estava sendo ignorante, eu sei. Mas me dá um tempo, eu estava entrando em desespero aqui. Era do meu filho que estamos falando. E eu sinto muito Heero meu chapa, você pode ficar furioso, magoado, o que for… mas no momento eu estou pouco me lixando para os seus sentimentos. Nathan é tudo o que eu tenho e eu sei que sem ele eu quebro, por isso me dê licença em ser um pouco egoísta e me agarrar com todas as forças à única coisa que me manteve em pé durante esses anos, enquanto eu te via feliz na tv com a Relena.
-O problema é seu se a menina não consegue um doador. Eu não tenho nada a ver com isso. – o modo como ele recuou, como se tivesse levado um soco, e o modo como aqueles olhos azuis, que sempre me perseguiram em sonhos por anos, ficaram frios como gelo, me fez ver que eu tinha cutucado uma ferida profunda. Com certeza Heero estava se martirizando pelos genes que passou a filha e que a impossibilitava de ser curada.
-Bem… - frio, frio como gelo… Deus eu me sinto um canalha. Mas o que está dito está dito, e eu não posso voltar atrás. –Pelo visto essa foi outra viagem perdida. – uma punhalada no meu coração, e foi mais dolorosa do que aquela que eu recebi no dia em que ele se casou. E isso só me fez ver uma coisa… como eu amava esse homem! –Foi um prazer te rever Maxwell. – ele deu as costas e saiu pela porta principal, a deixando aberta. Atrás de mim eu ouvi um grito e passos apressados descendo as escadas da casa.
-NÃO! – Nathaniel passou por mim como um raio, indo atrás de Heero, que já estava quase entrando no carro estacionado na calçada em frente a casa. Ao ver isso eu sabia que era tarde. Tinha acabado de perder meu filho… e não podia fazer nada para mudar isso.
Shinigami estava rindo para mim lá do Inferno por ter me tirado mais uma pessoa que eu amava.
