Capítulo 04 – No Beco Diagonal
A primeira a acordar foi Cinthia. Demorou um pouco para que se lembrasse onde estava, e foi preguiçosamente que se inclinou para ver que horas eram no relógio de pulso que deixara na mesa de cabeceira. Já passava um pouco das onze horas, mas demorou-se na cama com os olhos fixos no teto, pensando.
Desde pequenininha ela sempre acreditou em magia, mas nunca havia visto um bruxo de verdade. Pelo menos não um usando magia. Ela até tentara aprender aquela coisa de wicca, mas não era assim que ela imaginava que a magia fosse. E agora ela iria aprender magia em uma escola, e não seria como naquelas reuniões com a sua vizinha maluca. Ainda bem que seus pais iriam se mudar no verão para uma rua mais tranqüila, mas ela ia acabar perdendo a mudança.
Ficou naquela linha de pensamento por um tempo, gastando e re-gastando idéias e hipóteses sem chegar a uma conclusão, até que percebeu um barulho vindo da cama de Luciana. Cumprimentou a garota, esta ainda um pouco sonolenta, e se espantou de ver que eram 15 para meio-dia.
As duas se trocaram e esperaram por alguns minutos Aline se levantar. Mas como ela não dava sinais de estar no fim do sono, as duas lhe puxaram as cobertas, fazendo a menina praguejar.
- Que coisa! Me deixem dormir, oras!
Com um simples olhar, Cinthia e Luciana trocaram a mesma idéia, e logo a colocaram em prática. Tiraram Aline da cama e já iam arrastando-a até a porta pelo pé quando esta falou muito mal-humorada, mas fazendo força para parecer séria e não rir:
-OK! OK! Já acordei! Não precisam me jogar escada a baixo!
Quando desceram para almoçar, ainda na escada, Aline esbarrou em alguém que ia na mesma direção. Estava preste a pedir desculpas, mas assim que reconheceu quem era, teve ganas de xingá-lo na hora, não fosse um casal de visíveis bruxos que subia o lance de escadas. Mas a passagem dos dois serviu para que ela visse o motivo pelo qual se esbarraram.
- Seu Tosco burro! Olha por onde anda! Devia deixar para ler quando estivesse parado. Aliás, eu achava que você nem era capaz de ler, tamanha sua burrice!
- E eu achava que garotas metidas como você eram chatas o suficiente para não entrar em Hogwarts! Pelo visto estamos os dois enganados, mas eu estou fazendo algo útil, ao contrário do que você devia estar fazendo até agora.
Aline não conseguiu desmentir a última afirmação de Douglas, e ele captou um leve fraquejar na voz dela, sentindo que havia marcado um ponto.
- E o que o Sr. Tosco estaria fazendo de útil alem de esbarrar nos outros esperando que rolassem escada abaixo?
- Estou aprendendo as regras e história do principal jogo bruxo - Douglas mostrou o exemplar de "Quadribol através dos séculos" que vinha lendo pela escada. - Soube que Hogwarts tem um campeonato todo ano e planejo entrar no time. Claro, você não deve fazer a mínima idéia do que é Quadribol.
- Um jogo que se joga montado em vassouras e com quatro bolas. – Aline viu a surpresa estampada no rosto de Douglas, e o triunfo passou pelo seu próprio. Sentiu que voltava a estar na frente daquela discussão que, provavelmente, não daria em nada como todas as outras. - Pensa que eu fiquei parada no meio tempo que esperava vir para Londres? Pois bem, contei aos meus tios que bruxos que ia estudar em Hogwarts e adivinha o que um deles me deu: "Hogwarts uma história", uma obra interessantíssima sobre toda a existência de nossa futura escola. Você por acaso sabe a quanto tempo Hogwarts foi fundada?
- Uns quatrocentos anos, acho... - Douglas falou sem muita convicção. Não fazia a menor idéia da resposta para aquela pergunta.
- Nada mais, nada menos, que uns 1000 anos. Acho, também, que você não sabe que foram os quatro maiores bruxos da época que fundaram a escola, muito menos os seus nomes.
- Ah, pare de dar uma de metida a sabe-tudo! Pelo menos eu vou entrar para o time de quadribol e você vai ficar chupando o dedo.
- E por quê eu jogaria algo tão violento? Além disso, são quatro times de quadribol em Hogwarts, um para cada casa. Será que tem isso escrito aí no seu livro ou você simplesmente pulou um "capítulo chato" como fazia com os livros que nos mandavam ler na escola?
Douglas desanimou, mas não demonstrou. Não ia admitir que não sabia dos 4 times, e tentou uma saída evasiva.
- Então eu tenho mais chances de entrar para um dos times, já que são quatro. Agora, se você parou de se exibir, eu vou descer para almoçar como planejava antes de ser abordado pela mais irritante das criaturas.
Quando ele estava aos pés da escada, Aline ainda gritou:
- Só para você saber: os testes só podem ser feitos para entrar em UM dos times, e não é você que escolhe a casa. E os alunos só podem jogar a partir do SEGUNDO ANO!
Douglas quase tropeçou nos degraus que faltavam, mas conseguiu reunir o que lhe restava de dignidade e saiu pisando duro para as mesas.
O almoço transcorreu calmamente, ficando Douglas em uma mesa afastada das meninas, praticamente no outro canto da sala. Mal acabaram as sobremesas, Dumbledore apareceu do nada, do mesmo jeito que sumira na noite anterior. Cumprimentou as crianças e se dirigiu com elas para uma porta nos fundos do bar, que aparentemente dava para um pequeno espaço murado com nada mais que uma lata de lixo e uns matinhos a um canto. Luciana, um pouco cética quanto aquilo, soltou a língua numa pergunta que pairava na cabeça dos quatro.
- Me desculpe Sr. Dumbledore, mas... o que estamos fazendo aqui, nos fundos do Caldeirão furado?
- Ah, aqui é onde vocês poderão compra o seu material escolar todos os anos. - Ao ver a cara de ceticismo das crianças, acrescentou: - Não se preocupem, é só a entrada.
Ele contou alguns tijolos acima da lata de lixo e bateu no último com a varinha. Logo abriu-se um buraco no lugar do tijolo, que logo foi se alargando até formar uma passagem em arco bastante alta e larga, mostrando-lhes uma rua tortuosa que se perdia de vista no meio de pessoas e lojas, produtos e animais estranhos.
- Sejam bem vindos - disse Dumbledore - ao Beco Diagonal!
Cada um queria ir para uma loja diferente, mas contiveram-se ao lado de Dumbledore esperando instruções.
- Bem, primeiro sugiro que sigamos para o Gringotes, o banco dos bruxos, para trocarmos o dinheiro de vocês por galeões, sicles e nuques. Sugiro também que troquem os reais diretamente em galeões, é mais em conta do que trocar pela libra e depois em galeão.
- Eu não vou precisar trocar, diretor - disse Douglas. - Meu pai já trocou para mim ainda no Brasil. - Douglas abriu a carteira de moedas respectiva para dinheiro bruxo e deparou-se com a tal vazia. Olhou e revirou os bolsos, mas não encontrou nada em nenhum e olhou perplexo para Dumbledore. - Fui roubado! Não acredito... Fui roubado! Só pode ter sido lá no aeroporto, quando aquele cara esbarrou em mim.
Aline, esquecendo completamente que Dumbledore estava ali, pôs-se a humilhar Douglas o mais discretamente que pode.
- Só você mesmo para ser tão burro e descuidado a ponto de conseguir ser roubado. Você não tem um pingo de senso de segurança com o dinheiro, não?
Cinthia cutucou Aline discretamente e apontou Dumbledore com o canto do olho, indicando o ar de reprovação no rosto deste. Aline virou a cabeça levemente para o lado fingindo não ter visto o olhar do diretor. Este voltou-se para Douglas com um ar calmo.
- Quanto você trazia consigo, Douglas?
- Não muito. Só o suficiente para eu comprar alguns doces até chegar ao Gringotes daqui, onde ele disse que abriria uma conta para mim. Pelo menos a chave do cofre ainda está comigo.
Sem mais delongas, foram todos ao Gringotes. Aline e Douglas trocavam olhares de quem quer puxar briga, mas enquanto o "tio da barba" estivesse por perto era melhor manterem o bico fechado. Cinthia e Luciana observavam os dois lançarem esses olhares mortais com medo que um deles deixasse a prudência de lado e armasse briga debaixo do nariz do diretor. Por sorte correu tudo bem até entrarem no Gringotes, onde os dois pararam com os olhares furtivos para distrair os olhos com tudo a sua volta.
Tudo ali dentro era fantástico, sem falar nos carrinhos cheios de pedras preciosas e tesouros incalculáveis carregados pelos funcionários dali. Mas estes eram mais fascinantes que tudo ali: não eram pessoas que trabalhavam no banco dos bruxos, mas sim, veja só, duendes! As garotas os olhavam com curiosidade, mas Douglas, que já visitara o Gringotes do Brasil, considerava-os como uma parte normal do cenário. Só pelas caras que os duendes faziam ao observa-los passar, concluíram que não seria bom bancar o esperto com um deles.
Dumbledore foi até o fundo do banco, onde respectivamente se trocava dinheiro trouxa por bruxo. Assim como Douglas, Luciana também havia aberto uma conta no Gringotes londrino ainda no Brasil, mas não tinha acompanhado o pai porque este fora no seu horário de aula. Cinthia e Aline trouxeram o dinheiro para depositar na hora.
Com as chaves dos quatro cofres em mãos, um duende particularmente baixo e enfezado acompanhou-os pelos túneis debaixo da terra, onde estavam seus cofres. Dumbledore aconselhou quanto deveriam sacar, sendo que quase um quinto da quantia era extra para que gastassem com qualquer coisa que quisessem, fora Aline, que levava um terço a mais que todos como parte do presente de aniversário que seus pais haviam lhe dado.
Notaram que o diretor falava em inglês com os duendes, e apuraram os ouvidos mal acostumados para tentar entender o que diziam. De todos, Cinthia foi quem teve mais sucesso, já que o seu curso de inglês ensinava mais conversação que os outros. Quando saíram do banco, Dumbledore dirigiu-se a eles:
- Suponho que todos tenham feito um curso de inglês. - Eles confirmaram com acenos de cabeça. - É melhor assim. Dificilmente acharão alguém aqui que fale português. Só consigo falar nessa língua porque estou tomando "chá de português" que duram cerca de doze horas, mas sempre achei melhor aprender as coisa ao invés de simplesmente faze-las do modo mais prático. Fico feliz que não precisem de "chá de inglês", seria uma pena que, ao final do ano letivo, ainda não pudessem se desfazer deles. Eu mesmo vou tentar aprender português através de aulas, embora seja uma língua particularmente complicada e cheia de regras.
Aquilo só reforçava a opinião dos garotos de que Dumbledore era um grande bruxo, e de coração nobre também. Viram porque Hogwarts poderia ser considerada uma das melhores escolas de bruxaria do mundo, se não a melhor. Se sentiram honrados em estudar numa escola dirigida por aquele bruxo.
Durante o curto caminho para a loja de varinhas, Dumbledore, como que adivinhasse o pensamento das crianças, andou devagar, para que elas prestassem atenção na conversas dos outros tentando entender o que diziam. Mas mesmo andando devagar, chegaram muito rápido à loja (na opinião dos garotos). Grandes letras douradas mas descascadas anunciavam o nome dela: Olivaras.
Quando Dumbledore abriu a porta da loja, puderam ouvir um homem falar bastante entusiasmado perto do balcão. Parecia já estar de saída.
- Muito bem, Cedrico! Pelo de unicórnio e freixo; assim como a de seu avô! - Ao ouvir a sineta tocar, o homem virou-se e parou por um instante, estático, ao ver Dumbledore. Logo lembrou-se que sabia falar e cumprimentou o diretor. - Dumbledore! Que surpresa em vê-lo aqui.
- Olá, Amos. Vim, hoje, acompanhar estes jovenzinhos pelo Beco Diagonal. São estrangeiros e não conhecem muito bem a região. Embora eu ache que saberiam se virar muito bem por aí - disse ele dando uma olhada significativa para Aline e Douglas, sem dúvida os mais "língua solta" dos quatro.
- Vão entrar no primeiro ano como o Cedrico aqui? Bom, quem sabe vocês vão para a mesma casa que ele? Vão adorar Hogwarts! Foi a época que mais gostei. Mas é melhor irmos agora, precisamos comprar todo o material e não queremos atrapalhá-lo, Dumbledore. Até depois.
- Tchau, Amos.
O homem saiu com o filho apressadamente, e parecia bastante atarefado. As crianças se assustaram quando um homem, já de cabelos grisalhos e com olhos azuis muito claros, falou detrás do balcão. Já devia estar lá antes, mas só agora repararam na sua presença.
- Olá Dumbledore! Que surpresa agradável, realmente. Nunca antes havia entrado quatro estrangeiros de uma só vez aqui na loja, não todos para comprar varinhas. De que país vocês são? - perguntou Sr. Olivaras dirigindo-se às crianças.
- Do Brasil, senhor - respondeu Aline, a que estava mais perto dele.
- Ah, Brasil. Pode-se encontrar as melhores madeiras mágicas neste país. Possui uma flora excepcionalmente abundante, devo dizer. Mas, mesmo assim, uso mais as madeiras daqui. Diria que sou um tanto patriota no meu trabalho, mas produzo varinhas tão boas quanto as brasileiras.
Enquanto falava, o Sr. Olivaras deixou a fita métrica medindo o braço de Aline e foi procurar em várias caixas modelos de varinhas diferentes. Fez o mesmo com os outros três até achar a varinha que combinasse com seu dono e soltasse faíscas coloridas.
Não demorou para que cada um saísse dali com sua própria varinha, sentindo que não teria a mínima graça ser bruxo se não usassem varinhas. Aline ficou com uma de carvalho, contendo em seu interior corda de coração de dragão, de 25 centímetros; Cinthia se deu bem com uma de salgueiro com pelo de unicórnio, 26 centímetros; e a de Luciana é feita de azevinho e também de pelo de unicórnio, de 22 centímetros. E depois de experimentar uns 15 modelos diferentes, Douglas conseguiu um efeito um tanto estranho, é verdade, mas mesmo assim um resultado com uma varinha de bordo e coração de dragão, 33 centímetros.
Depois da Olivaras passaram na Madame Malkin e compraram os uniformes, e depois disso os materiais. Douglas queria também ir na loja de animais mágicos, mas Dumbledore disse que era melhor pedir permissão aos pais antes de comprar um bichinho.
Durante todo aquele vai e vem entre as lojas, Aline e Douglas esqueceram de implicar um com o outro até quando Madame Malkin teve que pegar um numero maior de vestes para Aline, por causa da largura, e quando Douglas esbarrou numa pilha de 200 exemplares d'O livro invisível da inviabilidade, alegando que não os vira. Era tanta coisa para olhar e se espantar e admirar que se esqueceram da tarefa mais básica do dia-a-dia: azucrinar a vida do outro.
No final da tarde estavam tomando sorvete na Florean Fortescue, já que lá era verão enquanto que no Brasil é inverno. Enquanto tomavam sorvetes dos mais diversos sabores, Dumbledore explicou-lhes a como chegar até o expresso através da barreira 9 ½, que Tom (o estaleiro) os levaria até a estação, e que ele mesmo os esperaria em Hogwarts. Mas, que até lá, eles ficariam n'O Caldeirão Furado, só podendo sair para o Beco Diagonal. Mas eles nem queriam mais ir para a rua trouxa, o Beco era simplesmente muito mais interessante.
Os dias que os separavam do embarque no Expresso de Hogwarts passaram rapidamente e eles se divertiram um monte, quase sem nenhuma eventual briga entre Aline e Douglas. Parecia que haviam se conformado com a idéia de estudarem juntos e evitavam se "falar" até o início das aulas, nos últimos dias em que poderiam se divertir.
