Capítulo 32 – Cinthia e mato verde

Fred e Jorge usaram o Pó de Flu especial depois de se despedirem de Douglas. Foi um pouco demorada a sensação de tontura que sentiram nessa viagem e quase caíram quando pararam de rodar, mas conseguiram se manter em pé. Pararam em frente a uma cerca que rodeava uma casinha bem rústica de madeira. Olharam para o começo do caminho que acabava no carro mas não viram nem uma placa que indicasse o nome. Era uma área bem limpa, sem mato, apenas com árvores altas despontando por todo o terreno.

Uma voz à costas deles fez com que saltassem de susto, se virando para ver quem era. Melhor dizendo, a voz vinha do alto.

- Como foi que vocês dois chegaram aqui?

Cinthia estava sentada no alto de uma árvore. A garota estava a pelo menos a sete metros do chão, e balançava as pernas despreocupadamente, como se o risco de cair simplesmente não existisse.

- Pó de Flu modificado – respondeu Fred lacônico.

- Mas eu achei que vocês iam passar um mês no Egito – disse Cinthia ainda no alto da árvore. – Tenho a assinatura do Profeta Diário.

- Resolvemos fazer uma visita para você, a Aline e o Douglas – respondeu Jorge. – Uma semana foi o suficiente para ver as coisas legais do Egito.

- Esperem um pouco que eu já vou descer.

Cinthia ia de galho em galho dando voltas na árvore, mas chegou um ponto em que ela parou, olhou para o chão a dois metros de altura e pulou, mesmo tendo mais galhos em que poderia se apoiar e descer.

- Por que não continuou escalando? – perguntou Fred indo ver se a menina precisava de ajuda, o que não foi necessário.

- Tinha um bicho-cabeludo naquele galho. Eu ODEIO bichos-cabeludos! Vocês já foram queimados por um? Eu não, mas deve ser horrível! Não custa evitar, né. – Ela falou isso muito rápido por não gostar nem de pensar em bichos-cabeludos.

- Você tem medo de bicho-cabeludo mas fica sentada lá nos galhos mais fininhos da árvore sem medo de cair? – perguntou Jorge perplexo.

- Do chão eu não passo.

- Você é maluquinha, sabia? – disse Fred. - Tá tudo bem se a gente passar uma semana aqui? Já ficamos uma semana na casa da Aline e outra na do Douglas.

- Sem problemas. Mas daqui a uns cinco dias a gente vai voltar para Curitiba. Minha mãe não gosta de ficar muito tempo longe dos cachorrinhos dela.

- Não são muito grandes, são? – perguntou Jorge receoso.

- Não. São quatro bolinhas de pelo branquinho bem pequenininhas e vão ficar alegres de receber visitas.

Cinthia abriu a cerca que rodeava a casinha e convidou os gêmeos para entrarem. Dentro era bem arrumada e aconchegante como toda casinha rústica é. Cinthia mostrou o quarto em que os dois ficariam. Era o quarto em que seus irmãos geralmente ficavam, mas agora estava desocupado.

- Seus pais não estão aqui? – perguntou Fred.

- Não. Eles deram uma saída com os cavalos para ver o terreno do lado. Acho que eles vão comprar ainda essa semana. Eu não fui junto porque a minha égua tá muito cansada. Corri muito com ela ontem.

- Não sabia que você cavalgava – disse Jorge.

- Vocês nunca perguntaram. E falando em perguntas, como é que vocês estão falando português?

- Você acabou de reparar? – disse Fred sarcástico, e Cinthia ficou embaraçada.

- Ah, não foi agora, foi agora a pouco... Não importa. É Chá de Português, não é?

- É, mas já está acabando – disse Jorge. – Usamos muito na casa da Aline, e na do Douglas também.

- Não precisam gastar enquanto estiverem aqui. Meus pais sabem um pouco de inglês. O básico, mas sabem. E o mais longe que a gente pode ir é até a cidadezinha mais próxima, mas acho que não vão precisar.

Depois que Fred e Jorge guardaram as suas mochilas no quarto, Cinthia foi mostrar a sua égua para eles, da qual tinha muito orgulho.

- O nome dela é Odara. Ela é muito inteligente. Estou ensinando ela a saltar.

Além de inteligente, Odara também era um belo exemplar da raça percheron. Forte e entroncada, com um porte elegante e o pelo bem macio e brilhante, de cor castanha clara com crina e rabo brancos.

- Os cavalos que meus pais estão usando também são meus, mas a Odara é a minha favorita. Fui eu que escolhi o nome dos dois também; Niele e Sandrinho.

- Sandrinho? – Fred achou estranho.

- Tirei os três de uma revista em quadrinhos que eu tenho. A Niele é meio maluca, adora correr sem dar um aviso prévio, e o Sandrinho é meio bobo e lento, por isso eu dei esses nomes para eles. Mas a Odara é bem calminha e obediente, né fofa? – disse Cinthia afagando Odara. – Ela não faz nada inesperado, nunca me deu um susto. Eu já caí da Niele quando ela tentou pular a cerca sem mais nem menos, e o Sandrinho é muito lento pro meu gosto. Acho que é porque ele foi castrado.

Eles ouviram um relincho à distância e, sem sair do estábulo, Cinthia o reconheceu.

- É a Niele. Eu falei que ela é meio maluca. Sempre que chega perto da casa depois de um passeio ela relincha.

Eles viram a mãe de Cinthia vir trotando até o estábulo em uma égua castanha escura com a crina preta, enquanto que mais atrás vinha o pai de Cinthia em um cavalo inteiro cinza-grafite a passos lentos. Dona Laiz chegou rápido e Niele quase derrapou quando parou. Ela era uma mulher já perto da casa dos cinqüenta, mas tinha uma energia forte e não perdia a pose em cima do cavalo. Seu Rodnei tinha a mesma idade, mas já tinha cabelo grisalho. Cinthia gostava de dizer que era prateado e elegante, estando bem perto da verdade. Cinthia foi ao encontro deles.

- Mãe, tudo bem se dois amigos meus ficarem com a gente. Eles vieram lá da Inglaterra.

A mãe de Cinthia não gostava muito de visitas surpresa, mas não se importou muito na hora. Tinha uma boa notícia para contar e por isso estava muito feliz. Não ligaria nem se Cinthia dissesse que tinha pisado na pata de um dos seus cachorrinhos (o que para ela era um crime quase imperdoável).

- Não tem problema – disse ela desmontando e indo até os gêmeos e cumprimentando-os. – Como vão?

- Bem.

- Obrigado.

- Entrem! Vou preparar um lanche para vocês.

Os quatro se viraram para entrar, mas Fred ainda falou:

- Mas e o seu pai, Cinthia?

- Não se preocupem. Ele chega antes de escurecer.

Dona Laiz serviu um bolo feito por ela mesma, e chá para os gêmeos como era de costume na Inglaterra. Para ela e Cinthia, fez café e deixou a água esquentando para quando o pai de Cinthia chegasse e fosse tomar chimarrão. Cinthia estava muito interessada para saber do terreno que os pais haviam visto e, quando seu pai chegou não esperou para perguntar.

- É bonito o terreno aí do lado?

- É maravilhoso - disse sua mãe -, mas tem tanto mato quanto este tinha antes de limparmos. Vamos deixar assim, fica mais bonito com as trilhas. Se bem que elas também precisam ser limpas, ou não vai dar para andar lá dentro.

- É maior que o nosso terreno, não é não?

- Tem três alqueires – informou Seu Rodnei, o pai de Cinthia. – E tem duas nascentes com água boa. Foi por isso que nós compramos.

- Sério? Então já é nosso? Legal! Mal posso esperar para ver as nascentes!

- Você foi lá uma vez, não se lembra?

- Eu lembro mais ou menos. Faz uns quatro anos que eu não ando por lá. Vocês querem ver as nascentes amanhã à tarde? – perguntou ela se virando para Fred e Jorge.

- E por que não – disseram os dois. Cinthia estava muito animada, e mesmo que eles dissessem 'não' ela iria arrasta-los até lá.

- Vocês vão adorar! Pelo que eu consigo me lembrar, uma das nascentes formava uma cachoeira com pouco mais de três metros de altura assim que saia da terra. É simplesmente linda! E a outra forma um riozinho cheio de pedras grandes. Essa é uma graça!

- Vocês vão precisar levar o facão para cortar o mato – disse o pai de Cinthia. – Não quer que eu vá com vocês?

Ao ouvirem isso Fred e Jorge desanimaram. Por mais que o pai de Cinthia parecesse ser um cara legal, não queriam que ele ficasse por perto vigiando o tempo todo. Mas o que Cinthia respondeu foi um alívio para eles.

- Não precisa não, pai. Eu ainda me lembro do caminho. Acho que lembro... Se eu me perder é só voltar de costas.

Logo escureceu e Laiz acendeu as luzes. Como não tinha muito que fazer do lado de fora, ainda mais com o frio que fazia, os cinco ficaram jogando baralho até tarde. Leva-o-monte! A mãe de Cinthia ganhou a maioria das vezes, e fazia uma festa sempre que batia antes dos outros. No final das partidas, Cinthia já estava ficando com sono e acabava perdendo por sempre bater por último. Algumas vezes leva-o-monte pode ser um jogo viciante, por isso eles fizeram uma pausa bem curta para a janta.

Quando finalmente foram dormir, Cinthia já estava ricocheteando mas paredes de tanto sono.

- Booo-a noite pra vocês – disse ela com um bocejo para Fred e Jorge na porta do quarto deles, que era ao lado do seu.

- Cê tá com sono, hein! – disse Fred. Os gêmeos ainda estavam bem acordados por causa do jogo.

- Eu acordei cedo hoje. A Niele tinha pulado a cerca da casa e veio na janela do meu quarto para me acordar cedinho. Quem é que precisa de galo com uma égua dessas?

- Pelo menos você não precisa de despertador – comentou Jorge.

- Por isso eu deixei o meu em Curitiba. Ah, boa noite! Senão daqui a pouco eu caio de tanto sono.

- Durma bem – disseram os dois.

Na manhã seguinte todos acordaram tarde na chácara, atrasando o café da manhã. O pai e a mãe de Cinthia ficaram em casa enquanto a menina, Fred e Jorge foram re-explorar a chácara antes do almoço. Na verdade, só um pequeno trecho dela.

- Tem uma parte bem legal. Eu costumo passar horas por lá – informou Cinthia.

Quando chegaram lá, o queixo dos gêmeos quase tocou o chão de tão surpresos que ficaram. Havia umas quinze casinhas no topo das árvores e eram ligadas por pontes de corda ou cipós. Algumas estavam muito altas, enquanto que outras estavam a três metros do chão, mas todas tinham janelas grandes.

- O meu pequeno Forte! – disse Cinthia com entusiasmo. – Que tal?

- Do balacubacu! – disse Fred. – Mas, tipo, como que a gente faz para chegar lá? – não havia nenhuma escadinha que ligasse as casinhas ao chão.

- E vocês acham que eu consegui chegar no topo daquela árvore de ontem de que jeito?

Cinthia entrou no meio das árvores e começou a subir em uma delas, a mais ramificada de todas. Chegou ao topo bem rápido e gritou para os gêmeos do alto:

- O que é que vocês estão esperando? Tem uma coisa bem legal aqui em cima. Subam logo!

Fred e Jorge tiveram um pouco de dificuldade para chegar até a casinha, mas quando chegaram lá, Cinthia já havia passado para outra árvore.

- Não consigo ver ela daqui – disse Jorge.

- Eu também não. Será que ela desceu?

Do nada, uma pinha entrou voando pela janela e acertou a cabeça de Fred. Logo outra pinha entrou de repente, e mais outra. Assim que colocaram a cabeça para fora viram Cinthia em uma casinha mais alta com um monte de pinhas nos braços.

- Vocês são lentos, hein! Fiquei esperando vocês aparecerem desde a primeira pinha. Guerra de pinha! (Já que aqui não neva, a gente tem que se virar como pode.)

- Mas não tem nada aqui dentro – disse Jorge fazendo sinal para a garota dar um tempo.

- Procure nas outras casinhas, eu não guardei munição em todas.

A única casinha que era ligada a de Fred e Jorge, com a exceção da que Cinthia estava, era ligada por duas cordas, uma para colocar os pés e outra para se apoiar com as mãos. E eles estavam a cinco metros do chão. Pode não parecer muito para quem olha de baixo, mas para quem olha para baixo, isso é muito. Fred começou a andar na corda, e Jorge não resistiu: teve que balançar a corda em que o irmão estava. Fred quase caiu e não gostou muito daquilo.

- Você quer deixar de ter um irmão gêmeo, é?

- Até que não é má idéia.

Cinthia observava os dois de cima e rolava de rir do medo que eles tinham de cair.

- Quando vocês voam nos jogos de quadribol vão muito mais alto do que isso, e ainda em movimento. Qual o perigo de uma cordinha?

- O problema é que uma corda pode arrebentar, mas a vassoura não quebra e é totalmente previsível – disse Fred assim que chegou do outro lado. Ele viu Jorge começando a passar pela corda e começou a balançá-la também, mas o outro garoto estava preparado e se segurou firme.

- Eu não teria tanta certeza assim de que as vassouras são previsíveis, e dependendo da qualidade elas podem decepcionar. E muito! – disse Cinthia num tom insinuante que quase fez Jorge cair. Quando conseguiu se equilibrar novamente e chegar na outra casinha, Jorge viu a mesma cara de espanto no irmão. Como é que ela estava falando aquilo?

- Tem pinhas nessa casinha? – perguntou ela num tom absolutamente normal.

Fred e Jorge se viraram e viram uma pilha enorme a um canto e não responderam nada. Pegaram um monte de pinhas e ficaram escondidos, esperando Cinthia colocar a cabeça para fora da casinha.

- Meninos? Vocês estão aí?

Tuk!

Uma pinha atingiu Cinthia bem na cabeça, e ela não estava preparada.

- Ah, vocês me pagam!

E a guerra de pinhas se estendeu até o almoço. Eles tiveram que trocar várias vezes de casinhas para pegar mais munição, mas quando as casinhas se esgotaram Cinthia ainda tinha um trunfo! Ela usou uma das cordas amarrada como cipó para ir até o pé de pinos mais próximo e conseguiu munição quase infinita! Fred e Jorge se revezavam em buscar as pinhas que caiam no chão enquanto o outro dava cobertura.

Cinthia parou por um instante para olhar no relógio e disse: - Pessoal! Olha a hora! Acho que minha mãe já preparou o almoço e está nos esperando.

- OK! Uma trégua então – falou Jorge.

- Eu já estou descen... - Jorge a acertou com sua última pinha. – Isso não teve graça! N/A: Então por que Fred e Jorge estavam rolando de rir? Só por isso você vai ficar aí em baixo pra aparar a minha queda – disse Cinthia descendo até os galhos mais baixos em que pôde colocar os pés. – Eu vou pular...

- Espera!

Cinthia ficou pendurada só pelas mãos no galho e pulou, caindo com um estranho barulho fofo no chão. Não estava realmente alto (1,20 m dos pés dela até o chão), e Jorge não precisava ter conjurado aquela almofada em que Cinthia caiu. Acabou gastando um feitiço a toa, mas Cinthia não reparou naquele gesto tão delicado, estava mais preocupada com ele.

- Você pode se meter em problemas por isso! Não podemos fazer magia fora da escola!

- Esquecemos de contar a ela, Fred! – disse Jorge dando um tapinha na testa, falsamente arrependido.

- Contar o quê?

- Que temos permissão para fazer 20 feitiços fora da escola enquanto estivermos aqui! – disse Fred com orgulho.

- Correção: oito feitiços cada agora que eu gastei mais um – disse Jorge. – Que desperdício...

- Eu não achei. Foi bem gentil da sua parte, e obrigada por tentar me salvar. Foi até bem cuti-cuti (cuti-cuti!?!?). Da próxima vez eu aviso que não tem perigo.

Cinthia começou a andar de volta para a casa e os gêmeos a seguiram. Fred ainda cochichou para o irmão:

- Que cuti-cuti você é! Que meigo!

- Cala a boca! – cochichou Jorge de volta.

Aquela guerrinha deu uma fome enorme nos três, o que sempre parece aumentar quando se está no campo. Sentiram um cheirinho delicioso vindo da casa ainda a alguns metros de distância e apressaram o passo.

- Não, o almoço ainda não está pronto – informou a Sra. Christino aos três esfomeados. – Como você sempre perde a hora quando vai passear ou fazer qualquer outra coisa eu demorei um pouco mais para preparar o almoço – disse ela a Cinthia, deixando a menina constrangida. – Mas não se preocupem, em quinze minutos está tudo pronto.

Do lado de fora da casa havia um banco/balanço na frente da varanda. Cinthia pegou uma almofada e se sentou. Fred e Jorge fizeram o mesmo, cada um sentando de um lado da garota. Cinthia afundou no assento e ficou embaraçada.

- Que fome! – disse ela depois de um ronco de seu estômago.

- Já ouvimos da primeira vez – disse Fred.

- Nós podíamos fazer alguma coisa enquanto esperamos o almoço – sugeriu Jorge.

- Como o quê?

- Sei lá. Andar por aí? – disse Fred.

- Daí que a gente se atrasa pro almoço.

- Hum... jogar cartas, então? – sugeriu Jorge.

- Ou montar um quebra cabeça.

- Ou contar os tijolos na parede.

- Ou fazer outra guerra de pinhas.

- Ou, antes, juntar munição para a próxima guerra.

- Ou praticar pontaria (porque você está precisando, Cinthia).

- Ou catar insetos para uma futura coleção.

- Ou... Podíamos começar com esse bicho-cabeludo do seu ombro.

Cinthia se levantou de repente com um gritinho abafado e olhou aterrorizada para o próprio ombro, para depois constatar que não havia nada lá. Fred e Jorge a olhavam inocentemente, tentando segurar o riso.

- Ou poderíamos brincar de faroeste – disse Cinthia com os dentes cerrados. - De preferência um em que a xerife enforca dois engraçadinhos que se passaram por piadistas.

- Não gostei muito da idéia – disse Fred.

- Não achei muito interessante - acrescentou Jorge.

Cinthia avançou nos dois, mas eles saíram correndo cada um para um lado. Cinthia fez uni-duni-tê e foi pela direita. Como não viu nenhum dos dois, ficou esperando atrás da casa. Logo eles apareceram de novo.

- Você viu ela? – perguntou Jorge.

- Não. Acho que a despistamos.

- Estão fugindo de alguém?

Cinthia saiu de trás da casa, mas os dois se transformaram em animais e dispararam.

- Ah, assim não vale! Eu tô com fome e sem energia pra correr atrás de vocês transfigurados. Eu perdôo vocês – ela disse, sem outra opção. - Por enquanto.

A raposa e o coiote voltaram correndo e pularam em cima da menina derrubando-a no chão. Em cada tentativa que ela fazia para falar, um deles lambia o seu rosto.

- Eca! Que nojo! – Cinthia conseguiu falar enfim.

- Cinthia! O almoço está pronto! – eles ouviram Dona Laiz chamar de dentro da casa.

- Ela não pode saber que vocês dois são animagos. Voltem ao normal, rápido!

Os garotos se transformaram em humanos novamente e ajudaram Cinthia a se levantar. Estavam nervosos, com medo de que a mãe de Cinthia tivesse visto a transfiguração da janela, e levaram um susto assim que entraram na cozinha.

- Cinthia, o que aconteceu lá fora? – perguntou Laiz.

- Hã? O quê? Por quê?

- Você está cheia de folhas e grama no cabelo e na roupa.

- Ah, isso – disse Cinthia mais nervosa do que pretendia. – É que quando eu fui descer de uma árvore acabei caindo. Não foi nada de mais, a queda foi pequena.

Cinthia não sabia mentir direito. Aliás, nunca soube, e sua mãe olhou desconfiada para Fred e Jorge (nunca que ela iria suspeitar da sua menininha), mas foi o pai da garota, que também estava na cozinha, que salvou os três.

- Da próxima vez tenha mais cuidado. Eu sempre digo que é melhor pregar escadinhas na árvore, mas você não me escuta.

N/A: Agora vocês já sabem de quem a Cinthia puxou a tapadisse. É genético!

- Tem toda a razão, pai – disse Cinthia tentando encerrar o assunto na paz. - Outra hora eu te mostro qual é a árvore que precisa de escadinha.

Assim que todos começaram a comer, o assunto foi esquecido. Dona Laiz retirou suas suspeitas, afinal, teve uma boa impressão dos gêmeos Weasley na noite anterior, durante o jogo de leva-o-monte. Até se mostrou mais gentil que o normal (como Cinthia contou aos gêmeos mais tarde) como forma de se desculpar pelo olhar ameaçador. Mas isso também se deve ao fato de que os dois não pararam de elogiar a comida dela durante o almoço, que estava mesmo delicioso.

Depois do almoço, Cinthia levou os dois para verem as nascentes como combinado. Andaram por um tempo, aproveitando para terminar a digestão, até chegarem a uma cerca de arame farpado. Cinthia abriu um espaço para que os dois passassem e logo se juntou a eles no outro terreno. Ela tirou o facão da bainha e se virou séria para os gêmeos, que ficaram levemente assustados por uma fração de segundo.

- Eu vou na frente para cortar o mato. Podem ter alguns ninhos de cobra no caminho, então não vão ficar pisando em montinhos de folha.

- Nós não somos tão leigos assim.

- Também tem mato atrás da nossa casa e sabemos nos virar.

- OK. São vocês que estão dizendo. Mas é bom que vocês saibam algum feitiço-antídoto então.

Cinthia começou a andar por uma trilha e pediu que a seguissem. Volta e meia precisava usar o facão, assustando um pouco os gêmeos com a força que usava para cortar os galhos mais grossos.

- Posso tentar? – voluntariou-se Fred assim que se depararam com mais um galho no meio do caminho.

- Tem certeza que sabe o jeito certo de fazer isso? – perguntou Cinthia receosa.

- Mas é claro!

Fred pegou o facão da mão da menina e notou que o peso era bem parecido ao de um bastão de quadribol, e só precisava de uma mão para maneja-lo. Tomou a dianteira e desferiu um golpe contra o galho, mas o facão só chegou na metade da madeira. Cinthia e Jorge tentaram não rir às suas costas.

- Use um pouco mais de força – sugeriu Cinthia ainda rindo.

Fred tentou novamente e conseguiu cortar o galho, mas não sabia que era difícil frear o facão. Quando se deu conta, o facão havia parado na terra, a dois centímetros do seu tênis.

- Ah, é isso que dá deixar um brinquedo perigoso na mão de uma criança – disse Cinthia tirando o facão da mão de Fred. – É melhor eu continuar com isso, ou você ainda provoca um acidente.

- É toda essa roupa que eu estou usando. Atrapalhou. – Essa com certeza foi a desculpa mais esfarrapada que Fred inventou na vida.

Como era inverno, eles não acharam nenhuma cobra no caminho, mas Cinthia alertou-os para uns três montinhos de folhas suspeitos. Havia algumas árvores caídas ao longo do caminho, e Cinthia disse que iriam esculpir um banco em um deles. Tiveram que pular uns quatro desses pelo caminho, e, por mais incrível que pareça, Cinthia acabou se lembrando de uma história muito engraçada envolvendo o quinto tronco. Não podia perder a chance de tirar sarro dos gêmeos e colocou a idéia em ação.

Era um tronco de pinheiro deitado com uns setenta centímetros de altura e um metro e meio de largura, e Cinthia subiu nele com cuidado. Fingiu que era muito alto e se sentou para poder descer do outro lado. Fred e Jorge não podiam perder a oportunidade de se exibir e pular do tronco direto para o chão. Assim que ficaram em pé no tronco, ele começou a rodar com o peso dos dois, e Fred e Jorge tentaram se equilibrar andando no tronco. De costas!

- Cuidado com a... - Cinthia tentou avisar entre risos, mas foi tarde demais, o tronco bateu em uma árvore no fim da curva. - ...árvore.

Fred e Jorge estavam caídos no chão sem ânimo nenhum para se levantarem. Foram feitos de bobos por uma garota. Que humilhante! Enquanto isso, Cinthia se dobrava de tanto rir, andando como podia até os dois.

- Por que você nos odeia tanto? – perguntou Jorge brincando.

- Eu não odeio vocês. Considerem como um troco por todos os sustos que vocês me deram até hoje. Vamos, levante. Não estamos muito longe da nascente.

Ela ofereceu as mãos para que eles se levantassem e ajudou a tirar as folhas dos cabelos deles.

- Eu esperava um troco muito pior por tudo aquilo – disse Fred.

- Pra vocês verem como eu sou caridosa – disse Cinthia apanhando o facão esquecido no chão e apontou-o para os dois – E sem contestações, OK? – disse brincando.

- Sim, senhora! – disseram os dois simultaneamente, e corrigiram ao ver a cara carrancuda de Cinthia: - Senhorita!

- Assim está melhor. Vamos!

Logo começaram a escutar o som da nascente, e em cinco minutos chegaram lá. Fred e Jorge mal podiam acreditar como era bonita uma nascente brasileira. A vegetação em volta estava iluminada pelos raios do sol, fazendo o verde ter leves tons dourados. Apesar de ser inverno, ainda havia muita folhagem em volta, já que a vegetação era de mata atlântica. A trilha acabava na boca da nascente, e mais adiante ela formava uma cachoeirinha em uma queda de pedras. Não saía muita água dela, mas era cristalina e pura. Só de analisar os rostos de Fred e Jorge, Cinthia percebeu que eles adoraram a cachoeira. Ela mesma não conseguia ficar muito tempo sem olhar para a queda d'água.

- Linda, não é? – disse ela.

- Muito! – disseram os dois se virando para a menina logo em seguida.

- Ei! Olhem só isso – disse Cinthia indo até uma corda perto do início da queda. – Eu achei que já tivessem tirado!

- O que é? – perguntou Jorge.

- Serve para descer até lá em baixo sem precisar dar a volta pelo outro lado. Se vocês seguirem a corda vão ver que tem um peso na outra ponta, e que passa por aquele galho ali – apontou a garota para uma árvore logo do seu lado. – Assim dá pra descer lentamente e sem perigo.

- Mas e quanto a corda? – apontou Fred. – Eles trocaram desde a última vez que você veio?

- Hum... não. Mas não se preocupem, ela é bem resistente. De qualquer jeito, só vamos ter certeza se alguém testar.

Cinthia encaixou o pé no nó da ponta e se segurou firme na corda, descendo lentamente até o chão no fim da queda d'água. Mas enquanto descia, Fred a chamou.

- Tudo bem aí?

- Tudo bem! Acho que agüenta o peso de voc... AH!

Cinthia soltou as mãos da corda e caiu de bunda na pedra, mas por sorte faltava pouco para descer.

- O que aconteceu? – perguntou Jorge aflito, pegando a corda para descer também.

- Tem um bicho-cabeludo na corda. Cuidado!

Jorge olhou para a corda, mas só depois seu olhar ficou preocupado. Ele desceu e parou ao lado da garota, soltando o pé da corda para que o irmão se juntasse a eles. Cinthia ainda estava sentada no chão, já que a bunda doía muito para tentar se levantar.

- O bicho-cabeludo caiu na sua cabeça. – disse ele com gravidade, se ajoelhando ao lado de Cinthia.

- Essa brincadeira já perdeu a graça – disse ela enquanto Fred se juntava a eles.

- Eu aconselharia você a tirar o chapéu – disse Fred no mesmo tom grave que o irmão.

- Não é sério, é? – Fred e Jorge acenaram positivamente com as cabeças, e Cinthia ficou muito aterrorizada para se mexer. – TIRA TIRA TIRA TIRA TIRA TIRA! Por favor...

Com cuidado para não fazer o inseto andar, Jorge tirou chapéu da cabeça de Cinthia e o virou do avesso, deixando o bicho no fundo. Colocou o chapéu no chão e ficou olhando para aquele bichinho aparentemente inofensivo.

- O que fazemos com ele? – perguntou Fred grudando a cabeça na do irmão para olhar o bicho também.

- Olha só! Esse vai virar uma borboleta! – disse Cinthia juntando a cabeça às duas que já estavam em cima do chapéu.

- Achei que você tinha medo de bichos-cabeludos – disse Jorge.

- E ainda tenho, mas esse aí não tem como chegar perto o suficiente para me queimar. É o mesmo que ver um dragão do outro lado das grades, e a uma boa distância. Não tem perigo.

- Às vezes isso não é o bastante. – disse Fred. – Lembra das histórias que o Carlinhos conta de dragões que fugiam das jaulas? Ainda bem que agora eles conseguiram reforçar as grades.

Eles ficaram por um tempo observando em silêncio o bicho-cabeludo andar em círculos dentro (ou fora, né) do chapéu, as cabeças ainda juntas. Já estava ficando chato quando Cinthia finalmente rompeu o silêncio:

- Quem é que vai tirar ele daí?

Depois de ajudarem o primeiro bicho-cabeludo voador da história a realizar seu grande sonho, Cinthia levou Fred e Jorge para conhecer a outra nascente. Quase se perderam, mas Cinthia se lembrou que o caminho certo era o da direita da araucária, e não o da esquerda. Só descobriu isso depois de dar umas quatro voltas, sempre voltando naquela mesma árvore.

Quando chegaram na nascentes se depararam com uma visão tão encantadora quanto a primeira. Dessa vez a água seguia por um riozinho de pedras chatas, perfeitas para se fazer um piquenique. Os três ficaram sentados lá até o final da tarde, conversando sobre tudo e qualquer coisa. Pouco antes de escurecer, Cinthia sugeriu que voltasse, já que eles podiam se perder e ela tinha uma sorte danada para situações desastrosas.

Eles fizeram um lanchinho assim que chegaram, e mais tarde tiveram um senhor jantar. A noite estava calma, sem vento, e o céu estava totalmente livre de nuvens. Cinthia pegou umas mantas e convidou os gêmeos para ficarem vendo as estrelas, algo que ela adorava fazer quando ia na chácara, já que a poluição e as luzes da cidade de Curitiba apagavam tantos daqueles maravilhosos pontinhos brilhantes.

- Aqui tem constelações diferentes das que a gente vê nas aulas de Astronomia – disse ela assim que se deitaram do lado de fora. – Já que estamos no hemisfério sul e Hogwarts fica bem no norte do hemisfério norte, acho que só da para ver umas poucas estrelas em comum.

E Cinthia apontou para Fred e Jorge algumas das constelações que conhecia. As Três Marias, o Cruzeiro do Sul, além de muitas outras. Aproveitaram para contar histórias de terror fracas para não assustar muito a garota, além de umas hilariantes que Cinthia conhecia sobre pessoas que diziam ter visto óvnis.

Quando a lua ficou alta no céu e iluminou toda a chácara com sua meia-luz, Cinthia estava prestes a cochilar de sono. A garota se sentou e continuou a olhar para as estrelas. Fred e Jorge não conseguiam parar de pensar em como era bom passar um tempinho só com Cinthia e como seria bom se ela os visse sob uma outra luz além da amizade. Mas ela era muito desligada (para não dizer tapada, bobinha, esquecida, cabeça-oca,...) para perceber que eles gostavam dela. Ah, se ela soubesse...

- Não é lindo? – perguntou a garota ainda olhando para cima.

- Muito – disseram os dois, mas estavam olhando para Cinthia. – O que mesmo? – perguntaram eles juntos novamente, fazendo Cinthia rir.

- Gêmeos são engraçados. Eu estava falando do céu, com todas essas estrelas. Em nenhum dos livros que eu li havia uma descrição que fizesse jus a toda essa beleza. Não há como descrever em palavras.

Eles nunca ouviram Cinthia falar dos livros que lia, ao contrário de Aline que lia e os forçava a ler coisas chatas e sem utilidade. N/A: Não contem isso para ela! Pena que Cinthia também não falava muito, pois Fred e Jorge estariam dispostos a ouvir tudo o que saísse da boca dela, nem que fosse algo totalmente idiota como "blorp".

A garota olhou no relógio e se espantou com a hora.

- Já é quase uma da madruga! Não sei como não morremos congelados aqui fora. Vamos entrar, ou ainda pegamos uma gripe feia.

Enrolados nas mantas, os três entraram na casa e só então perceberam como estava frio lá fora. Tomando cuidado para não fazer muito barulho, os três foram se deitar contentes em caminhas macias e quentinhas.

Nos três dias seguintes, Cinthia mostrou para Fred e Jorge toda a chácara, foram passear na vizinhança e ela ensinou eles a montar. Era semelhante a montar em vassouras, mas a diferença era que cavalos tinham vontade própria e Cinthia tinha que lembra-los disso o tempo todo. No fim ela acabou controlando os três cavalos e os gêmeos só ficaram sentados em cima de Sandrinho e Niele.

E o dia de voltar para Curitiba chagou rápido. Partiram logo de manhã para aproveitar mais o dia, e Cinthia ainda demorou um pouco para arrumar as suas coisas, não querendo sair da chácara.