2. MEMÓRIA



Acordar nunca foi tão difícil para ele quanto daquela vez. Quando abriu os olhos, as imagens estavam fora de foco, e ele sabia que se não estivesse deitado, teria caído no chão com o primeiro passo. Deixou-se ficar deitado até que conseguiu ver que estava num quarto, notando que não deveria ser usado há anos por causa do papel de parede bege que estava descascado. Ele se sentou, observando que ao lado da cama havia uma cadeira de balanço, e sobre ela, uma manta. Alguém deveria ter cuidado dele, mas quem? Lembrava somente de alguma coisa se aproximando rapidamente, e exceto por isso, não lembrava de mais nada.

De quem seria aquela casa? Ele levantou-se da cama quando estava mais forte, e saiu do quarto caminhando em passos incertos, parando próximo à escada quando ouviu uma voz. Por um instante, não as entendeu, mas logo entendeu o que elas significavam, como se sempre soubesse o que elas traduziam.



-... sei o que estou fazendo! - a mulher disse com impaciência - Conversamos melhor depois, okay?

Quando a conversa terminou, ele pensou em voltar para a cama, talvez não devesse ter escutado, mas antes que pudesse voltar, a mulher entrou na sala e o viu próximo à escada.

- Oh, você acordou! - ela disse, sorrindo - Como está?

Ela olhava para ele com amabilidade, e ele se perguntou se ela o conhecia.

- Eu... erm... eu estou bem, só com um pouco de dor de cabeça. - ele disse, estranhando a gentileza da mulher.

- Isso é normal, já que eu quase atropelei você. - ela disse com um olhar divertido - Você tem sorte de nada grave ter acontecido, mas mesmo assim, se você for uma pessoa cuidadosa e meticulosa, você provavelmente irá me processar. - ela disse enquanto subia a escada, sem aparentar nervosismo ou preocupação - Eu estava dirigindo rápido demais para um dia com neve, se bem que antes será melhor ligar para sua família, devem estar preocupados com você. Pode usar o telefone à vontade, está na sala de visitas, é a porta do lado esquerdo da escada.

Ela pegou a mão dele, indicando onde ficava a sala, e ele estremeceu ao toque gelado da mão da mulher, ficando surpreso ao ver que ela estava disfarçando o nervosismo, mas fingiu ignorar quando ela voltou-se para ele, esperando a resposta, olhando com expectativa quando ele demorou a responder. Ele abaixou a cabeça, fugindo do olhar interrogativo da mulher.

- Eu não tenho família. - ele disse rapidamente, e voltou o olhar para a mulher. Não poderia ignorar o que estava acontecendo - Na verdade, não sei se tenho família. Eu não me lembro de nada.

- Oh, meu Deus! - a mulher caminhou para trás, horrorizada, mas antes que ele pensasse que ela estava com medo dele, ela continuou - Foi por minha culpa, eu devo ter atropelado você, devo ter acertado a sua cabeça... Ah, meu Deus, o que eu fiz! - ela levou a mão aos cabelos loiros com desespero, desviando o olhar dele.

- Calma, não foi sua culpa. - ele disse, tocando no ombro dela, tentando tranqüilizá-la - Eu não me lembrava de nada antes de desmaiar. E, de qualquer forma, você não me acertou.

- Tem certeza?! - a loira perguntou, piscando rapidamente - Mas... - ela hesitou, escolhendo as palavras antes de falar num murmúrio - Antes de desmaiar, você me disse o seu nome.

- Meu nome?! - os olhos arregalados transmitiam toda a surpresa dele. Se antes de ser atropelado pela mulher mal conseguia pensar, como poderia ter dito o seu nome? Talvez não estivesse tão desmemoriado quanto pensava. Talvez tudo estivesse em sua cabeça, esperando que ele encontrasse um modo de se lembrar de tudo. - Como eu...

- Sirius Black. - a mulher disse, olhando com atenção para ele, percebendo que Sirius não se sentia à vontade para perguntar algo que obviamente deveria saber.

- Sirius... - ele repetiu, encontrando no som daquela palavra uma familiaridade que não havia sentido até aquele instante - É, esse é meu nome! - ele disse com um sorriso de orgulho pelo primeiro pedaço de sua vida que ele se lembrava - Mas, me desculpe, eu não lembro do seu...

- Ora, e seria espantoso se você soubesse! - os olhos dela brilhavam astutos como uma águia - Não conhecia você até hoje! - ela cruzou os braços, apoiando o corpo sobre o corrimão que levava à escada, sorrindo com simpatia.

- O que foi? - a mão dela tocou a de Sirius com preocupação - Se lembrou de alguma coisa?

Sirius olhou fixamente para ela, com espanto. Por um segundo, havia se lembrado de alguma coisa, mas tão rapidamente a lembrança surgiu, desapareceu.

- O seu nome... - ele disse lentamente, enquanto a mulher afastou a mão, e seu rosto empalideceu - Você ainda não me disse.

- Oh, é só isso?! - ela disse, soltando uma gargalhada - Pensei que você fosse uma espécie de mágico e tivesse adivinhado meu nome! Eu me chamo Elinor Bennet. - ela esfregava a mão enquanto falava, mas assim que terminou, estendeu-a para Sirius.

Sirius olhou cauteloso para a mão, e sem saber o que fazer, tocou os dedos dela. Elinor o encarou como se estivesse em transe, mas antes que o toque pudesse se prolongar, ela se afastou.

- Sabe, acho que você deve ir para a delegacia, talvez sua família esteja procurando você. - ela colocou o cabelo para trás da orelha, e virou-se em direção a um quarto, mas parou ao chegar na porta - Tem toalha no banheiro, e roupas limpas no armário. É melhor vestir roupas quentes, pode esfriar quando anoitecer.

Elinor entrou no que deveria ser seu quarto, e Sirius voltou para o que estava quando acordou. Não teve dificuldade para encontrar o banheiro, e foi tomar banho.

Era engraçado como ele se lembrava como agir em certas situações, e para outras não fazia a menor noção. Aquela era uma delas. Não lembrava exatamente como podia tomar banho, mas não teve dificuldade em descobrir como. Foi a mesma sensação que teve quando ouviu Elinor falar. No começo, não entendeu o que as palavras significavam, só que à medida que escutou ela falar, lembrou-se do significado delas.

Depois de banhado, vestiu as roupas, que couberam perfeitamente, e depois desceu. Elinor já o esperava, próximo à porta, calçando as luvas.

- As roupas serviram?

- Sim, ficaram ótimas. - ele respondeu, descendo os últimos degraus.

- Eram do meu padrasto, ele era da sua altura, mais ou menos. Está agasalhado? - Sirius respondeu com um meneio de cabeça - Então vamos.

Não nevava, mas os restos da neve do dia anterior ainda estavam nos lados da estrada, menos perigosa do que quando Elinor dirigia para Vinley. Nenhum dos dois conversavam. Elinor estava atenta à estrada, e Sirius olhava a vista, distraído, até que teve a sensação de estar sendo seguido.

- O que foi? - a tensão de Sirius não passou despercebida a Elinor - Reconheceu alguma coisa?

- Não, nada. - ele virou o rosto para a mulher, mas ainda estava intrigado com aquela sensação de estar sendo seguido.

A estrada estava deserta, não havia nenhum outro carro além do de Elinor, e Sirius já estava desistindo quando viu, no espelho, uma pessoa montada em uma vassoura, voando atrás deles. Isso era estranho o bastante, mas o fato dele achar isso normal assustou-o muito mais do que ver alguém voando numa vassoura, e ele poderia ficar olhando para aquela cena não fosse a voz de Elinor o chamando.

- Sirius?! Sirius, algum problema? - ela perguntou quando ele a encarou - Você está pálido como um fantasma!

- Eu... - ele começou, mas parou. O que ela pensaria se dissesse que tinha visto alguém voar numa vassoura? -... só estou ansioso. Espero que consigam descobrir alguma coisa sobre mim.

- Claro que ele vai encontrar alguma coisa, você talvez more aqui e tenha se perdido na neve, sua família já deve ter ido falar com o delegado.

Elinor falava, mas Sirius não ouvia. Continuava procurando algo no céu, e só desistiu quando o carro parou e Elinor falou novamente.

- Chegamos.

Eles entraram na delegacia de polícia, Sirius atrás de Elinor, nervoso e ansioso com o que iria descobrir. Queria encontrar sua família, apesar de não se lembrar de nada, era como se escutasse alguém o chamar.

- Bom dia, gostaríamos de falar com o delegado, por favor. - ela perguntou para um policial que estava saindo.

- Do que se trata?

- Eu encontrei esse homem na estrada, ele está perdido.

- Como assim? - o policial perguntou, quase rindo - Ora, pergunte para ele de que cidade ele veio, e o coloque num ônibus de volta para lá!

O policial se afastou, mas Elinor o segurou pelo braço bruscamente.

- Não estou falando disso. Ele não se lembra de nada do que aconteceu na vida dele antes do dia de ontem.

Elinor olhava fixamente para o policial, que engoliu em seco.

- Vou ver se o delegado está ocupado.

O policial se afastou, e Elinor se voltou para Sirius.

- Desculpe se pareci rude, mas eu conheço o pessoal dessa cidade, passaríamos o dia inteiro aqui antes de falar com alguém.

Sirius concordou com a cabeça, e pouco depois, o policial voltou.

- O delegado quer ver vocês.

Sirius e Elinor seguiram o policial até a sala do delegado. Estranhamente, ele estava calmo quando encarou o delegado, um homem em torno de trinta anos, loiro, um pouco mais baixo que ele. O olhar dele era paciente, e o delegado mais parecia um padre que um policial.

- Bom dia, o policial Parrow disse que um de vocês está com um problema...

- Sou eu. - Sirius adiantou-se - Não me lembro de nada do que aconteceu antes do dia de ontem.

- Nada antes de ontem, não é? - Sirius concordou - Muito bem... Qual é a sua primeira lembrança?

Elinor não tinha combinado com ele sobre o que falar, mas Sirius havia decidido que não falaria nada sobre o "atropelamento".

- Eu me lembro de ter acordado, e andado perdido na neve. Estava quase desmaiando quando Elinor, a senhora Bennet, me encontrou.

- Senhora Bennet... - o delegado disse calmamente, olhando para Elinor - Faz muito tempo que não a vejo por aqui... - o delegado se acomodou na cadeira, olhando com interesse para Elinor.

- Estava nos Estados Unidos, com meu marido, mas nos divorciamos e voltei. Quando estava voltando, vi um homem desmaiar no meio da estrada. Parei o carro e fui até ele, ele estava quase desmaiando, perguntei o nome dele, e ele me disse antes de desmaiar. Se chama Sirius Black. - a mulher respondeu o mais resumidamente possível, sem esquecer de nenhum detalhe. Podia não ser a verdade exatamente, mas se Sirius não queria acusá-la de atropelamento, ela não o impediria.

- Você se lembra do seu nome? - o delegado perguntou calmamente. Se tinha ficado surpreso, escondeu muito bem.

- Não exatamente. Elinor disse que eu falei antes de desmaiar, mas eu não me lembro disso.

- Entendo...

Sirius se adiantou, supondo que o delegado duvidava dele.

- Não estou querendo dizer que esse não é meu nome, senhor. De tudo o que me aconteceu nas últimas horas, essa é - ele hesitou, pensando no que quase havia lembrado quando tocou em Elinor, mas continuou, decidido - essa é a única coisa que eu sei que me pertence. Posso garantir que meu nome é Sirius Black.

O delegado encarou Sirius, sem aparentar dúvida ou crença nele.

- Bem, se você está tão certo disso, acho que posso checar nos arquivos de pessoas desaparecidas se seu nome consta lá. Parrow, você pode olhar para mim, por favor.

- Estou indo.

O policial saiu, e Sirius olhou para Elinor com expectativa, sem conseguir disfarçar o nervosismo.

- Viu? Logo vão encontrar sua família. - ela sorriu, tentando tranqüilizá-lo.

Demorou quase uma hora para que o policial voltasse, com uma pasta na mão.

- Não há nenhuma queixa de desaparecimento de alguém chamado Sirius Black. A única coisa que eu achei foi o desaparecimento de um Robert Black há vinte e seis anos. Trouxe a pasta do caso, talvez seja algum parente.

A frustração dominou Sirius enquanto o policial falava, e Elinor tocou o ombro dele, tentando passar força de vontade e esperança.

- Está tudo bem, isso não quer dizer que você não vai encontrar sua família. Não é, delegado?

- Claro, senhora Bennet. Talvez você seja de uma cidade vizinha, eu vou investigar isso. - ele disse calmamente, mas quando continuou, falou em tom imperativo - Enquanto isso, você deve procurar um médico, senhor Black. Ele vai examinar sua amnésia e indicar um tratamento que o ajudará a se lembrar de tudo o mais rápido possível.

- Nós iremos ao hospital pela manhã. - Elinor respondeu em tom ofendido - Tenha uma boa noite, delegado.

- Obrigado por me ajudar. - Sirius acrescentou, um pouco encabulado com a atitude de Elinor, e eles saíram da delegacia.

- Eu sinto muito, Sirius. - Elinor disse depois que eles entraram no carro - Eu sei que isso era muito importante para você, mas não desista. Logo você vai encontrar a sua família.

Sirius concordou com a cabeça, tentando se sentir melhor, mas sem sucesso. Aquela sensação de que alguém precisava dele com urgência o dominava, e antes que pudesse se calar, estava contando o que sentia para Elinor.

- Eu estou um pouco decepcionado, pensei que ia descobrir quem eu sou... Pode parecer imaginação, mas eu sinto que alguém precisa de mim. Eu só queria poder ajudar essa pessoa.

Elinor concordou com a cabeça, e ficou em silêncio, olhando para a estrada antes de responder.

- Nós vamos descobrir quem você é. Eu prometo.

A determinação com que Elinor disse essas palavras tranqüilizou Sirius, e pela primeira vez, ele acreditou que conseguiria descobrir quem ele era.

- Eu também queria agradecer por você não ter contado sobre o acidente com o carro. - ela olhou para Sirius, desviando olhar da estrada por um instante.

- Você me ajudou levando para a sua casa sem saber nada sobre mim. Eu poderia ser um assassino, mas você cuidou de mim. Deve ter sido difícil me levar para o quarto subindo pela escada.

- Oh, não foi tão difícil. - ela respondeu, indiferente, e pouco depois, eles chegaram na casa de Elinor.

Os dois entraram na casa, e Elinor perguntou.

- Está com fome? - antes que Sirius respondesse, ela continuou - Eu vou preparar alguma coisa para comermos, se quiser ver tv, ou ler algum livro, está bem.

Sirius e Elinor entraram na casa, ela foi para a cozinha, e ele foi para uma estante, observando os livros.

- É uma pena o delegado não ter podido ajudar. - Elinor gritava da cozinha enquanto pegava na despensa alguma coisa para o jantar - Pelo menos ele vai ficar atento, e vai verificar em outras delegacias, talvez elas tenham sorte, e amanhã vamos para o médico, ele estava certo, deveríamos ter ido para o hospital antes de qualquer coisa.

Sirius, porém, não estava atento ao que a mulher dizia. Ele não sabia explicar, talvez fosse instinto, mas ele sentia-se observado. Era a mesma sensação de quando estava indo com Elinor para a delegacia, só que ao contrário da vez anterior, sentia que algo estava prestes a acontecer.

- Sirius?! - Elinor disse da cozinha, e como ele não respondeu, ela saiu segurando uma caixa de leite - Sirius?!

No instante que ela falou, uma luz verde inundou todo o lugar, impedindo que Sirius alcançasse Elinor, mas a luz não durou mais que um segundo, e quando ele pôde ver novamente, ela ainda estava parada, como se nada tivesse acontecido.

- Você não viu? - ele perguntou, numa mistura de espanto e medo - Não viu a luz?

- Que luz?! - ela perguntou, se aproximando dele - Não vi nada de estranho, de que luz você está falando? - ao ver o olhar assustado de Sirius, ela continuou - Sirius, você está me assustando. De que luz você está falando?

- Dessa luz. - ele respondeu, apontando para alguma coisa atrás dela.

Quando Elinor se virou, ela deixou a caixa de leite cair, assustada com o que via. Uma luz verde percorria a casa numa fina linha reta, circundando todos os objetos da casa, que ficavam iluminados pela mesma cor verde depois que eram atravessados.

Sem se virar, Elinor deu alguns passos para trás até sentir seu corpo tocar o tórax de Sirius, com medo do que estava acontecendo. A luz estava se aproximando, mas antes que ela os alcançasse, Sirius puxou Elinor, abriu a porta e, abraçado a ela, se jogou para fora.

- O que diabos está acontecendo aqui?! - ela perguntou, indignada, mas se calando ao observar o céu.

Uma caveira brilhava mais forte que qualquer estrela. Da boca dela, como se estivesse viva, uma cobra saía, tentando atacar tudo o que encontrava em seu caminho.