OESTE SELVAGEM
Por Andréa Meiouh
Capítulo 1
Sancsville, 1850.
Após um dia de calor infernal e muito trabalho, Duo Maxwell finalmente conseguia uns instantes de folga. Cansado e suado, pensou em cancelar a ida até o saloon, mas descartou logo a idéia. O jogo de pôquer era uma das únicas diversões que tinha naquele fim de mundo, além de ser uma boa oportunidade para rever os companheiros. Ao se decidirem estabelecer residência na pacata Sancsville, os cinco resolveram seguir suas vidas, deixando o passado para trás. Ninguém, exceto Howard e o Doutor J, sabia quem e o que eles era na realidade.
Encaminhou-se com passos rápidos para a casa de banhos da Srta. Poo. A mulher de cabelos cor de mel sorriu quando o viu chegar.
"Finalmente, Maxwell... Pensei que ia deixar essa sujeira acumular por mais uma semana...", gracejou ela, estendendo uma toalha.
Sorrindo amplamente, Duo piscou com malícia. "Sem essa, Sally... Preciso manter esse meu rostinho lindo visível aos olhos das mulheres... Afinal, vocês merecem!".
"Convencido!", sorriu ela, enquanto um dos seus clientes favoritos afastava-se gargalhando. Virou-se e chamou a nova funcionária, explicou direitinho à moça o que fazer, esperando que ela não errasse em nada.
Duo tirou a roupa e entrou numa das tinas fumegantes que havia no centro do aposento. Além do hotel de Quatre, o estabelecimento de Sally era o único que oferecia aquele tipo de 'luxo' por ali. Afundou totalmente molhando bem os longos cabelos presos numa trança. Recostou a cabeça na borda da banheira e fechou os olhos, deixando o corpo cansado relaxar, mas não totalmente, afinal velhos hábitos custavam a morrer. Apurou os sentidos quando escutou a porta se abrir.
"Seu pedido, senhor...", uma voz feminina soou bem perto.
"Mas eu não pedi nada dessa vez...", a voz de Duo morreu quando, ao abrir os olhos, avistou a nova funcionária de Sally. Ela era pequena, esguia, com grandes olhos azuis ornamentando um rosto fino e pálido. A franja negra caía-lhe pela testa franzida numa expressão determinada.
E ela apontava um revólver na direção dele.
"Diga adeus à vida, assassino...", grunhiu ela, apertando o gatilho.
Estreitando os olhos, pensando em suas possibilidades, Duo perguntou: "Posso ao menos saber o nome da mulher que vai me matar?". As sobrancelhas dela se franziram ainda mais e os olhos irradiaram ódio e sofrimento. Ele conhecia aquele olhar.
"Hilde Schbeicker", disse ela. "Espero que lembre de mim no inferno, maldito...".
Num movimento rápido, Duo se levantou, pegando o punho de Hilde e torcendo-lhe o braço, pressionando as costas dela contra o peito molhado. "Mas que diabos está tentando fazer, maluca?!".
"Matar você!", explodiu ela. "Me solte!".
"Não até que você explique essa história direitinho, boneca...", disse ele, apertando-lhe o braço e fazendo-a gemer.
"Não tenho nada pra explicar!", Hilde arfava contra o corpo quente e molhado daquele homem. O homem não era nada do que ela esperava. Alto, bronzeado, com o corpo esguio de músculos trabalhados, ele não tinha a aparência de um assassino. Mas, na vida tudo podia acontecer. Ele se encaixava perfeitamente com a descrição dada. Só podia ser ele. "Foi você quem matou meu pai, verme! Me largue!".
'Matei o pai dela...?', pensou ele, soltando na hora. "Que diabos você está falando?".
Pegando a arma que tinha caído no chão, Hilde se afastou. Tinha o rosto vermelho. Ele estava nu, em toda sua glória, diante dela. "Não tem vergonha de se mostrar para as mulheres, idiota?".
"Quer que eu tenha vergonha na hora que minha vida está sendo ameaçada?", ele riu secamente. "Você está de brincadeira, só pode... Quem te mandou aqui, menina?".
"Não te interessa!", gritou ela, mirando novamente e atirando de uma vez.
"Ah!". Desviando, Duo jogou-se no chão, fazendo a banheira virar e espalhar água por todos os lados. Hilde preparou-se para atirar mais uma vez, porém foi agarrada pelas pernas. "Mulher louca!", exclamou ele, tentando dominá-la. "Não matei seu pai!".
"Mentiroso!", ela se debatia, enquanto ele a prendia no chão. O vestido cor de lavanda, de tecido fino, rasgou-se, expondo a cicatriz no ombro direito. Duo parou, os olhos fixos na pele repuxada.
"Está se lembrando, cretino?", sibilou a moça, olhando por sobre o ombro. "Olhe bem o estrago que fez... Lembre de tudo! Quer relembrar também da sensação que sentiu quando atirou no meu PAI!?".
"DUO!".
Naquele momento, Sally entrou no aposento, trazendo nas mãos uma espingarda. Parou imediatamente assim que viu Duo nu, deitado sobre Hilde, pressionando-a contra o chão.
"Mas o que está havendo?", perguntou a dona do lugar. "Hilde?".
Jogando a arma para longe, Duo se afastou da garota, pegou a toalha mais próxima e se cobriu. Baixou os olhos e viu a jovem se encolher em posição fetal, trêmula, enquanto Sally se aproximava.
"Duo... O que está acontecendo?".
Suspirando, o homem procurou pela trouxa de roupa que havia trazido. Estava toda molhada. Balançou a cabeça, resignado. "Será que poderia me arrumar uma roupa limpa, Sally? Estas estão sem condições...".
Assentindo, Sally pegou uma toalha seca de um dos cabideiros e cobriu Hilde antes de seguir até um outro quarto, entregando roupas limpas e passadas para Duo. "Como conheceu essa menina?", ele quebrou o silêncio.
"Ela apareceu há alguns dias atrás... Estava machucada e precisava de abrigo e comida. Eu tive que ajudar...". O oeste não era uma terra favorável para as mulheres, Duo sabia disso. As poucas de coragem como Sally nunca deixariam alguém passando necessidade e muito menos fariam perguntas. Era a sutil lei do 'silêncio', que protegia todos ali, inclusive ele. "Por que ela queria matar você?".
"Acha que matei o pai dela", ele respondeu, vestindo a calça.
"E matou?".
"Claro que não!". Ofendido, ele aprumou-se, oferecendo à Noin uma bela visão de seu corpo definido. Com cerca de 1,80m, o ferreiro de Sancsville era belo. A figura bronzeada, forte e esguia chamava atenção por onde passava. O sorriso sempre fácil, os cabelos longos e os olhos azuis tornavam-no ainda mais atraente.
"Então, precisamos descobrir quem foi que fez isso, Duo...", replicou ela, cruzando os braços.
"Não se preocupe, vou resolver isso", prometeu ele antes de sair. "Depois eu volto para pegar minhas coisas".
Relena despedia-se de um aluno quando viu Heero e Wu Fei passando pela rua principal. Como sempre, seus olhos foram atraídos pela imagem do rancheiro de cabelos castanhos. Desde que ele chegara à Sancsville, há dois anos, a professora não conseguia parar de pensar nele, que a ignorava completamente.
"Boa tarde, Sr. Yui, Sr. Chang", cumprimentou.
"Boa tarde, professora", responderam os dois homens, sem pararem de caminhar. Ela os acompanhou com o olhar até sentir um puxão na barra do vestido e baixar os olhos para encarar uma de suas alunas. Sorriu esquecendo momentaneamente o criador de cavalos.
Seguindo em direção ao saloon de Trowa, os dois amigos trocavam algumas palavras.
"Não lhe pareceu que a professora Relena estava subitamente interessada em nós?", perguntou Wu Fei.
"Hunf... Não quero saber...", replicou o outro, indiferente. "Vamos logo que os outros devem estar esperando...".
"Aposto que Maxwell está atrasado...".
Entraram no bar e, por mais incrível que parecesse, encontraram Duo lá. Os trajes não estavam nas melhores condições, estava descalço e despenteado, mas ele estava adiantado. Quatre e Trowa estavam ao lado dele, com expressões graves.
"Precisamos conversar...", disse sério, olhando os companheiros.
"Vamos até meu escritório", disse Trowa. E chamando a garçonete, ordenou: "Catharine, tome conta de tudo por aqui".
Acomodaram-se da melhor maneira que podiam. "Vai explicar onde estão suas botas?", alfinetou Wu Fei.
"Tentaram matar Duo hoje", respondeu Quatre, enquanto o moreno de trança andava de um lado para o outro. Aquilo finalmente despertou a atenção dos recém-chegados.
"Como aconteceu?".
"Ela me encurralou na casa de banhos", respondeu Duo.
"Ela? Era uma mulher?", o oriental espantou-se.
Revirando os olhos, Duo sentou na mesa. "Sim, era uma mulher, Wu Fei... Uma mulher bonita e cheia de ódio. E atirou em mim de verdade".
"Por que?", foi a pergunta de Heero.
"Pensa que matei o pai dela...", respondeu o ferreiro. "Diabos, depois de tudo o que passamos... Pensei que teria um pouquinho de paz...".
"Nunca teremos paz, Duo", disse o loiro, Quatre Winner. "Nosso passado sempre estará pairando sobre nossas cabeças, por mais que a gente tente evitar".
Um silêncio se fez, todos assimilando as palavras do dono da pequena e única estalagem da região. Quatre tinha razão. O passado para sempre os assombraria, mas Duo tinha uma certeza. Não matara o pai de Hilde e muito menos atirara nela.
Os olhos azuis fitavam o nada. Estavam perdidos, sem vida ou brilho. Sally começou a se preocupar. Tinha levado Hilde para sua casa e trocado-lhe a roupa, mas ela não reagia. A apatia de Hilde era tamanha que a outra podia sentir na pele. O sofrimento, a solidão... Entendia aquilo tudo muito bem. Também havia passado por experiências difíceis quando jovem, mas encontrara forças para continuar a vida. Aprendera muito com os acontecimentos e assim se tornara a mulher que era. Esperava, ardentemente, que Hilde pudesse fazer o mesmo.
Dirigindo-se para a cozinha, preparou um pouco de chá. Depositou a xícara fumegante ao lado da funcionária e sentando-se ao lado dela, tentou tirá-la daquele estado.
"Hilde, por favor... Fale comigo". Não obteve resposta.
Suspirando, Sally levantou-se e foi até o armário, de onde tirou um cobertor. Cobriu a jovem e encaminhou-se para a porta, decidida a voltar para o trabalho, quando ouviu a voz fraca da outra.
"Sally...".
Virando-se, a mulher de cabelos cacheados sentiu o coração apertar. Hilde tinha os olhos tão expressivos, capazes de transmitir tanta emoção... Naquele momento, os dois orbes azuis refletiam somente dor. Voltou para a cama e sentou-se, puxando a funcionária para um abraço.
Hilde finalmente chorou. Chorou pelo pai, pela mãe, por si mesma, pela vida cruel que a levara até ali. Não soube dizer por quanto tempo usou o ombro amigo de Sally, mas quando finalmente parou, sentia-se leve, aliviada.
"Obrigada", murmurou, desvencilhando-se do abraço da outra.
"Não precisa agradecer, Hilde...", Sally sorriu. "Você estava precisando disso... Estou feliz em poder ajudar".
Balançando a cabeça, a alemã abaixou o olhar, que pousou sobre a xícara. Estendeu o braço e pegou-a, provando o chá.
"Já deve estar frio", comentou a outra.
"Não tem problema...", respondeu, bebendo mais um pouco. "Está uma delícia". As duas ficaram em silêncio, enquanto Hilde terminava seu chá.
Sabendo que não podia mais evitar a conversa, Sally resolveu ser bem direta. "Por que fez aquilo, Hilde? Por que atirou em Duo?".
A aparente tranqüilidade se afastou da garota, que enrijeceu, quase derrubando a xícara. "Aquele homem...", parou, respirando fundo, tentando engolir o nó que havia formado em sua garganta. "Ele matou meu pai...".
Sally não podia acreditar. "Não pode ser, Hilde... Duo não faria uma coisa dessas...".
"Mas ele fez! Eu vi!", exclamou a outra, levantando-se. "O bando dele atacou nosso carroção! Eles atiraram sem piedade! Como pode duvidar de mim? Quer que eu mostre minha cicatriz?".
"Hilde", a voz firme de Sally arrancou a moça de seu surto de raiva. Percebendo que ela se acalmava, a dona da casa continuou: "Hilde... Não poderia ter sido Duo... Eu o conheço, ele freqüenta a casa de banhos quase que diariamente nesses dois anos em que ele está na cidade. Não havia como ele ter atacado vocês num lugar tão longe sem ter ao menos saído daqui".
A racionalidade da patroa fez Hilde sentir vergonha. Haviam mentido pra ela. Mentiram sobre os atacantes, enganaram-na para que ela se tornasse uma mulher amarga e sedenta pela vingança. Sentiu os olhos encherem de lágrimas. Caiu de joelhos no chão, escondendo o rosto entre as mãos.
"Shhh... Tudo vai ficar bem, Hilde...", novamente Sally a envolveu num abraço amigo. "Não se preocupe, tudo ficará bem...".
Continua...
