DUAS REALIDADES


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Duas Realidades
Episódio XIV – Elos
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Este capítulo é dedicado à memória de Polaca, Shinka, Patra e Urara, mortas em 3 de abril de 2004, de forma torpe e covarde. Infelizmente, ainda não descobrimos os criminosos.
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Snape chegou ao hospital St Mungus através de pó de fluxo. Ao contactar Clara, a medibruxa responsável por Hermione, Snape rumou para a CTI. A medibruxa explicara que algo desagradável acontecera à paciente, mas que tudo estava perfeitamente bem agora. Ele mal ouvia Clara. Tudo que queria era ver Hermione. Ver com seus próprios olhos que ela estava bem, embora realmente não estivesse.


Ao chegar na unidade, percebeu que as cortinas em torno do leito de Hermione estavam abertas e que havia uma pessoa lá, sentada na cadeira com a cabeça apoiada sobre o leito. Por estar com a cabeça abaixada, Snape não pode perceber de imediato de quem se tratava, mas um súbito ódio lhe subiu a cabeça, pois este deveria ser o culpado do mal estar da menina.


Com o susto da aproximação repentina e abrupta de alguém, o rapaz que segurava a mão de Hermione, onde apoiava sua testa, olhou assustado para a figura alta e magra que trajava negro da cabeça aos pés. Sentiu uma onda de calor e ódio em sua direção, antes de conseguir focalizar e processar com precisão quem era a tal figura sinistra.


_Potter! O que faz aqui?! – Perguntou Snape no seu tom mais mordaz e frio.


_Snape?! O que quer aqui? Veio averiguar se Hermione ainda não morreu?!


Isso pareceu ter atingido Snape como um balde de gelo. Ele estava agindo irracionalmente, descontando a sua aflição no rapaz. Mas por que maldição tinha que estar aqui justo o infeliz do Potter?!


_Clara me falou algo sobre o mal estar dela, mas não prestei bem atenção... o que aconteceu à Srta Granger? – Snape falava num tom mais ameno, sem desviar o olhar do rosto pálido da menina. Só a visão dela já o acalmava como fosse um bálsamo. Ela não merecia presenciar nenhuma cena desagradável, e ele não queria isso.


_Eu... eu acho que cometi um erro... em trazer os pais dela aqui, para a verem... – Harry murmurava com muita amargura em sua voz. Era notável que ele não estava dormindo e se alimentando direito depois do que aconteceu à amiga. Seus olhos estavam vermelhos e inchados, provavelmente por ter chorado por muito tempo. Ele deveria estar sentindo-se totalmente culpado... o que, em parte, era verdade.


_Trazer os pais para ver a filha não é um erro, Potter. Eles têm esse direito. Mas, afinal, o que aconteceu?


_Snape, eu preciso de um café forte e ar puro... me acompanharia até a lanchonete externa do hospital?


*


No grande jardim bem cuidado do hospital, algumas pessoas circulavam por ali. Pacientes curtiam o frescor das sombras das árvores, outros distraiam-se com partidas de xadrez sob um gazebo. Harry parecia apreciar a vista do quiosque, com o queixo apoiado numa das mãos enquanto a outra se aquecia na xícara fumegante de café.


_Potter, não tenho o dia todo. Não me chamou até aqui só para apreciar a paisagem, não é? – Apesar da impaciência, Snape mantinha a voz calma, apreciando do seu próprio café.


_Não, Snape, claro que não... – Harry estava abalado demais pra se importar até mesmo com os sarcasmos de seu detestável ex-professor; respondia sem desviar o olhar do movimento no jardim.


_Então.. o que aconteceu à Srta Granger? Clara me falou qualquer coisa a respeito, mas não estava com cabeça pra ouvir o que ela dizia.


_Por que se preocupa, Snape? Se eu não te conhecesse, diria que você até gosta de Mione. – Harry encarava em tom de desafio, bebendo do café em seguida.


_E eu deveria odiá-la? Apesar da intragável personalidade dela, creio que não mereça isso.


_E algum de nós merece, Mestre de Poções?


Snape levanta da mesa com raiva, já dando as costas à Harry, esbravejando contra o garoto.


_Vai pro inferno, Auror! Eu tenho mais o que fazer pra ouvir suas ladainhas!


_Mione morreu, Snape! Ela esteve clinicamente morta por quinze minutos!


Snape estancou o movimento, sentindo um aperto doloroso no peito. Suas mãos gelaram e umedeceram. Muito relutantemente virou pra Harry. Sua expressão era de desalento, o que Harry percebeu, arregalando os olhos com essa surpresa, mas preferiu ignorar suas conclusões por ora.


_Como... como isso aconteceu? – Snape voltava pra sua cadeira, escondendo as mãos trêmulas e úmidas sob a mesa.


Harry voltou seu olhar para fora, de forma a se distrair com o movimento no jardim. Ele não queria que Snape o visse chorar.


_Eu.. trouxe os pais de Mione, para visitá-la... eles.. eles ficaram muito transtornados...


_Isso é de se esperar, Potter. O que isso teria a ver com o que aconteceu à.. Srta Granger?


Harry ignorou completamente o comentário e continuava seu relato em voz baixa com se estivesse repassando a notícia apenas para si mesmo.


_Cometi um erro em fazer isso.. não esperava que fossem agir daquela forma... eles são trouxas, não entendem nossos métodos de medicina... eles ficaram mesmo muito transtornados em vê-la deitada no leito aparentemente sem qualquer assistência...


Pausou por instantes para terminar sua xícara de café que já estava quase frio. Seus olhos estavam marejados e controlava-se para não deixar as lágrimas desabarem. Snape estava mais complacente e esperou pacientemente para que Harry tomasse novo fôlego.


_Eles esperavam encontrá-la coberta de equipamentos, como é em hospitais trouxas... o pai dela ficou tão fora de si que era impossível fazê-lo compreender de que nosso método era diferente.. e eficiente...


_O que é isso, Potter? Não acredito que o pai dela tenha feito algo para prejudicá-la, ele não faria isso!


_Eu não disse que ele fez algo para prejudicá-la... o que aconteceu, ninguém esperava. O pai dela a pegou no colo, xingando a todos e ao tratamento que ela estava recebendo... dizia que ia levá-la pra um hospital 'de verdade'... só que...


_Só que?


_Aquela movimentação brusca que Mione sofreu... fez com que a.. pulsação dela parasse! Droga! Levou quinze minutos para os medibruxos conseguirem trazê-la de volta! Ela esteve morta, Snape, morta!


Harry abaixou a cabeça levando as mãos ao rosto, controlando-se para as lágrimas não desabarem. Mais uma vez sentia-se culpado por alguém próximo a si sofrer por sua causa. Não importa que Hermione tenha feito pouco caso de sua preocupação. Ela estava certa: não poderia deixar de viver por causa de ameaças... a culpa era de Voldemort, dessa maldita guerra!


Snape abaixou os olhos apreciando o nada sobre a pequena mesa da lanchonete. Seus pensamentos iam e viam das duas realidades que presenciava de Hermione. Nesta onde jaze no leito do hospital e em seu passado, onde ela vive, apesar dos pesares.



Juntou os dois fatos e chegou a conclusão de que o mal súbito que a acometera na biblioteca de sua antiga faculdade foi causado pelo ocorrido de hoje. Lembrou-se das palavras de Clara, que dizia que o corpo não sobrevive sem o espírito. Lembrou-se de quando a encontrou no Beco Diagonal... ela estava muito mal, quase morta para ser mais exato. E hoje, em suas lembranças, ela teve aquele mal súbito... em ambos os casos ela fora removida do local onde descansava...


Outra coisa que veio a sua mente fora algo que leu há muito tempo sobre viagem astral, quando a pessoa adquire a capacidade de sair do corpo quando bem entender; dizia que o corpo não poderia ser removido do local, pois era a ligação direta do espírito com o mundo dos 'vivos'.. se isso acontecesse talvez fosse impossível o espírito retornar ao corpo.



Juntou os fatos, chagando a uma conclusão. E precisava falar com um certo alguém sobre isso. Mas algo era certo: o tempo de Hermione estava se findando. Qualquer alteração em seu corpo causaria graves conseqüências a sua mente física, presa em 1980... e o corpo não sobrevive sem a mente! A situação estava tão delicada que qualquer coisa agora poderia matá-la!


Precisava falar com Cherry Blossom sobre isso. Precisava saber o quanto ele já havia progredido para trazê-la de volta.


Levantou num impulso, trazendo Harry de volta à realidade. O rapaz o olhava sem entender nada. Seus olhos e rosto estavam rubros pelo soluço sufocado.


_Potter, cuide para que ninguém mais toque na Srta Granger. Não permita que ninguém a remova de onde esta, para nada.


_Por quê? Não entendo o que isso tem a ver...


_Simples, garoto: a mente física ou espírito dela não está em seu corpo, isto quer dizer que qualquer alteração poderá matá-la. Ela não pode perder a referência espacial.


_Vá até Clara e lhe diga exatamente isso, diga-lhe que fui eu quem disse. Ela saberá perfeitamente do que se trata.


Snape desaparatou logo em seguida, deixando Harry muito confuso, tanto pela declaração quanto pela reação de Snape. Ele realmente se preocupava com Hermione e isso era muito estranho.


*


Aparatando no Beco Diagonal, Snape põe-se a procurar pelo tal Antiquário. Certamente Blossom estaria lá, trabalhando para trazer Hermione de volta – pelo menos assim esperava.


Desceu a rua principal, olhando em todos os becos que ficavam paralelos a ela. Já um pouco distante do início da rua, avista algo num pequeno beco, que chama-lhe a atenção: uma grande placa adornada, muito antiga. Aproximando-se, vê com alegria que trata-se do tal Antiquário.


Abre a porta que tilinta com os sininhos pendurados nela, adentrando a loja totalmente desprovida de qualquer pessoa, mas abarrotada de coisas antigas, sendo algumas muito luxuosas.


Seus olhos percorrem por todo o interior da loja em busca do velhinho mirrado escondido em meio aquele monte de tranqueiras. Detém-se numa parede recoberta dos mais variados tipos de relógios, que lhe desperta uma grande atenção.


Aproxima-se da tal parede e começa a olhar com estranha curiosidade cada um dos artefatos ali expostos. Sente seu coração descompassar ao perceber a data mostrada no maior dos relógios, um de pêndulos, que parecia reinar absoluto no centro da parede. A data marcava 22 de novembro de 1980.


_Encontrou algo que o agradasse, meu jovem? – Saído de trás do balcão, carregado com algumas caixinhas de música e um grande espanador, aparecia um sorridente Cherry Blossom, fitando Snape sobre os óculos de leitura de aros grossos.


_Sr Blossom?! – Snape sobressaltou-se com o súbito aparecimento do homem. Ele sequer havia pressentido qualquer coisa.



_Essa data.. 22 de novembro de 1980... – Snape apontava para o grande relógio. _... é a data em que...


_Exatamente, filho.. é a data em que a bela moça vive hoje.


_Mas, por que eles marcam exatamente esse tempo?


_Porque foi aqui que ela sofreu a dobra temporal. Um misto de elementos ocasionais culminaram na abertura por frações de segundo do Abismo, por onde ela foi tragada.


_Esses relógios... tem a ver com isso, não é? Sinto uma força vinda deles, uma áurea... igual a do senhor, eu diria.


Blossom deu um leve e baixa gargalhada, aproximando-se de Snape e dando-lhe tapinhas no ombro.


_Você é mesmo muito especial, garoto!


Snape sentiu-se um verdadeiro garoto ante aquele homem tão singular. Sentiu-se muito orgulhoso do que ele lhe dissera, mas a lembrança do que ocorreu com Hermione fez com que voltasse a realidade.


_Sr Blossom, aconteceu algo à Hermione hoje, no Hospital, que surtiu efeito nela, no meu passado. Ela foi removida do leito de forma abrupta, que ocasionou até a morte momentânea dela agora, neste tempo, e quase a matou, no meu passado. Por que isso aconteceu?


_Corpo e espírito estão separados e fora de sincronia. Qualquer alteração no espaço físico surtirá efeito imediato. É como um copo cheio d'água: se o copo sofrer qualquer alteração que lhe derrame a água... bem, a água derramada não pode ser reposta.


Snape permaneceu em silêncio, assimilando aquelas palavras, tentando chegar a uma conclusão. Se o corpo é o invólucro que contém a alma, que é o conteúdo, logo o corpo é o 'copo' e a força vital a 'água'. E esse invólucro sofreu dois impactos, o primeiro quando Hermione foi removida para o hospital e, certamente, isso lhe esvaiu a maior parte de suas forças... e agora, por seu pai. Isso sem contar por todas as vezes que os enfermeiros têm que cuidar dela.


Mas o corpo dela não pode ficar intocado, isso lhe acometeria diversas complicações. Ela precisava ser medicada, alimentada, higienizada... sem isso seu corpo também morreria.


_Por Merlin! Ela pode já estar no fim de sua vida!


_Eu temo que sim, Severus. Como eu lhe disse, eu apenas posso me locomover pelo tempo e não pelo espaço. Só poderei trazê-la de volta se ela vier até aqui. Ela precisa retornar ao ponto de partida.


_Mas, mas... nós estamos em Lyon! Estamos na França! Há centenas de quilômetro daqui! Meu deus! Eu a levei para lá! Eu acabei a matando com isso!


_Acalme-se, filho. Sente-se aqui e tente relaxar...


Snape sentou-se numa cadeira adornada de forma suntuosa. Apoiou os cotovelos sobre as pernas escondendo o rosto sobre as mãos. Blossom ajeitou-se num banquinho muito humilde, em frente ao professor, esperando pacientemente que o jovem homem se recuperasse.


_Blossom... o senhor disse que pode se locomover por qualquer tempo que seja... eu.. eu prefiro sacrificar tudo o que esse incidente me trouxe do que deixar que Hermione morra. Eu prefiro morrer pelas trevas, naquela época e perder esses últimos vinte anos de vida... por favor, volte em três dias atrás e evite o que aconteceu, evite que ela caia nesse abismo!


Seus olhos estava rasos d'água e a voz embargada pelas lágrimas que teimava em oprimir. Blossom o olhava tristemente, balançando levemente a cabeça em negativa.


_Perdão, filho, mas não posso.


_Mas por quê? O senhor é poderoso! Tem o tempo em suas mãos! Pode fazer qualquer coisa!


_Não, não posso. Não possuo livre arbítrio. Não posso mudar o que aconteceu, mesmo que eu quisesse... e acredite, amarguei isso milhares de vezes nestes seis mil anos que rejo pelo tempo dos homens na Terra.


Blossom levantou-se, postando-se em frente a Snape, segurando-o pelos ombros. Snape olhava para o alto, para alcançar o olhar bondoso de velho Regente. Sentia-se miserável, diminuto, frágil. Ele há vinte anos atrás havia decretado a morte daquela pessoa que salvou sua vida e sua alma. Maldita ironia trágica!


_Ainda temos tempo.. traga-a até mim.


_Como farei isso? Como poderia me comunicar com meu eu passado?


_Não com ele, mas com ela. Existe um elo que prende a bela menina nesta realidade: o seu corpo. Use este elo para entrar em contato com ela.


_Desculpe Sr Blossom, mas não estou entendendo. – Snape estava ficando impaciente. Por que esses grandes sábios nunca são diretos?


_Converse com ela. Passe algumas horas durante a noite ao lado de seu corpo no Hospital, diga-lhe para vir para a Inglaterra, para vir exatamente de onde ela saiu. Enquanto ela estiver dormindo em sua outra realidade, seu subconsciente estará livre e será fácil de ser contactado.


_Lembre-se: tempo e espaço não existem, isso é apenas uma manifestação do mundo em que vivemos. Ela está aqui, perto de você, sempre esteve.


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Fim do Capítulo XIV - continua...
By Snake Eye's - 2004
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