DUAS REALIDADES

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Duas Realidades
Episódio XVI – Redenção
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"Fogem do vento que ruge
As nuvens aurinevadas,
Como ovelhas assustadas
Dum fero lobo cerval;
Estilham-se como as velas
Que no alto-mar apanha,
Ardendo na usada sanha,
Subitâneo vendaval.

Bem como serpentes que o frio
Em nós emaranha – salgadas
As ondas s'estanham, pesadas
Batendo no frouxo areal.
Disseras que viras vagando
Nas furnas do céu entreabertas
Que mudas fuzilam, - incertas
Fantasmas do gênio do mal!

E no túrgido ocaso se avista
Entre a cinza que o céu apolvilha,
Um clarão momentâneo que brilha,
Sem das nuvens o seio rasgar;
Logo um raio cintila e mais outro,
Ainda outro veloz, fascinante,
Qual centelha que em rápido instante
Se converte d'incêndios em mar.

Um som longínquo cavernoso e oco
Rouqueja, e n'amplidão do espaço morre;
Eis outro inda mais perto, inda mais rouco,
Que alpestres cimos mais veloz percorre,
Troveja, estoura, atroa; e dentro em pouco
Do Norte ao Sul, - dum ponto a outro corre:
Devorador incêndio alastra os ares,
Enquanto a noite pesa sobre os mares."

(Fragmentos do Poema "A Tempestade", de Gonçalves Dias 1823 1864)

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A tormenta desabava sem piedade naquele lugar obscuro. Toda a luz dali havia sido sugada pelas Trevas que se fazia presente através de seus cavaleiros apocalípticos. Lama e sangue se misturavam sobre a calçada de pedras. Risadas e gritos de horror ainda se ouvia ao longe, apesar do barulho quase ensurdecedor da tempestade que castigava impiedosamente.

Impiedade. Era o que realmente fazia parte de si ou lhe havia sido impregnado? O que sentia seu coração naquela hora? Sentia-se totalmente gelado, não pela chuva que caia sem parar, mas sentia-se congelado por dentro, como se não houvesse qualquer sinal de vida em seu interior. Apenas um veneno negro corria por suas veias... estava envenenado pelas trevas.

Caído aos seus pés jazia um corpo inerte sem mais qualquer suspiro de vida. Nos olhos estava impresso o horror de sua morte. Era uma moça jovem que tinha tanto ainda a viver. Severus havia parado no tempo, observando o rosto de sua vítima, ainda quase uma menina. Estava prostrado diante do que fizera, da vida inocente que ceifou, mas talvez não enxergasse aquele corpo, apesar de seus olhos estarem fixos nele.

Respirou profundamente de forma falha, erguendo sua cabeça e encarando o céu negro da tormenta. Raios nervosos retalhavam as densas nuvens e iluminava o caos presente naquele lugar.

A revolta do Céu seria contra o terror que suas criaturas causavam na Terra? Deixou que as gotas pesadas e dolorosas batessem em seu rosto inexpressivo... seria, ao menos, algum dia em sua existência, merecedor de uma tentativa de redenção?

Severus permaneceria horas naquela prostração, como uma estátua oca e sem vida que sentia ser, não fosse pela importunação alheia.

--Acorda, Severus! Tu tá esquisito hoje, cara! Vambora que já acabou! – um companheiro comensal batia pesadamente no ombro do rapaz, despertando-o de seu estado de comoção.

--Deve tá assim por causa do ego inflado... quantos você acertou hoje, Severus? Três, quatro? – um outro comensal dirigia a palavra de forma muito animada.

--Pelo menos poderemos dizer que muitos ali morreram felizes, não? Afinal, a festa parecia animada!

--É, mas acho que havia alguns puros-sangues ali no meio também...

--E tinha mesmo! Mas, foda-se! Quem se mistura com mestiços e sangues-ruins merece o mesmo fim!

Os dois comensais saiam na frente de Severus, conversando muito animadamente, fazendo brincadeiras e piadinhas enquanto passavam por corpos estendidos no chão de pedras. A chuva forte tratava de lavar o sangue e as marcas da destruição daquele lugar.

Severus mirava na direção que iam seus companheiros das Trevas, alguns desaparatando logo em seguida, outros contornavam esquinas e mudavam seu rumo. Mais uma noite de terror havia chegado ao fim. Mais uma vez deixou-se contaminar mortalmente pelas Trevas. O veneno estava tão impregnado em seu âmago que seria impossível limpá-lo de suas veias e de sua alma em algum momento de sua vida.

Era madrugada e a tormenta não dava sinais de que iria parar. Não poderia ir pra casa agora... aquela casa representava para si uma outra realidade, uma máscara de falsidade e mentira... mas que ele pediria a deus que fosse a verdadeira, se ao menos este existisse.

Severus caminhou lentamente pelas ruas completamente desertas até chegar a uma pequena praça sem muitos atrativos. Sentou-se num banco de madeira. Com os cotovelos apoiados sobre os joelhos, descansou a cabeça sobre as mãos espalmadas. Em sua mente e seu coração havia um imenso vazio.

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A noite havia descido apenas há poucas horas quando Snape retornou para St Mungus. Sentia-se muito amargurado. Um gosto de fel em sua boca. A lembrança do que ocorreu há vinte e um anos atrás ainda martelava dolorosamente em sua cabeça... nem aquele beijo, nem o ato de carinho eram suficientes para apagar o que vira depois.

As Trevas inundavam e consumiam a alma de todos que entravam em contato com ela. E lembrava-se o quanto envenenado e absorto pelo mal ficava após aquelas malditas reuniões. Tão absorto e envenenado que poderia causar algum mal até para aquele que lhe fosse caro... e aí estava o seu grande medo.

Rezava a Deus que Hermione tenha acatado a ordem de seu jovem Eu, de que não estivesse naquele apartamento quando ele regressasse. Ela não era tola e não poderia ser justamente agora. Rezava para que ela não se deixasse influenciar pela forma gentil com que seu jovem Eu a estava tratando, que não se deixasse influenciar por aquele beijo, por aquele brevíssimo momento terno... fora verdadeiro, mas talvez não fosse suficientemente forte para se opor ao sangue contaminado pelas Trevas.

Chegou à sala de estar dos medibruxos, encontrando Clara, a medibruxa responsável por Hermione. Precisava ter uma longa conversa com ela, precisava contar-lhe sobre o que Cherry Blossom havia dito e recomendado. Como responsável, ela precisava estar a par de tudo e assim poderia zelar ainda mais pelo bem estar de Hermione ali, naquele hospital.

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A pequena loja parecia desabitada há anos. Muita poeira e lixo entulhado espalhavam-se por todos os cantos. Apenas um tímido feixe de luz adentrava aquele lugar através da vitrine que ocupava quase toda a extensão da parede de frente, onde ficava a porta de entrada. Lá fora, uma tempestade desabava violentamente. Gotas de chuva batiam ruidosamente na vidraça e estava tão intensa que parecia formar uma pequena cachoeira. A luz se difundia pela água que escorria ali, dando um aspecto bonito e nostálgico, apesar de tudo.

--Ilumine-se!

Com o simples comando daquela voz mansa, todo o ambiente se iluminou, deixando a mostra toda a sujeira do local. Próximo à porta de entrada, havia um vestígio no chão, como se algo tivesse sido arrastado ali. A parte levemente limpa no chão denunciava a silhueta do corpo de Hermione, enquanto ela esteve desacordada por horas, caída naquele chão poeirento.

--Está inidentificável... ninguém diria hoje que você será uma graciosa lojinha de antiguidades... – O velho Cherry Blossom falava às paredes, percorrendo com seus olhos de azul límpido por todo o ambiente, fixando em seguida na parte levemente limpa no chão diante da porta de entrada.

--Oh, bela menina... você precisa retornar ao seu ponto de partida... este tempo não a pertence...

Entrelaçou os dedos, cerrando-se as mãos calejadas e levando-as até sob o queixo. Como se esquecesse de sua alegria habitual, suspira profundamente um suspiro de exaustão. Fechando os olhos, deixa sua mente divagar para longe daquele mundo, para o plano real.

--Jehovah, meu mestre, meu senhor... O seu capricho já foi atendido... permita que a bela moça retorne ao seu tempo de fato...

...

--Acha-te mesmo que és um capricho, caríssimo Regente Hubble?

Blossom saiu de seu devaneio sobressaltado ao ouvir aquela voz de criança falar-lhe marotamente. Após o breve susto, seu típico sorriso se alargou ao focalizar aquela pequena figura mirrada e de aparência andrógena lhe sorrindo, sentada sobre o balcão às costas do velho regente.

--Perdão, Sr Puppet Master, mas é essa a impressão que tenho...

--E estás certo, Hubble... mas não apenas um capricho, tu bem sabes...

--Sim, eu sei, meu Senhor... mas, já não é o momento da bela moça retornar para seu tempo real?

A criança de cabelos branco-azulados em cachos e olhos de azul tão claro que se confundiria com a córnea se não fosse pelo círculo azulado que envolvia a sua íris, alargou ainda mais o sorriso, deixando escapar uma leve e gostosa gargalhada. Entrelaçou os dedos, esticando os braços a sua frente, se espreguiçando. Salta do balcão empoeirado e leva as mãos entrelaçadas à nuca, como um apoio à cabeça, num típico gesto de desdenho e comodismo. Vira-se para encarar Cherry Blossom, que a olhava inexpressivamente.

--Todo o tempo é real uma vez que o tempo absoluto inexiste... o ciclo ainda não se fechou e minhas crianças escolhidas ainda não completaram o ato dessa cena. Continues a fazer teu trabalho, Caro Hubble... és também uma personagem dessa peça.

O ente caminhou até a porta, transpassando-a como se não fosse sólida. Blossom recostou-se ao balcão, alisando os pouquíssimos fios de cabelo que ainda resistiam no alto da cabeça. Soltou um muxoxo, dando uma leve risada em seguida.

--Então sou uma personagem dessa peça... então é por isso que estou tão envolvido com tudo. O Senhor realmente escreve certo por linhas tortas...

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Após a conversa com a medibruxa Clara e uma refeição rápida e leve, Snape foi até o leito onde jazia Hermione. A palidez anormal de sua pele lhe comprimiu o peito. Queria espantar qualquer pensamento sobre a possibilidade de ela nunca retornar, de ela acabar morrendo por conta disso. Mas não conseguia. E ainda havia o medo, o medo de seu Eu passado ter feito qualquer mal a ela... esperava que o amor que sabia que aflorava no jovem Severus fosse mais forte que as Trevas, fosse mais forte que o veneno que o dominava.

Postou-se sentado numa cadeira ao lado da cama. Ainda olhava atentamente o rosto sem vivacidade da moça, condoendo-se com cada pensamento pessimista que tinha a respeito de tudo que estava acontecendo. Levou a mão ao rosto de Hermione, tocando-o levemente com a ponta dos dedos, ajeitando os cachos que repousavam sobre o travesseiro de fronha branca.

Era necessário, vital, entrar em contato com ela, assim como sugeriu Cherry Blossom. Talvez ainda fosse cedo demais para ela estar dormindo, para estar com seu subconsciente liberto da matéria, mas precisava fazê-lo, não importando o tempo e por quanto tempo. Precisava fazer com que Hermione tivesse o estalo de ir até à Inglaterra, ir ao Beco Diagonal, ir até a loja que um dia seria o antiquário, onde tudo aconteceu...

Sua mão deslizou do rosto de Hermione para o ombro, fazendo o caminho de seu braço direito até encontrar a mão da moça sob a colcha grossa de tecido esverdeado, descobrindo-a.

Com muito cuidado, envolve a delicada e fria mão de Hermione entre as suas, levando-a até seus lábios, mas sem beijá-la. Sentia que se o fizesse, seria como um beijo amargo de despedida. Não conseguia se desvencilhar desses pensamentos tão desafortunados. Permaneceu por alguns minutos dessa forma, os olhos cerrados, envolto de um certa tristeza. Mas ainda sentia o perfume de lírios, que deveria ser a fragrância natural dela.

--Você é um anjo, não é? – repetiu num sussurro a mesma frase de seu jovem Eu.

Levantou a cabeça, levando uma das mãos de volta ao rosto de Hermione, acariciando-o levemente, enquanto a outra mão segurava a pequena mão da garota.

--Você precisa voltar, Hermione, precisa ir até ao antiquário... precisa voltar pra Inglaterra o quanto antes... por favor, retorne... você tem muito o que viver ainda, muito...

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Retornou para casa. Não havia lógica em ficar adiando isso. Mesmo sendo uma mentira, essa falsa vida também lhe fazia parte, e se por algum acaso do destino ele conseguisse livrar-se das Trevas, seria essa falsa vida que lhe restaria.. e essa farsa, essa mentira se tornaria finalmente verdadeira.

Sua veste de comensal estava lastimável. Estava molhada, enlameada, fria. Algumas partes estavam rasgadas. Havia ferimentos em seu rosto e braços. Poderia ter se recomposto, com sempre fazia, mas naquele momento preferia manter-se daquele jeito, como se fosse um ínfimo castigo, uma forma de não esquecer em poucas horas o que havia feito naquela noite.

A prova que seu mestre também podia ser benevolente quando quisesse, seguida de uma cruciatus para lembrar-se disso... o ataque ao um pequeno vilarejo próximo ao Beco Diagonal... a tortura daquelas pessoas que se divertiam despreocupadamente numa festa infantil... os assassinatos... uma menina sangue-ruim morta como seu mestre ordenou que fizesse... ele precisava dar um fim naquela brincadeira... ele precisava matar Hermione!

Ao aparatar dentro de seu apartamento em Lyon, França, retirou de imediato o capuz, como se fosse aquilo a pesar em sua cabeça. As ordens de Voldemort pulsavam em sua mente e ele deveria provar mais uma vez com quem estava a sua lealdade... a vida de Hermione serviria como mais uma prova dessa lealdade. Ela era realmente valiosa.

--Severus...

Com um sobressalto e olhos arregalados pela surpresa, Severus vira-se bruscamente para a direção daquela voz doce e triste que chamava-lhe num sussurro. A escuridão do lugar foi quebrada com o acender do abajur que ficava ao lado do sofá, no canto da parede. A luz fraca era suficiente para iluminar o ambiente e deixar quem ali estava perceptível aos olhos.

Hermione levantou-se da poltrona no canto, pondo-se em riste diante de Severus em apenas alguns passos. A luz fraca permitia que fosse visto quanta dor e amargura estavam formados no semblante daquela garota.

Severus estava estupefato. Esperava não encontrá-la em casa. Esperava que ela estivesse com John Michaelsen bem longe dali. Sentiu o sangue envenenado pelas Trevas correr mais rápido e forte em suas veias. Cerrou os punhos com raiva.

--O que diabos você faz aqui?! – Severus falou entre os dentes.

--Esperando por você... eu não poderia deixá-lo sozinho, não quando você mais precisa de algum apoio.

--Esperando por mim?! Apoio?!! Você é idiota?! Não entendeu o que eu falei antes de sair daqui, garota burra?!

Severus afastou-se mais, recostando-se à parede oposta onde estava Hermione. Leva as mãos à cabeça, sentido-a pulsar furiosamente. Ele não poderia lutar contra aquilo... ele teria que matá-la, mesmo que uma parte de si, muito debilitada, teimasse em lhe dizer que a amava, que ela era a Luz que tanto procurava!

Aquele veneno levaria algum tempo ainda para se dissipar, seria o tempo necessário para voltar ao seu total controle e não cometer qualquer maldade contra Hermione, mas ela não poderia estar ali, não agora, não nesse momento enquanto as Trevas ainda fluíam dentro de si!

--Por que está aqui, sua idiota?! Por que não foi com Michaelsen?! EU MANDEI QUE FOSSE EMBORA?!!

--NÃO! – Hermione engolia uma lágrima, que descia amarga pela garganta. Tudo aquilo era doloroso demais, mas não poderia fraquejar. --Você precisa de apoio, Severus! Você não pode continuar nessa vida!

Severus soca com força a parede com as duas mãos, segurando-se para não avançar para cima da garota. Mantinha as mãos dolorosamente serradas em punho, como se tentasse impedir que elas cometessem um crime.

--O QUE VOCÊ SABE SOBRE MINHA VIDA, MALDITA SANGUE-RUIM?! QUEM VOCÊ ACHA QUE É PARA DECIDIR QUALQUER COISA SOBRE A MINHA VIDA?!

Hermione não conseguiu suprimir um soluço com aquelas palavras, com aquela atitude. Aquele não era o Severus que conhecia. Não podia ser o mesmo Severus que havia tratado-a com tanto carinho horas antes.. não podia ser o mesmo que havia lhe beijado de forma tão apaixonada naquela mesma tarde! Aquele Severus diante de si, acuado, era muito diferente. Era evidente que aconteceram coisas muito ruins. A Treva que o envenenava e envolvia como uma neblina esparsa, era quase palpável.

Engoliu novamente o pranto. Não era hora para se acovardar e desistir. Teria sido mais fácil e simples se tivesse feito o que ele falou antes de partir, mas preferiu o mais difícil: ficar e tentar lhe dar algum apoio. Agora, precisava arcar com as conseqüências que sequer previra.

--Severus, desista de uma vez por todas das Trevas.. não vê o quanto isso lhe faz mal?

A garota aproximava-se lenta e cautelosamente. Precisava trazer Severus de volta, precisava tirar-lhe do meio daquela névoa de Trevas.

A tristeza nitidamente estampada no rosto da garota, a sua voz doce e suave a lhe dizer exatamente que uma pequena parte sua lhe gritava desesperadamente, colocavam Severus numa batalha interna dolorosa, com sentimentos opostos se chocando mutuamente. Empurrou-se contra a parede ainda mais, tentando impedir a si mesmo de cometer um terrível erro.

--Você é completamente estúpida! Não tem noção do perigo que está correndo? Você se acha importante? A brincadeira acabou, sangue-ruim! Meu mestre não pode duvidar da minha lealdade!

Severus mantinha a cabeça abaixada, mirando o chão enquanto falava de forma cansada para Hermione. Subiu o olhar apenas para ver as lágrimas que vertiam pelo rosto da garota, lembrando-se de tudo que aconteceu até então entre eles. Suas lágrimas, seu mal-súbito, o estado em que a encontrou no Beco Diagonal... e lembrou-se daqueles olhos vermelhos lhe invadindo a alma, da desconfiança e ordens de seu mestre, da dor pela cruciatus, o ataque cometido, a tortura até a morte de gente como ela...

E por que com ela seria diferente?

Ela era uma maldita sangue-ruim e por sua culpa perdeu um pouco de credibilidade com seu mestre.

Ela não era ninguém. Era uma mísera desconhecida envolta de segredos e mentiras... talvez lhe fosse mesmo uma armadilha.

Avançou lentamente na direção da garota, que o encarava. Hermione sentiu o coração falhar. Havia finalmente chegado a sua hora? Já estivera próxima da morte outras vezes, mas nenhuma lhe causava tanta angústia como essa. Acabou. Tudo parecia ser uma maldita ironia do destino. Havia sido jogada no passado, numa época em que sequer ainda havia nascido... ela seria morta antes mesmo de nascer. Acabou se envolvendo e se apaixonando justamente pela pessoa que ela menos apreciava em seu próprio tempo. Mas, ao menos, essa angústia de se estar presa em outro tempo terminaria, finalmente.

Abaixou a cabeça. As lágrimas ainda rolavam em seu rosto. Ainda havia uma última esperança de tirar Severus Snape das Trevas. Ele sairia das Trevas de qualquer forma, mas talvez ela fosse a responsável por isso. Se o acaso fez com que tudo isso acontecesse, deveria haver um propósito por trás disso. E sentia ser esse o propósito: libertar Snape das trevas!

--Você é uma pessoa brilhante, Severus... pode facilmente conseguir tudo que quer apenas com sua própria dedicação...

Severus parou ao ouvir aquelas palavras, ao ouvir a mesma opinião que havia desenvolvido sobre si mesmo já algum tempo... como ela poderia saber sobre isso? Estaria brincando com ele? Estaria dizendo isso apenas por estar desesperada por sua morte iminente, embora não demonstrasse tal coisa?

Hermione o encarou, olhando-o diretamente nos olhos. Sua expressão era amarga e mostrava toda a força que continha dentro de si, apesar das manchas de lágrimas em seu rosto.

--...não se deixe enganar, Severus! Tudo o que as Trevas dá ela tira em dobro! Voldemort não dará poder e riqueza a ninguém! Ele está preste a sucumbir pelo próprio erro de acreditar numa profecia pela metade! E se você estiver vivo depois disso, só lhe restará os restos de uma vida miserável!

Um turbilhão de emoções e pensamentos invadia a cabeça de Severus ao ouvir aquelas palavras ditas com tanta força e convicção! Não, a garota não era mesmo uma pessoa qualquer! E havia verdade no que ela dizia! Verdade? Sua cabeça começou a latejar dolorosamente, o sangue esquentando nas veias de novo. A maldita sangue-ruim era mesmo uma ameaça! E ela sequer tinha respeito por seu mestre! Aquela maldita língua imunda tinha a audácia de pronunciar o nome do Lord das Trevas!

Com uma veia pulsando furiosamente em sua temporã e olhos flamejando de ódio, Severus saca sua varinha, apontando-a diretamente sobre o coração de Hermione.

A garota não pode conter a surpresa e o medo que tentava ocultar. Arregalou os olhos, mas logo abrandou sua expressão, desfazendo-se num leve sorriso afetado.

--Nós ainda nos veremos por muito tempo numa outra época, Severus!

--AVADRA KE...

Filetes de raio verde se formaram na ponta da varinha de Severus, que prensou ainda mais em sua mão. Estava preste a cometer o maior erro de sua vida. Seu coração batia descompassado, doendo-lhe o peito. A dor em sua cabeça latejada cada vez mais forte. Sentiu sua respiração travar na garganta e algo escorrer por seu rosto. Não podia fraquejar!

--AVADRA KED-droga! maldição! ... DORMIRE!

Os filetes verdes mudaram subitamente para um azul translúcido que atingiram Hermione em cheio no peito, formando uma névoa brilhante e azulada que a envolveu por completo. A garota perdeu os sentidos de imediato e antes que caísse no chão em sono profundo, Severus correu até ela, abraçando-a com força.

O rapaz deixou-se cair sentado no chão, abraçado fortemente à Hermione. Apertou-a ainda mais contra seu corpo e deitou sua cabeça no peito da garota a fim de ouvir seus batimentos cardíacos. Queria ter a certeza de não tê-la matado.

A pulsação e respiração de Hermione estavam plácidas como alguém que dorme profundamente. Manteve-a por muito tempo ainda aconchegada em seu colo, como se a ninasse. Deixou que todos seus sentimentos fluíssem naquela hora. Estava cansado, muito cansado de oprimir toda a dor e angustia que dilaceravam sua alma. E deixou que lágrimas vertessem, mergulhado entre os cabelos da garota.

E sentia algo sendo aliviado em seu coração.

Sentia como se o peso do mundo saísse de seus ombros.

E, pela primeira vez, sentia que era possível adquirir sua liberdade e sua redenção.

Agora que ele havia vencido o veneno das Trevas que corroia sua alma.

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Fim do Capítulo XVI – continua...
By Snake Eyes – 2004
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N/A: Dedicando este capítulo à Avoada, leitora constante e fiel... enquanto ela gostar desse tipo de leitura, nunca estaremos a sós! ,

Sobre o poema de Gonçalves Dias: Os fragmentos do poema "A Tempestade" (usados da 6ª à 9ª estrofe) foram para se encaixar na ambientação da cena do início deste cap, sendo que há um porém muito interessante que apenas vi depois que já havia inserido justamente tais estrofes no cap da fic. No livro de onde retirei o texto, vem uma dissertação a respeito da obra: "A associação Amor/Morte, que se dá no poema a partir da 7ª estrofe, é uma constante no Romantismo. Neste caso, o poeta sente-se infeliz por não morrer, uma vez que a 'ruína do viver do coração', isto é, o amor impossível, é pior que a própria morte." Então, podemos encarar os fragmentos não apenas como pano de fundo para o cenário em que ocorre o fato neste cap, mas também como uma figuração para os sentimentos do nosso jovem Snape. Mas sem olhar pra isso buscando alguma 'profundidez', isso é só uma reles fic; encare isso só como curiosidade, falô!?

Hubble: expressão de Cosmologia, ciência que estuda o espaço. "Tempo de Hubble" é o nome que se dá à idade estimada do Universo com base no bigue-bangue (explosão que deu início ao Universo).