Rede – Emaranhados de uma vida.
Capitulo 1 - Loucura
- O vento... Ele não sopra...
Murmurou a figura masculina atônita ao centro de uma rua completamente estática. Os fios elétricos formavam grandes emaranhados acima dele, tingindo a sua visão celeste de filetes negros e embaraçados. O céu havia tomado uma cor rubra. Um rubor morto. O vento realmente não soprava.
- Está tudo tão morto. – ele não conseguia sentir nem mesmo sua existência naquele local. Era como se tudo fosse estático e efêmero demais para estar realmente ali – Tudo tão pálido...
As cores haviam perdido toda sua majestade, e haviam tomado um ar lânguido. A apatia local parecia se prolongar nas frases do rapaz que insistiam em criar tamanho eco. Tudo parecia morto.
- É belo... E triste. – ele agora tinha a cabeça baixa e falava em um tom quase sufocado, e os cabelos caíam-lhe a face, escondendo-se de alguma coisa – Você não acha ?
A pergunta ecoou como todas as frases anteriores. Porém desta vez fora um pouco diferente. Parecia que as palavras seguiam o fluxo de um vento que não existia, buscando ouvidos que não se faziam presentes. Ele levantou a cabeça e sorriu. Um sorriso cínico e satisfeito. Para ele, alguém havia ouvido.
- Não se cansa de me perturbar? – erguendo os braços, mantendo-os abertos, iniciou um movimento calmo e intuitivo. Girava ao seu redor – Não vês? Tens medo. Está só. Você pode ser um Deus, mais ainda sim está só.
Assim que a última sílaba havia soado e ecoado pela rua deserta e parada no tempo, um barulho se fez. Mais parecia um zumbido, ou um gemido. Não houve tempo suficiente para prestar a atenção e o vento, antes inexistente tragou o rapaz em uma tormenta raivosa. Tudo girou em sua visão, as coisas já não tinham mais lugar, os sons não existiam e a efemeridade de tudo aquilo se esmaecia conforme seus olhos se fechavam dando lugar á escuridão.
Levemente abriu os olhos. Era manhã. O sol tentava avidamente atravessar os filetes da persiana do quarto. Aquilo era real. Os momentos anteriores não passavam de um sonho. O sol trazia vida. O quarto, as paredes pálidas e alvas demonstravam alguma existência. A bagunça inerente de um quarto que há muito se esquecera e perdera-se no tempo se fazia presente, mostrando que alguém vivia ali. Alguém real. Yuki sorriu.
- Então? O que acha do meu mundo? – Pronunciou calmamente abafando as últimas sílabas enquanto observava o pálido teto que embalava seu olhar. – Ele é entediante? – se prolongou o rapaz que ainda permanecia deitado em uma cama mal arrumada.
Mal o rapaz se ergue, e a pequena Tv do quarto liga espontaneamente. A imagem é de um tom azul, forte o suficiente para machucar os olhos de Yuki. Porém, logo o azul se desfaz dando lugar a uma imagem embaçada. A forma lembra uma cabeça humana. Aos pouco vai ganhando forma. É uma menina. Trajava uma roupa estranha. Parecia metálica e negra ao mesmo tempo. Ela tem os olhos vagos e vazios e olha com firmeza para Yuki.
- Decidiu se mostrar? Ainda não me disse o que acha do meu mundo? – indagou o rapaz com um bom tom de escárnio – Por acaso tem medo dele também?
- Ele não é seu. Ele é meu. – provocara a menina da televisão com uma voz titubeante e digital. – Tão meu quanto suas memórias. Quanto sua vida. – continuou.
Logo que a voz se desfez a televisão apagou-se em um rompante, fazendo com que sua tela voltasse ao negro habitual de seu desuso.
Yuki zangou-se com a aparição. Seu rosto frisou-se. Ele queria saber o por quê dessas brincadeiras. Já fazia três semanas que esses sonhos vinham todas as noites. Porém, logo sua ira se foi ao reparar que pela primeira vez ela havia se mostrado. Ela! Quem diria. Uma garota! Sua mente estava lhe pregando peças demais ultimamente. Tinha certeza agora que estava ficando esquizofrênico.
Olhou mais uma vez para o quarto, e deixando escapar um breve suspiro decidiu que iria arrumá-lo ao chegar do colégio. Afinal sua mãe chegaria de viagem daqui a dois dias.
Ao descer as escadas lembrou-se que seu pai ficara até tarde trabalhando na sala, afinal ele havia dormido á frente de seu Navi portátil, e ainda jazia lá, emitindo um ruído suficientemente alto para acordar qualquer um que tentasse dormir ao seu redor.
- Nada muda... – murmurou o rapaz enquanto abria a geladeira.
Passou alguns instantes olhando para dentro da branca caixa gelada, porém tudo que restava a essa altura eram duas míseras latinhas de um engradado de cerveja. Pegando uma delas, abriu-a com desleixo.
-Ótimo. Minha mãe irá nos matar quando descobrir que meu café da manhã foi uma cerveja choca!
Ele sabia o quanto sua mãe odiava essas manias ocidentais que seu pai havia adquirido com as viagens pela empresa. Durante anos ela havia se esforçado ao máximo para cuidar daquela família, e em pouco tempo tudo havia se desvirtuado. Seu pai não parava mais em casa, ela havia arranjado um emprego de meio turno que a estava consumindo tanto quanto os problemas familiares. Fazia um mês que ela havia viajado para a casa de seus avós. Lá era calmo o suficiente para que ela pudesse descansar. O Stress havia provocado vários mal estares e além de tudo ela não parecia muito feliz ultimamente. Foi uma boa coisa. Seu pai também estava muito distante da família, e tudo indicava a Yuki que aquele antro familiar estava se esvaindo. As poucas palavras que aquele homem carrancudo que um dia teve a felicidade de chamar de pai pronunciava agora eram ásperas ou ordens. Ele sabia que sua mãe estava sofrendo com aquilo. Não via a hora em que um deles desejasse o divórcio. Seria melhor para os três.
Por sua vez, Yuki praticamente não tem parado em casa. E quando pára se tranca em seu quarto á frente de seu computador e faz de tudo para pronunciar poucas palavras. O medo de ser o estopim para o deteriorar daquela família o tinha deixado cada vez mais distante. E ele sabia disso. Na verdade até gostava. Não precisava observar o dia-a-dia de seus pais com aquele olhar vazio e crítico, amaldiçoando a cada instante o possível futuro que o levaria a ser igual a eles. Estava longe de ser garoto rebelde, mas estava perto de odiar o mundo da forma mais sincera possível.
Percebeu então que continuava parado, bebendo a cerveja e olhando vagamente para seu pai, dormindo duramente na mesa fria. Na verdade, pouco se importava com a cena. Havia se perdido nos seus pensamentos.
- Acho que estou realmente ficando louco.
Resolveu então subir novamente as escadas e tomar um banho. Aliás, precisava se arrumar para o colégio. O tempo já se fazia mais do que curto para ele. Antes de subir olhou mais uma vez para a sala semivazia. A tranqüilidade que normalmente o faria feliz o deixou pensativo. Algo estava diferente. Ele passou as mãos aos olhos, acreditando que era apenas o sonho. Porém, ao voltar a olhar para sala, teve ainda mais certeza de que o sonho poderia ser um problema mental.
Lá estava ela. A mesma menina da Tv. Sua imagem parecia tão pouco sólida quanto uma RV. Seus olhos eram ainda mais vazios e opacos. Olhava rispidamente em sua direção. Procurava seus olhos. Um misto de ânsia e agonia subiu pelo corpo de Yuki. Suas pernas perderam o equilíbrio por alguns momentos. Seus pêlos de eriçaram e sua espinha esfriou.
Aqueles olhos... – pensava o rapaz que continuava atônito ao pé da escada.
Bastou um piscar de olhos para que tudo aquilo se desfizesse. A imagem já não estava mais lá. A ânsia já havia sumido e seu corpo voltou a se aquecer. Aqueles olhos haviam sumido. Ao mesmo tempo as forças do rapaz também. Suas pernas titubearam de vez e ele caiu no chão espantado. Não sabia o que pensar ou o que fazer. Seus olhos pesaram. Sua visão tornou-se breu e o silêncio martírio. Em poucos segundos ele estava desacordado.
