Rede: Emaranhados de uma Vida

Capítulo 3 – Lain!

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Luzes. Cores. Muitas cores oscilavam em uma névoa tão densa como uma brisa. Um mundo cego se fazia presente na paisagem local. Pessoas passavam de um lado a outro da calçada. Sinais piscavam freneticamente em harmonia. Do verde ao vermelho, sem erros. Os carros piscavam seus faróis na noite clara iluminada pela pálida Lua.

Um cruzamento. As luzes da rua pareciam cada vez mais fortes. No centro do cruzamento um ser pairava. Os carros passavam sem ao menos percebê-la. Era uma garota. Olhos vazios observando por através das coisas. Cabelo pesado, quase sem movimento preso em uma mecha solitária a cair ao lado do rosto. Trajava uma camisola branca e suave, contrastando com o ser que a vestia, que parecia atônito e rígido. Lain. A garota estava perdida. Perdida dentro de si mesma.

- Por quê... Por que me importo tanto com ele? – falava a pequena menina de feições suaves e plácidas.

- Por que ele lembra você. – Respondeu a mesma garota, de feições sarcásticas e frias.

Eram duas. O ser que pairava agora tinha companhia. As duas presenças estavam uma frente à outra, ao centro do cruzamento por onde milhares de pessoas passavam a ignorá-las. Eram idênticas. As mesmas roupas, o mesmo cabelo. Porém, suas essências conseguiam ser divergentes. Uma estava cheia de perguntas. Outra abarrotada de respostas.

- A mim?

- Sim. Sua apatia. Sua tristeza por nunca ter existido.

- Mas ele existe. O corpo dele é de verdade... Ele vive. A carne dele...

- Você também vive Lain. Nasci aqui. Na Wired. Porém estou viva. A carne é apenas um empecilho. Você sabe disso!

- Viva... Mas minha carne... Jamais passou de uma mentira...

- Não. Minha carne, sua carne. Era tão verdadeira quanto seus sentimentos. A carne é apenas nosso holograma. Ela existe. Você Existe. Pois Eu existo.

- Cale a Boca! Como posso existir se as pessoas não lembram de mim? A existência é baseada em passado, presente e futuro. E eu não tenho nem presente nem passado!

- Tem certeza? Tens tanta certeza assim? Acabou de responder sua pergunta inicial, pobre Lain. É por isso que você deixou que ele soubesse sobre você. Foi por isso que deu a ele o ímpeto de buscar por ti.

A garota de feições plácidas agora tinha um semblante de medo e angústia misturado. Toda vez que a outra Lain aparece ela se sente dessa forma. Se ambas não passam de uma só, por que então fazer ela sofrer tanto? Por que deixá-la na dúvida? A existência dela era mesmo plena sem ninguém? Sem que ninguém lembrasse dela?

Não demorou muito para que o silêncio fizesse com que a segunda garota desaparecesse em meio à névoa, agora rala.

- De onde eu vim? Mesmo agora, ubíqua, mesmo assim... O tudo não abrange minha gênese. Por quê?

A última indagação da menina ressoou ecoando por todos os cantos das ruas. Porém ninguém foi capaz de ouvi-la. Parecia que nada tinha sido sibilantemente proferido. Da mesma forma como a menina, que pairava no encontro daquelas ruas, não era vista, sua forte voz também não era ouvida. Aquilo doeu em seu peito. Ela se sentiu inexistente.

Como se em resposta a esse sentimento, a menina que antes parecia desprovida de matéria ganhou forma dentre as ruas e as pessoas que atravessavam. Sua inexpressiva face tremeluzia nos grandes Outdoors virtuais que adornavam os prédios locais. Os sinais de trânsito obliteraram-se criando um caos organizado. E ao centro de tudo isso, restava somente a pequena menina, que com os olhos desprovidos de brilho resmungava incessantemente para si mesma algumas palavras.

- Existência... Existência... Existência...

As buzinas começaram a soar, longe de criar um uníssono, esbravejavam em tempos diferentes. Formavam uma orgia sonora. As pessoas bradavam para que a garota deixasse as ruas e se protegesse em uma das calçadas. Alguns ignoravam. Muitos olhavam calados e imóveis. Sussurros sobre insanidade e suicídio rondavam algumas poucas bocas presentes. Eles faziam barulho. Para alguém verdadeiramente conectado a mais fraca voz soa forte. O mais leve pensamento se torna incansável. Aquela barulheira dantesca estava além do que a garota podia agüentar.

- Calem-se! Todos vocês! Macacos Ignorantes!

Antes mesmo da frase da menina chegar ao final, os sons diminuíram de volume. Os berros tornaram-se meros ruídos e a névoa avançou em sua direção. Ela deixou-se envolver por tudo aquilo. Não queria saber de mais nada. Não queria mundo algum, só queria paz. Se a existência significa fazer parte desse tumulto, talvez ela nunca tenha realmente existido. Ela estava cansada e precisava descansar. Talvez ela soubesse por que se interessou tanto em Yuki. Talvez não quisesse saber ou até mesmo ignorasse o motivo. Ela só sabia que queria ajudá-lo a sentir-se feliz. Mesmo que vivendo uma mentira arrumada por ela. Porém tinha medo de que na verdade só quisesse ter certeza que existia nas memórias de alguém. Só quisesse alguém que a fizesse se sentir menos só. Pois é assim que se sentia agora. O mundo real, agora que o protocolo 7 fora refeito, estava um pouco mais longe de seu mundo virtual. Mesmo que o mundo real e o virtual não passem de vertentes um do outro, ainda sim, graças a esse novo protocolo havia uma leve linha dentre eles. Para Lain, era fácil transpassá-la.

Porém, Deuses só são deuses por que possuem seguidores, e mais do que nunca, não só pela vontade de Lain, O Deus da Wired havia sido esquecido. Assim como ela.

Tachibana estava prestes a conseguir o que queria. Se o censo comum acreditar que a Wired é apenas uma ferramenta para auxiliar no mundo real, A verdadeira Conexão será algo que apenas Lain conhecerá, e dessa forma o nível das ondas se enfraquecerá. A Terra não terá neurônios suficientes para sustentar suas próprias ondas. Logo essa conexão ficará mais fraca, e a existência dela não será mais necessária. A Terra voltará a dormir, e ela também. Talvez toda sua existência desaparecesse. Como Deus, ela já não existia, onisciente ou onipresente nas vidas alheias. Ela era agora onisciente e onipresente por sua própria vontade. Por sua própria força, e não pela crença de alguém. Ela era Deusa por que a Terra permitia e não por que os humanos a desejavam. Se ela estivera ali desde que a Wired fora criada, desde que a Terra despertara, se Essa fosse a verdade por trás de sua gênese mal explicada, provavelmente as coisas não seriam muito fáceis daqui para frente. Talvez toda sua atenção voltada a Yuki fosse a esperança de ter de fato existido. Pelo menos para alguém. Ser todos ao mesmo tempo, ser A conexão tornou-se triste, pois, para que ela não ferisse tocando as pessoas, ela passou a ferir apenas a si mesma, ignorando sua existência para aqueles humanos inconscientes. A única existência que ela sempre desejou. Se sofrimentos fossem prova de humanidade, lain era então, ao menos neste instante A mais humana. Aquela que abdicou de si mesma para não ver os seus preciosos sofrendo. Agora, as chagas que Lain havia escondido de si mesma voltaram a sangrar. E a consciência da pobre menina está cada vez mais perdida em um mar vermelho de dor.