Capítulo 3:

As nuvens negras forravam o céu num manto espesso, e os pássaros sequer se atreviam a voar para longe de seus ninhos. O dia havia começado morno, embora úmido, mas agora já havia esfriado bastante. Omi entrou em seu quarto e trancou a porta. Vestiu qualquer blusão de lã mais grosso, distraído, e então se atirou sobre a cama macia e protetora. A grossa coberta logo saiu de seu estado imaculadamente lisa para envolver todo aquele corpinho pequeno e frágil. Virou-se de frente para a janela, e resolveu observar a paisagem. As árvores se agitavam com o vento, e várias folhas amareladas se desprendiam, indo cair nos quintais e nas calçadas, sempre girando em redemoinhos misturados com poeira. Ao norte, as nuvens estavam branco-acinzentadas, e podia-se ver contra a paisagem o chuvisqueiro ralo. Para frente era quase impossível enxergar algo, de tão fechado que estava o céu. A chuva caia pesada, e só aumentava, encharcando a rua e criando rápidos filetes da água que corriam pela sarjeta, arrastando junto consigo grandes massas de plantas já apodrecidas. Já ao sul, parecia não haver nuvens, mas apenas muitos relâmpagos cortando uma parede cor de chumbo, exatamente onde a cidade crescia e se alargava, com inúmeros arranha-céus.

Aya não tem o direito de ficar perguntando sobre minha vida. Não mesmo... Omi parou de observar aquele cenário deplorável e deitou-se encolhido na cama, passando a coberta até por cima de sua cabeça. Quem sabe assim, escondido, não lhe importunavam mais? Realmente Aya não tinha direito de se meter em sua vida, já que também nunca deixava os outros se meterem na dele. O ruivo sempre era tão fechado em seu próprio mundo, misterioso... Ao menos era essa a primeira impressão que se tinha dele. Mas para quem já o conhecia há mais tempo, como o chibi, o ex-espadachim era um antipático, egoísta, totalmente voltado para si e que não se importava com nada mais alem de seus propósitos, deixando em segundo plano as coisas menos importantes. Ao menos era assim que Omi pensava, a maneira como estava convencido.

O calor de seu cobertor começou a envolvê-lo como um confortável sonífero. Estar assim, no escuro, calor e encolhido lhe fazia sentir novamente dentro do ventre de sua mãe. Mãe? Será que podia pensar nisso? Será que algum dia tivera uma mãe de verdade? Já se perguntara isso muitas vezes, mas agora isso era cada vez menos freqüente. Não que não tivesse mais importância, tinha sim, e muita! Mas pensar nisso, se indagar se algum dia teve uma família, se em algum momento já fora amado incondicionalmente por uma pessoa de braços quentes e pele perfumada, lhe fazia sofrer muito. Cada vez que pensava no assunto, seu coração doía profundamente. Era quase como um autotormento, e acabou chegando à conclusão de que esquecer seria melhor para ele. Mas agora estava sofrendo, porque Aya se metera em sua vida, e isso o deixou tão em pânico que não tivera outra opção se não fugir e refugiar-se em seu quarto. E tanta tristeza lhe fez chegar a outros campos de sua mente, aqueles onde ficavam as memórias mais distantes, e novamente ficara chocado ao se deparar com um imenso e sólido vazio, como um muro de altura e extensão infinita. Por que não podia lembrar? Será que havia acontecido algo tão ruim que o traumatizara? Ou então não podia se lembrar de nada porque não houvera nada? Ambas as hipóteses eram ruins, e tentou logo descartá-las, buscando relaxar o corpo e a mente. E dormir.

Mas se lembrar de tantas coisas ruins havia descarregado muita adrenalina em seu corpo, e agora estava completamente acordado. Estava consciente que logo isso o deixaria cansado, muito cansado, mas não ainda. No momento, o que era mais necessário era descarregar aquela raiva em alguma coisa... Só não sabia o quê. A maçaneta da porta girou. Ah, não! Muita ousadia Aya vir até meu quarto!

-Saia!

Girou mais uma vez, com energia, mas é claro que não abriria a porta, esta estava trancada.

-Já disse para sair!

Dessa vez houve o barulho de quem bate na porta. Três vezes. Isso já era muito. Omi achara um meio de descarregar sua adrenalina. Enquanto a porta continuava a ser batida, o loirinho se aproximou desta pé ante pé. A pessoa do outro lado continuava batendo, embora não dissesse nada. Omi segurou a maçaneta e testou-o suavemente. Deslizou alguns milímetros de forma suave. Ninguém mais a segurava. Destrancou silenciosamente o ferrolho e agarrou com mais força o trinco. Girou-o rapidamente, puxando a porta até escancará-la, tudo tão rápido que mal podia controlar seu corpo, ele praticamente se movia por reflexo, os olhos se fecharam no esforço de abrir rapidamente, e desferiu com a outra mão um soco na cara de quem quer que estivesse ali. Isso porque tinha certeza que era Aya.

O rosto do intruso apenas virou, cuspindo um pouco de sangue, ao receber a investida. Depois, deu um tabefe em Omi de cima para baixo, no topo de sua cabeça, jogando-o de queixo para o solo, mas segurou-o levantando a coxa, q apoiou o chibi pelo tórax. Este, olhou assustado para seu agressor mais forte.

-Y... Yohji?

O loiro lançou-lhe um olhar gélido e severo. Depois, amaciou as feições e lhe sorriu delicadamente, enquanto levantava-o do chão.

-Agora me responda: por que me agrediu?

O menor lhe lançou um olhar desesperado, querendo fugir da situação embaraçosa na qual se metera. Como pudera ser tão ridículo e estúpido para atacar alguém que nem sabia quem era? Isso era uma insanidade, uma neurose! E pior: isso com certeza deixara Yohji preocupado, podia ver isso em seus olhos aflitos, por mais que ele tentasse parecer paternal, dócil mas ao mesmo tempo duro, mas não exatamente preocupado. Não gostava que se preocupassem consigo, achava isso desperdício de tempo dos outros. Além disso, sentia-se culpado por ter os olhos de alguém sobre si. Sentia-se desmerecedor do carinho que sentia. Só uma pessoa lhe fizera acreditar que amá-lo não era um desgaste, e sim um deleite, mas essa pessoa amada já se fora há muito tempo, era apenas um fantasma quase invisível que hora ou outra podia vir lhe assustar.

Mas isso não tinha importância no momento. O principal era se safar da enrascada em que se metera. Se seus verdadeiros motivos viessem à tona, somente surgiriam mais problemas. Ou seja, era melhor ficar de boca calada, como sempre, e evitar ocupar os outros com suas antipatias bobas. Olhou para o chão, procurando evitar os olhos do amigo. Sabia que era observado. Sabia que era encarado. Mas não queria enfrentar isso. Aquele olhar lhe pesaria muito, lhe doeria na consciência, poria tudo a perder. Não devia se dar ao luxo de desagradar um amigo, já tinha poucos. A chance de perder mais um era um pesadelo, não podia desagradá-lo, não podia arriscar nem a mínima chance de ficar sozinho no mundo novamente. Queria dizer algo, mas as palavras se recusavam a sair de sua boca, estavam entaladas. A garganta secara, parecia fechada. Pigarreou um pouco, ainda sem levantar os olhos, e balbuciou.

-De-desculpa, Yohji.

Mas então a mão suave do amigo ergueu seu queixo, forçando o contato visual. Omi a princípio tentara cerrar os olhos com força, fugir daquela visão. Mas no fim, se convenceu que isso só pioraria tudo.

-Omittchi, eu não pedi suas desculpas. Apenas perguntei por que você me bateu.

-...

Por quê? Não bastavam suas desculpas? Será que Yohji não poderia deixá-lo em paz com suas preocupações. Isso era certo, no momento em que dividisse um sentimento com alguém impotente, que não poderia lhe ajudar, a situação só pioraria, pois quando admitisse para os outros, é quando realmente admitiria para si mesmo. Sentiu que aquele olhar tão quente o deixava não apenas desconfortável, mas envergonhado, com culpa. Estava em pânico.

Um trovão de som muito alto sacudiu a vidraça. Yohji desviou o olhar para fitar o cegante relâmpago que viria em seguida. Omi aproveitou esse momento para pensar. Sem os olhos de Yohji sobre si era a mesma coisa que sem pressão psicológica. É como se tivessem içado de seus ombros uma carga particularmente pesada, no exato instante em que os ossos de suas canelas rachariam e os músculos tencionados se romperiam. Respirou fundo, tentando recuperar ar. Mal havia percebido que enquanto Yohji olhava para ele havia praticamente parado de respirar. Mas esse momento era tão curto, ah, tão curto... um instante fugaz, em que Yohji sequer virara a cabeça. Havia apenas mudado a direção dos olhos, de forma tão rápida quanto um piscar. Ainda assim, mesmo sendo tão fugaz, aquilo havia sido essencial. Quando Yohji piscou de volta, Omi se empurrou para trás, desvencilhando-se daqueles dedos longos e firmes.

-Yohji, não preciso responder isso...

-Ah, precisa sim! Porque você me agrediu, e eu não fiz nada contra você!

-Yohji...! Eu não quero fazer isso. Eu... Pensei que era outra pessoa.

-Quem? Ouka-chan?

-...

-Você queria bater na Ouka-chan?

-Não!!!

-Então...?

-Yohji, por favor...

-Diga!

-Eu já lhe expliquei que não era minha intenção bater em você, agora não dá para me deixar em paz?

-Omi! Você costumava ser mais gentil!

-...

Aquela frase lhe cortara o coração. Então, apesar do esforço para fugir do assunto para não preocupar Yohji, acabara piorando. Agora Yohji estava magoado com ele. Sentiu como o coração estava acelerado, batendo preocupadamente, e seu rosto, escarlate, parecia que iria explodir de tão quente.

-Ok, Yohji... Eu... Desculpe-me... Mas pensei que era o Aya... Além do mais, você estava tentando abrir a porta sem nem bater antes. Só fez isso depois, e fiquei realmente brabo, e...

Mas novamente perdia a voz. Era tão constrangedor ter que revelar suas preocupações, desabafar. E quando fez isso, as palavras que ele mesmo proferira tiveram efeito tão devastador de alívio sobre si, liberando ao menos um pouco do que estava entalado em sua garganta, que desandou a chorar. Jogou sua cabeça contra o peito do playboy, agarrando suas costas. Como uma criança. Yohji ficou surpreso, e realmente não sabia o que fazer. Era a primeira vez que via Omi chorar. Como se pode reagir quando algo assim tão inesperado acontece? Acabou resolvendo que a melhor solução seria tratá-lo como tratava as mulheres a quem já consolara: abraçou o chibi e ficou mexendo em seus cabelos, dizendo palavras de conforto. Quando os soluços começaram a diminuir de freqüência e intensidade, percebeu que Omi adormecera serenamente, como se isso o poupasse de ter que olhar para o amigo após mostrar sua fraqueza.

Por que Aya me trata assim? Ele já foi mais próximo de mim. Já me chamou de amigo. Eu até acreditava que podia entendê-lo! Mas não... não o entendi, e é por isso que ele não me chama mais de amigo. E no momento em que obedeci a ele pela primeira vez em muito tempo... É, foi esse o momento em que ele perdeu a confiança em mim.

-Omittchi...

Uma voz suave e serena lhe chamava. Por um momento Omi não acreditou. Transmitia tanta tranqüilidade quanto uma mãe embalando seu recém-nascido e tão desejado filho. Omi sentiu todo seu corpo envolvido por um aconchegante calor, que começava por seus pés, como que envolvidos por meias felpudas, subia por suas pernas, deslizava maciamente por suas costas e terminava no rosto, sentindo as faces queimarem. Tal qual num primeiro amor. O loirinho então abriu os olhos, e percebeu que estava em um local muito claro, embora isso não lhe machucasse a vista. À sua frente estava aquela figura pela qual já esperava, com um sorriso doce, e olhos brilhantes.

-Está na hora de acordar, Omittchi...

Aquele doce sorriso lhe transmitia todo o amor que uma pessoa poderia lhe confiar. Estava tão feliz! Com certeza, acordara em uma realidade muito mais agradável a calorosa do que a outra, na qual adormecera. Parecia que finalmente seu problema estava resolvido, que tinha novamente o amor de... Não, isso não era verdade. Esse amor já fora esquecido há muito tempo, enterrado fundo debaixo da mais maciça montanha. Seu amor não lhe desejava mais. A vida tirara sua alegria. Omi não teria mais alegria. Mas, quem sabe... Em um momento de inspiração...? Abraçou a pessoa com todas suas forças, aninhou o rosto contra a dobra do pescoço com o ombro, exalando todo aquele agradável perfume de... de onde conheço esse cheiro? E sentia tanta saudade, que aquilo quase espremia seu coração, de tanta felicidade. Sentia que iria explodir, que não havia coisa mais importante do que a singularidade de seu sentimento.

-Eu estava com tanta saudade...!

Não sabia se ria ou chorava. Por via das dúvidas, fazia os dois. Parecia rir como um maníaco, ou um viciado ao apanhar um bocado de sua droga com as mãos em concha. As bochechas já doíam, mas não importava. Mas lágrimas, ah, lágrimas corriam por seu rosto livremente, mas não eram amargas, não mais. Eram doces como o mais puro mel, delicadas como o mais mimoso confeito! E seu abraço era retribuído, com o mesmo carinho que nunca ousara sentir novamente de ninguém. Não queria receber de mais ninguém. Não havia mais nada no mundo. Só ele, seu amado, e o laço que os unia. Ao redor, sabia a existência do vazio, da solidão. Mas aquilo estava fora de sua situação, de sua história.

-Também estava com saudades.

-Por que você me deixou?

-Eu não deixei você. Apenas... fui levado... esquecido...

-Eu não queria que você tivesse me esquecido!

-Sinto muito, Omittchi. Mas a vida de um humano é... tão frágil...

-Não! Eu amo você mais que tudo! Se você ao menos...!

-Shhhh, fique calmo, meu amor. Agora estou com você. Nada vai nos separar.

O chibi olhou para aquele sorriso carinhoso. Quis certificar-se que dessa vez era verdade. Será que podia mesmo confiar? Chegou a conclusão que não podia, mas precisava.

-Você me ama?

-Nunca duvide.

-Omittchi...

-Hnnn...

-Hein? Omi!!!!

O loirinho abriu os olhos lentamente, percebendo que estava debaixo dum grosso edredon, dentro de seu quarto. Ainda assim, aquela coberta não era sua. Então devia ser da pessoa que o cutucava para acordar.

-Waaaa.............. Quem...? Ah, oi, Ken!

-Omi, você não...?

O rapaz mais novo ergueu-se tão rapidamente da cama que assustou o moreno. Então, por um breve momento, Omi o abraçou, e Ken pôde sentir que o rosto do amigo estava úmido e quente de lágrimas. Mas quando as maçãs do rosto de cada um se afastaram uma da outra, a única imagem que enxergara foi seu amigo sorridente.

-Tive um sonho ótimo!

-Sim, Omi, mas...

-Foi lindo! Tudo estava como era antes!!!

-Omi, eu...

-Mas...!

Só então o loirinho percebeu que Ken parecia um tanto melancólico. Mas... É claro! Como sou idiota!

-Ken, não se preocupe... Já prometi uma vez, não quero ter de fazer isso de novo. Nunca mais vou chorar perto de você...!

E envolveu o rosto do jogador com ambas as mãos, quentes e macias. Ken por um momento corou, mas sabia que aquilo não era nem um pouco adequado, então procurou se controlar. Omi percebeu que só estava piorando a situação. Ken estava envolvido em seu passado muito mais do que qualquer outra pessoa, imaginava. O moreno tivera um papel essencial no que o chibi era hoje, no que havia se tornado. E sabia: sem aquele rapaz, não seria metade do que era então. Beijou suavemente o rosto do amigo, perto dos lábios, e então foi correndo porta afora. Quando já cruzava para o outro lado do corredor, ouviu ser chamado firmemente.

-Omi!

Voltou alguns passos, olhou pela porta. Ken escondia bem com seu sorriso, mas havia resquícios de lágrimas em suas bochechas.

-Eu... só queria dizer que Yohji e Aya andaram muito preocupados com você. Aliás, Yohji que pediu para eu cuidar de você. Ele acha que sei lidar melhor com...

-Hai... – e fez uma breve mesura – Obrigado, Ken. Obrigado mesmo...

-Você sabe que eu nunca me importei de cuidar de você.

-Talvez... Mas fico feliz que tenha pensado bem em mim!

-...e...!

Mas novamente não poderia terminar de falar, de se explicar para Omi. Como todas as vezes. Não sabia se isso era instinto do chibi, ou se era medo. Mas o loirinho sempre se afastava correndo quando a conversa se prolongava. Culpa minha, se eu não tivesse me esquecido daquela vez tudo estaria certo agora.

Maio/2003

Continua....