Capítulo 15:
Ouch, minhas costas doem... Aya logo abanou a cabeça, sentindo cócegas no nariz. Deu um tapa em si mesmo, pensando que era algum incômodo mosquito. Quando viu, um bilhete caíra ao seu lado no sofá. Seu primeiro pensamento fora Omi, mas logo reconheceu a caligrafia de Ken. Flashes de sua memória voltaram então, todas as surpresas do dia anterior. Terminando de ler o recado, o espadachim quase rasgou o papel de ódio.
No fim das contas ele me enganou... Está ganhando um monte de tempo a minha frente... E eu cuidando de Yohji... Ah não...! Aya, cheio de raiva, amassou a nota, e tomou partido de sua usual praticidade e ligou para um pronto-socorro. Enquanto esperava, fez um chá de hortelã para si, pacientemente. Se até Yohji está aqui... Quer dizer que talvez encontrar Omi seja possível agora! Droga, por que Ken fez isso!? Que infantilidade querer chegar primeiro... Yohji é o melhor amigo dele, ele que deveria tomar a responsabilidade! Omi... Só de saber que talvez você esteja salvo já me sinto feliz. Só poderia ficar mais ainda caso fosse o primeiro a lhe ver novamente, seus olhos vítreos, seu sorriso calmo... Ainda mergulhado nesses pensamentos amorosos, Aya foi lentamente içado para fora deles pelo som da ambulância que ficava mais e mais intensa. Os médicos estranharam a situação, mas Aya explicou algo sobre o playboy ter passado um final de semana inteiro sozinho em casa bebendo álcool e tudo mais... E partiu para ver Omi.
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-Merda! Estou há séculos passando por tudo que é lugar e nada de encontrar Omi! Bem que aquela garota podia ter dado uma pista...
Ken reclamava em voz alta para si mesmo enquanto observava o sol nascer. Passaram-se horas de procura intensa, e nada de Omi! A luminosidade pálida se erguia numa manhã gelada. Pelo caminho contrário ia o ponteiro do combustível, e uma parada se fez necessária. O moreno se encontrava no momento em uma linda inclinação rodeada de árvores, um açude mais abaixo do morro. A estrada tinha quatro pistas, e ao lado direito havia várias pequenas lojas de souvenirs, bares e restaurantes. Alguns quilômetros à frente, encontrou um posto de gasolina, e ali parou. Enquanto esperava um sonolento rapaz vir atendê-lo, começou a sentir todo o cansaço acumulado pesar-lhe nas costas. Precisava urgentemente dormir um sono longo e repousante, sobre um futon bem macio e sob várias camadas de cobertor de lã.
Assim que terminou de abastecer, Ken se dirigiu ao bar mais próximo que havia ali, e parou para descansar e comer alguma coisa. Sou humano, no fim das contas... Pediu um chocolate quente com chantilly, e, logo após a atendente se retirar para preparar seu pedido, ficou observando o movimento em volta. É muito cedo, mas já há tanta gente acordada! Havia um belo jovem sentado ao pé do balcão. O jogador reparou nele em especial porque tinha o mesmo tamanho de Omi, apesar do rosto aparentar menos idade. Ele parecia muito preocupado, envolto numa confusão de papéis e fotos. Curioso, e notando que sua bebida demorava, Ken aproximou-se.
-Posso ajudar?
-Não, obrigado! – foi a resposta apressada.
-Mas o que houve?
-Eu preciso de mais uma matéria e... Oh, sinto muito! – e a pilha que estava organizando desmoronou. Não pela primeira vez.
-Quê?
-Com licença!
-Espere!
-Por quê?
-Você... Você não é repórter?
-Com licença!... – o telefone celular do jovem apitou – Moshi-moshi? ...Oh, um acidente? Kata-san, você sabe que odeio sangue... Não pode encaminhar outro...? Não...? Ok, farei o sacrifício... O que não faço por minha carreira, ne? Oh sim, por um fio, entendo... Qual a localização? ...Sim, estou anotando... Certo!
-Você é um repórter!
-Sim, e daí? Um repórter ordinário, isso sim... – e olhou desapontado para baixo, para as próprias mãos que brincavam nervosamente com o lápis de ponta rombuda.
-Mas...
-Não consigo sequer olhar um acidente! Daqui a pouco não vou mais ser um repórter... Meu editor parece que implica comigo... Só me passa matérias de acidentes e assassinatos...
-Ore... Talvez ele esteja tentando ajudar você a vencer este medo!
-Ah, muito engraçado... É só implicância mesmo... Agora tenho que reunir coragem e ir lá...
-Não se preocupe, eu vou com você!
-Hein? Eu não pedi que você se metesse nos meus assuntos!
-Mas mesmo assim você desabafou... Aposto que se sente bem melhor, não?
-Não... Agora mais uma pessoa sabe do meu fracasso.
-Não há fracasso, você sequer fez a matéria! Vamos lá e pesquisar!
-Por que tanto interesse em mim? Por que quer me acompanhar? ...Você está por acaso com segundas intenções...? ...Eu... Eu tenho uma namorada, entendeu?
-E eu lá vou me interessar por você!? Só quero estar perto!
-Você é um maníaco?
-Não...
-Está na hora de você me dar explicações!
-Que desconfiado! ...Ok. Um amigo meu desapareceu e já não sei mais onde procurar, então vou seguir a ordem dos desastres!
-Oh, estou com um desesperado...! – exclamou sem animação – Vamos lá então.
-Arigatou, ...?!
-Sakurai. Agora levante-se!
-Ah... E o meu pedido...? Será que...?
-As notícias não esperam!!! Deixe para lá! Vamos!
E então ambos correram para fora do bar. Ken agilmente montou em sua moto enquanto o jovem repórter se atrapalhava procurando pelas chaves. Saíram em disparada. O jogador não poderia dizer se estava ansioso ou o quê, mas desde que olhara para aquele rapaz tivera a intuição de que ele poderia ajudá-lo, e agora sentia profundamente que o acidente para o qual se dirigiam tinha algo a ver com Omi. Apesar de se tratar de um acidente, o moreno sentia-se estranhamente calmo. Prevalecia uma serenidade de vitória, com a certeza de que seria superior por conquistar o amor do chibi. Não que já tivesse o feito, mas tinha certeza que assim seria. Seu grande objetivo seria cumprido! Imerso em seu orgulho foi que Ken chegou até aquele fatídico penhasco. A polícia ainda não havia conseguido escorregar pela íngrime e perigosa descida, e a sirene de uma ambulância se aproximava de muito longe. Começou a fazer perguntas ao redor, perguntas que ninguém se preocupava ou tinha tempo para responder. Parecia que o tempo estava correndo em sentido contrário, chegara perto da solução mas não conseguira tocá-la. Não podia esperar mais. Agradeceu a Sakurai e então praticamente se atirou para baixo, impulsivamente.
-Ken!
O lindo repórter se inclinou sobre a faixa de contenção, assustado com o possível suicídio de seu novo conhecido. Mas Ken escorregava elegantemente, desacelerando a queda encostando a mão no paredão, enquanto seu pé servia de apoio e equilíbrio, freqüentemente machucando-se com os muitos galhos e raízes que atravessavam aquela pedra em direção ao ar livre. Logo ultrapassava a junta policial, deixando-os para trás. Vários gritaram por ele, aquele intrometido que vinha lhes dar mais trabalho ainda. Mas Ken estava obstinado... Nada mais lhe tinha importância. Seus olhos já não mais notavam a movimentação ao redor. Omi. Omi. Poderia repetir o nome mil vezes e nunca se enjoar dele. Tinha certeza de que o encontraria. O conquistaria. Se conseguira ir tão bem até o momento, só podia ser porque o destino estava, pela primeira vez em muito tempo, ao seu favor.
Deu um último escorregão e saltou para a terra. Ainda ali era inclinado, mas visivelmente menos íngrime. Era a última parte daquela queda, após aquela pequena aplainada, o chão descia abruptamente. O trailer havia se prendido, felizmente, a alguns galhos de árvores maiores e mais resistentes, e apenas por isso não havia caído na água agitada que havia há alguns metros abaixo. Agora Ken podia até sentir o cheiro de Omi. O trailer estava deitado de lado, a porta no lado de cima, as rodas ao lado oposto de onde Ken se encontrava. Foi até aquele lado, e notando que não havia nenhum perigo, como vazamentos, resolveu escalar pela parte inferior do veículo. No fim de sua subida, e tomando cuidado para não fazer o trailer escorregar, usou a bugnuck para rasgar a porta amassada (e por isso mesmo impedida de abrir). Espiou para dentro, já sentindo o coração acelerar. Por um instante, teve a louca idéia de que, no lugar de Omi, encontraria desmaiado o corpo de Kaori. Quando chegasse perto para averiguar, ela abriria repentinamente os olhos e mataria-o com dentes pontiagudos. Quando seus olhos conseguiram distinguir o corpo frágil, esquelético do chibi, um medo muito maior se apossou de si. Omi poderia estar morto. Poderia, não? Ali, tão fraco e inconsciente, até uma brisa poderia machucá-lo. Entrou, entre escombros e pedaços de metal rasgado, e tirou Omi do emaranhado de fios e lâminas que o envolviam. É um milagre ele não ter sido rasgado por nenhuma dessas pontas...! E então um novo ímpeto de grandeza apoderou-se de si. Talvez porque ele estava destinado a, a partir deste incidente, a ficar comigo...
-Omi...
Sabia que o loirinho provavelmente estaria em profunda inconsciência e não responderia, mas não custava arriscar. E se conseguisse realizar seu grande ideal romântico naquele instante? Acariciou as faces pálidas e magras de seu querido, sua mão machucada passando suavemente pela pele empoeirada e encardida. Então sua mão foi segurada. Em sua inconsciência, Omi erguera seu braço e prendera a mão de Ken de encontro à sua contra seu rosto. O jogador sentiu seus olhos marejarem. Seria um sinal? Observou os lábios do chibi entreabrirem-se lentamente...
-...Aya...
Tudo caiu por terra. Pelo o visto, Omi ainda estava muito apaixonado. Bem, ainda não sabia que seu salvador era Ken, e não um preguiçoso Aya que ficara dormindo em casa. Logo, havia alguma esperança. Acariciou mais um pouco aquele tenro rosto que tanto adorava, a poeira se espalhando pela pele ressequida e formando desenhos. Eu amo Omi. Mas sentia medo. Algo dentro de si espalhava-se. Pensava se subitamente o loirinho não iria lhe esbugalhar os olhos e arreganhar a bocarra mostrando dentes afiados e sangrentos. Momentos de tanta calma lembravam-lhe os filmes de terror, em que o silêncio era uma preparação para o susto. E aquele momento específico estava muito propício a sustos. Ouviu um burburinho atrás de si.
-Largue o rapaz agora, senhor! Estamos a trabalho.
Não. Não queria desenlaçar Omi, mas antes mesmo de protestar já havia seu tesouro sido retirado de seus braços. Mesmo assim acompanhou os policiais, necessitado e curioso. Identificou-se como melhor amigo e negou a existência de parentes.
-Sim, pode acompanhá-lo até o hospital.
Era tudo o que precisava. Talvez Aya tomasse conhecimento do acidente e se dirigisse imediatamente ao local. O espadachim se tornara muito influente dentro da Kritiker ao longo dos anos, apesar de não participar de praticamente mais nenhuma missão. Mas ganhara respeito de algum modo, e isso o ajudava a descobrir as coisas rápido. Mas, sendo Omi transferido a um hospital, talvez algumas horas fossem ganhas. Dentro da ambulância de emergência, Omi ofegava, o rosto coberto por uma máscara de oxigênio. Ken segurou sua mão imediatamente. Queria confortá-lo. Queria muito mais que isso. Através da pele, aquecia seu pequeno protegido.
Sentia-se semelhante a Yohji. O playboy confortara e cuidara, ao mesmo tempo controlando, de Ken. Poder assumir um papel tão importante realmente era algo notável, e o ex-jogador sentiu uma ponta de poder. O domínio de Omi passava pouco a pouco para suas mãos, através daquele pequeno contato e elo que havia entre eles agora. Quando acordasse, saberia imediatamente quem fora o seu salvador. Mas... Como será que estava Yohji agora? Confiava na responsabilidade de Aya, mas este andava muito modificado nos últimos dias. Poderia fazer algo imprevisível, algo que arruinasse seus mais queridos sonhos.
A ambulância se aproximava de um caro hospital particular. Ken pagaria. Ou a Kritiker. Não, ele próprio pagaria, caso contrário Aya teria informações de primeira mão. Conforme era imerso naquele local branco, Ken ia sentindo paz. Aproximava-se vertiginosamente de seu ideal, de um modo que nunca imaginara. Omi sempre fora um grande amigo, mas uma paixão distante. De repente, o jogo mudava de lado. Talvez Kaori tivesse lhe servido em alguma coisa enfim. Quando deu por si, estava a sós com o chibi no quarto. Junto deles, só um tubo de soro que nutria o esquálido menino.
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Onde está...? Aya olhou na estrada deserta para o trailer caído e destroçado metros abaixo. Assim estava também seu coração. Tinha esperanças de ver Omi finalmente. Não importava se não pudesse sequer chegar perto, mas queria ter certeza de que estava são e salvo, sob o cuidado de responsáveis. Olhou para o veículo mais uma vez, agora a imagem se deteriorando. Seria por causa do anoitecer ou pela umidade crescente em seus olhos? Não podia dizer, mas estava arrasado. Queria notícias. Ajoelhou-se de frente para o penhasco, o sol púrpura machucando seus olhos. Desejava destruir o sol, que definia os dias e os atrasos fatais. Omi não estava mais ali. Mesmo se estivesse, não havia nada a fazer a não ser chamar socorro. Já havia verificado, e ouvido rumores, e sabia que o chibi não estava mais naquele local. Se estivesse, o que poderia fazer? Pegá-lo no colo e o levar para casa? Um absurdo, poderia ter algum osso quebrado, ele acabaria por matar quem ama. Uma lágrima discreta lhe escorreu do olho esquerdo. O ruivo imediatamente limpou-a com as costas da mão. Parou, pensou. Ninguém estava ali para lhe ver. Podia ouvir o barulho da própria respiração. Sabia que podia entrar em termos práticos e ligar para todos os hospitais, mas sentia uma súbita fraqueza. Era uma mágoa, uma angústia, uma dor no coração que não sabia explicar. Mesmo que Omi estivesse bem, sentia como se algo tivesse se quebrado, como se fosse tarde demais. Estava sozinho enquanto o dia escurecia. Sentou-se mais confortável na grama da encosta, descansando de uma vertigem que lhe viera. Sentia-se mal, doente. Seu coração era esmagado.
Sequer baixou a cabeça, que estava cansado de esconder, e mesmo que o quisesse, não havia de quem fazê-lo. O rosto branco contorceu-se numa careta, os lábios se abrindo e alargando para o lado. As bochechas subiram comprimindo os olhos, e lágrimas lhe escorriam abundantes e grossas até o pescoço. Algo estava muito mal, e sentia-se desamparado. Começou soluçando, aumentando o volume, e então gemendo, chiando, entregava-se a sua tristeza. Algo estava errado. Choraria até o anoitecer total. Então tomaria providências. Mas agora choraria, isto estava certo. Formou-se uma olheira, e mais uma dobra na pálpebra, com meio centímetro de espessura. Uma dobra de quando a pele não agüenta mais inchar. Os olhos, o rosto inteiro, o pescoço avermelhados. Odiava-se e odiava ao mundo. Já não havia chorado o suficiente? Pois essa era mais uma oferenda.
Por duas horas inteiras chorou. Quando anoiteceu completamente, o céu estava nublado, e era lua nova. Não podia sequer adivinhar onde estava o carro, e só com muita sorte o achou. Entrou, e pegou seu telefone. Era Aya, mais uma vez.
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Os olhos abriram-se acanhados, com medo da claridade e da brancura do lugar. Não sentia nada. Perguntou para a luz.
-Estou no céu?
Um rápido movimento ao seu redor, e um burburinho. Quando seus olhos e seus ouvidos se acostumaram àquela quantidade de estímulos que chegava a machucar, viu rostos sorridentes. Antes de mais nada procurou, entre tantas faces, a agradável de Aya. Não achou, e sentiu-se triste. Já havia percebido então que estava num hospital, o que significava que havia sobrevivido. Se isso havia acontecido, deveria ser por algum truque do destino que ainda gostaria de vê-lo feliz com seu amado. Ou seja: agora que estava tudo bem, deveria assumir Aya, sem receios. Sorriu para si mesmo, já não prestando atenção aos rostos, pois eles nada lhe importavam ou diziam de importante, e se o faziam, ainda assim não superavam a importância do espadachim.Quando este viesse, aí sim, seus olhos realmente enxergariam, e seus ouvidos ouviriam.
Uma voz familiar chamou-lhe, e, embora não a reconhecesse como a esperada, ainda assim lhe despertou a atenção. Quando os olhos finalmente se encontraram, veio a recordação, e se reconheceu o velho amigo. Omi sentiu tristeza, realmente não se enganara: não era Aya ali. Mas estava feliz, era Ken, e junto desta conclusão veio um medo. Pressentia as intenções de seu olhar.
Balbuciou com a voz rouca que quase desaprendera a usar.
-Ken... Você aqui...
-Andou aprontando, hein?
-Como...?
Ken sabia perfeitamente o que havia acontecido com Omi, e como todos os desastres não haviam sido sua culpa. Ainda assim, em sua tentativa de possuí-lo, atribuir um pouco de culpa ao seu alvo poderia ajudar. Como uma vacina contra qualquer pensamento paralelo. Omi amava Aya, e isso não havia mudado ao ver Ken logo ao acordar. Sabia disso pela decepção que se estampara nos olhos do loirinho.
-Onde... Onde está Aya...?
-Na verdade não sei. Não quis trazê-lo aqui até que você estivesse bem.
-Mas por quê? – Omi sentia-se surpreso e triste. Ken interpretou isso como decepção. Ao fazer a próxima pergunta, o loiro sabia que seria rude, mas era necessário – Por que você quis afastá-lo de mim logo agora?
-Quando... Quando você sumiu, Aya ficou preocupado. E também irritado. Com o tempo furioso. Procurou você em todos os lugares, ficou agressivo. Achava que isso era uma provocação sua. Que você queria se afastar dele para fazê-lo sentir-se mal.
-Eu nunca quis isso!
-Eu sei, eu sei... Shhh acalme-se...! – Ken baixou os olhos. Sentia-se culpado por mentir, mas era necessário. Não deveria desperdiçar a chance. Tentou parecer triste e embaraçado – Não sei se eu devia lhe contar isso... Você está tão fraco...
-Por favor, Ken. – Omi pegou com firmeza a mão do amigo, os olhos suplicando por uma explicação onde Aya ainda o amasse.
-Bem, Aya começou a sair por aí. Disse que não iria lutar por alguém tão fraco, que fugia dele em vez de ao menos conviver.
Ken sentia-se cruel. Sabia qual era o seu objetivo e a sua estratégia. Era como em uma luta com o inimigo: rasga-se sua carne por um bem maior. Era uma monstruosidade mentir, e saber que estava deliberadamente magoando Omi de propósito só aumentava sua culpa. Mas não podia sentir isso agora, logo agora no momento derradeiro, assim como não poderia no campo de batalha. Feria Omi, e usava como arma justamente as confissões e desabafos que ouvira dele durante tanto tempo. Mais que entristecer o pequeno, Ken estava traindo sua confiança.
Omi queria chorar, mas não o fazia apenas para ouvir o restante da história. Também não queria ser o mesmo de "antigamente", tão frágil. Precisava ser homem.
-O que mais aconteceu com Aya...?
Mais uma mentira e um golpe baixo surgiu instantaneamente na cabeça do ex-jogador. Era incrível como agora que começara, as idéias fluíam. Contaria algo que no fim das contas era irrelevante, mas que, narrado e modificado de modo adequado, faria toda uma diferença. E, caso Omi viesse a cobrar de Aya a verdade, este não poderia negar a parte crucial.
-Ele... tentou se aproximar de mim. Conversamos... Inclusive sobre você.
-Sobre mim?
-Sim. Ele disse que não sentia mais o mesmo de antigamente, que ele havia mudado... Ah, não sei como ele pôde se desinteressar por alguém como você... – e lançou a Omi um olhar tão apaixonado que fez o loirinho corar.
-E então... ele começou a agir estranho comigo. Vinha falar muito freqüentemente, com umas conversas...
-Não! Pare! Não quero mais ouvir, não quero, não quero!!!
Omi cerrou os olhos com força, sentando-se bruscamente na cama, balançando a cabeça e agarrando os próprios cabelos. Não queria nem precisava ouvir. Já tinha visto no espelho o que aconteceria.
-Vocês dormiram juntos, não foi? – perguntou, as lágrimas insistindo, a força de vontade cedendo.
Ken não pretendia chegar a esse ponto, pretendia dizer apenas que Aya havia tentado algo, que o visitara durante a noite. Mas Omi não perguntava. Apenas a entoação fora de pergunta, mas na verdade acusava. Tinha convicção, certeza, e Ken notou esse sentimento com tanto susto que acabou por confirmar timidamente com a cabeça. Omi novamente teve um ataque de histeria, um monte de visões assustadoras e repugnantes a ele entrando em sua cabeça, invadindo seus pensamentos, lhe tirando a razão. Ken tentava em vão o segurar e acalmar. Então, como que possuído, o menino se deixou vencer pela tristeza, largou-se na cama, os olhos vazios.
Houve um estrondo na porta. Por um momento Ken teve medo de ser Aya, mas antes mesmo de dizer qualquer coisa a porta era aberta por enfermeiras preocupadas. Vinham com anestésicos e remédios, aflitas.
-Que gritos foram esses, senhor?
-Uh... Temo que tenha dado uma má notícia um tanto prematuramente para meu amigo... E ele se desesperou. Mas me parece que está bem.
-Uma notícia ruim, hum? Tsukiyono-san, devia sentir mais felicidade ao encontrar um amigo e seu salvador. Você está, graças aos deuses, vivo. Não se desespere ante notícias ruins... Vou lhe dar um remédio para dormir, ok?
E aplicou a injeção no bracinho magro do pequeno, que sequer observou o fato, insensível a tudo.
Aya... Aya realmente dormiu com Ken. Tudo bem, porque não estávamos juntos, mas... Ele sempre disse que me amava. Era mentira, então? Foi só eu lhe dar "férias" e ele resolve fazer tudo o que, provavelmente, já queria faz tempo. Talvez só não tenha tentado seduzir Ken por uma questão de respeito a mim. Sem mim, Aya faz esse tipo de coisa. Aya não me ama de verdade, então. Sequer veio ao hospital. E estava bravo comigo, em vez de preocupado. Como pude ainda pensar que poderia ser feliz com ele agora? A enfermeira disse que Ken me salvou. E, realmente, vi no espelho Ken me procurando, enquanto Aya dormia em sua cama. Que decepção. Ken também me entristeceu, sabia o quanto eu gostava de Aya, e mesmo assim deixou... Mas eu pude sentir na voz dele o quanto estava arrependido. Tanto que foi ele quem me salvou. Mas... Mas não é com Ken que quero estar. Ken é apenas meu amigo. Sem Aya, qual a razão de ter sobrevivido? Não há. Mas... Ken me olhou durante um momento como se estivesse apaixonado. E se Ken quiser que eu fique com ele? Ele me salvou, devo isso a ele. Mas então não terei Aya nunca...? E se na verdade Ken tiver se enganado? ...Não, ele não mentiria para mim. Eu confio em Ken. Mas devo admitir que... que se Ken não tivesse me protegido, eu acabaria cedendo ao Aya. E então não ficaríamos felizes, juntos para sempre?
-Enfim acordou...
-...?
-Está se sentindo melhor?
-É claro que si... Na verdade, não.
-...Imaginei... Mas fico feliz que ao menos tenha sido sincero.
-Como se eu não fosse...
-Ah, você entende o que estou dizendo, não? – e olhou gentilmente para o angustiado loirinho.
-...Certo...
Um certo silêncio fez-se entre os dois. Omi ainda tinha uma aparência cansada, e era claro que demoraria até se recuperar completamente.
-Ken...
-Sim? – sorriu o melhor que pôde. Cada chance de ganhar ao menos um pouquinho a mais do apreço do pequeno seria bem-vinda e aproveitada ao máximo.
-...Eu poderia ligar para o Aya? ...Chamar ele?
-Hm, sinto muito... Ele me pediu pessoalmente para que não deixasse você fazer isso.
-Huh... Está certo... – Omi baixou os olhos para suas mãos, que repousavam em suas pernas esticadas ao longo da cama – E... Como está Yohji? Ele também não veio.
-Bem, durante a missão houve alguns imprevistos. ...Calma! Yohji vai ficar bem, sim, só que no momento está se recuperando.
Espero...
Omi parecia agora um pouco mais relaxado. Teria sido efeito dos remédios? Ainda assim, seu rosto ficava muito mais bonito quando estava sereno que quando triste. Houve um breve silêncio entre os dois companheiros, e o chibi apenas observava o amigo pensativamente.
E se Aya tiver ido procurar Omi e tenha deixado Yohji às moscas? Os dois nunca foram muito amigos, de qualquer maneira... Ou se meu bilhete caiu de seu rosto e ele nem percebeu e saiu de casa? Yo-tan estará em risco de vida por simples omissão minha!
-Ken-kun...
Aquelas pequenas safiras continuavam observando Ken, um tanto quanto preocupadas. Por que pensar tanto em Yohji? Bem, porque ele é meu amigo, é natural. Mas não posso deixar que ele atrapalhe as coisas entre eu e Omi. Eu estou tão prestes a... Omi esperava pacientemente.
-E então? ...Qual é a resposta?
Ken não sabia qual era a pergunta, perdera-a enquanto estava mergulhado em suas reflexões. A única resposta que tinha era a decisão que tomara quando seus pensamentos mais profundos já se esvaíam. Apoiou uma das mãos no colchão e inclinou-se sobre a cama. Não fora algo brusco, mas o loirinho ficou tão surpreso que não teve reação. Não conseguiu sequer desviar-se. O jogador selara seus lábios delicadamente sobre os do garoto que ele tanto desejava. Omi continuou sem reagir, mas quando Ken espiou, viu que ele havia fechado os olhos. Não é que ele não queira me beijar de volta... Provavelmente apenas não sabe como fazê-lo... Riu mentalmente do fato de um homem tão velho ainda ser tão puro, mas sabia o motivo muito bem: Omi ficara todo o tempo apenas esperando por Aya. Mas isso acabaria agora.
Dezembro/2004
