As surpresas
Era notável a diferença daquelas ruas do Beco Diagonal, para as ruas de uma cidade normal. As pedras que compunham a calçada eram diferentes, a iluminação era diferente, até as latas de lixo eram diferentes. As pessoas que ali passavam se vestiam de modo estranho, diferente do hábito dos amigos e pessoas que cercavam a vida de Lyra. Apesar disso tudo, existia uma semelhança que ela nunca havia notado. Por mais que as pessoas parecessem diferentes, elas continuavam sendo pessoas. A tristeza, a alegria, decepção, alívio, constrangimento... Todos esses sentimentos humanos eram vividos por bruxos e trouxas, sem restrições.
Essa reflexão a fez perceber que não havia tanto problema em não ter nascido bruxa. Ela podia ser feliz do mesmo jeito. Era possível, mas seria difícil superar algumas frustrações.
Ao ver uma menina sair da loja de varinhas, com uma à mão, empolgada com seu novo item, Lyra via o quanto doía não ter sido assim com ela. Por mais que ela entendesse que ela não fazia parte daquele mundo, ainda persistia o sentimento de decepção e inveja. Percebeu que invejava todas aquelas pessoas, e por isso tinha ódio. Mas teria que vencer tudo aquilo, para o seu próprio bem. Estava disposta a tudo.
Conseguiu até arriscar um leve sorriso. Ficara feliz com toda aquela reflexão e foi nesse momento que achou que alguém chamara seu nome. Tudo aconteceu tão rápido que não teve chance de raciocinar.
Olhou para trás e um rapaz de olhos bem verdes e penetrantes lhe falou:
- Você é mais do que imagina! Tem grande poder!
E no mesmo instante que ela percebeu sua presença, percebeu que ele se fora. Assustada, olhou em volta à procura do rapaz. Nenhum sinal dele. Parecia até uma ilusão. Achou que estava vendo e ouvindo coisas. Mas fora tão real. Sua voz ainda ecoava em sua mente. Lembrava nitidamente dos seus olhos, sua aparência e suas roupas. Se, por acaso, encontrasse com ele, com certeza iria reconhecê-lo. Tinha uma fisionomia calma e segura. Ele devia ter uns 15 anos.
"Mas espera um instante! Como eu pude perceber tanta coisa em tão pouco tempo?" Chegou à conclusão que realmente era coisa de sua imaginação. Só podia ser. Não poderia ter observado tantos detalhes num curto espaço de tempo. Sua mente estava criando coisas.
Diante de tanta confusão, resolveu sentar-se na calçada. Estava ficando chateada com a demora de Will. Onde ele estaria? Se ele demorasse muito, ia acabar pensando naquilo tudo novamente.
Não demorou muito, e lá estava ele. Parecia muito empolgado, sem perceber sua longa demora. Trazia um pacote embrulhado em vermelho, com fitas prateadas, muito bonito. Lyra ainda não o tinha visto, até o momento em que ele se sentou na calçada ao seu lado. Com um susto ela o percebeu e descontou sua raiva pela demora com leves tapas em seus ombros. Rindo muito, os dois saíram conversando. Will tentava convencer Lyra a não abrir o presente em sua presença, mas ela foi muito insistente.
- Poxa, você me fez esperar esse tempo todo! E agora vai me fazer esperar mais ainda? Não é justo!
- Me desculpe, juro que não tive a intenção de demorar muito... Mas, por favor, espera até chegarmos em casa! - a garota fez mais uma cara feia - É que eu quero que você abra o presente sozinha...
Depois de muita insistência, finalmente ele conseguiu convencê-la.
A volta foi muito tranqüila. Entre muitas brincadeiras, Will elogiou Lyra pelo comportamento. Ele achava que ela iria continuar brava e irritada durante o passeio, mas ela se esforçou e isso agradou o rapaz.
Chegaram na rua onde moravam, às quatro e meia da tarde. O sol começava a se esconder detrás das nuvens do horizonte deixando o céu todo avermelhado. Caminharam silenciosamente até chegarem na soleira da casa de Lyra. A essa hora, sua mãe estava trabalhando em sua máquina de escrever no escritório do outro lado da casa, e provavelmente não ouvira a filha chegar. Seu pai ainda estava no trabalho.
Eles ficaram frente a frente, se olhando por alguns segundos. Os olhos da garota refletiam o vermelho do céu, e transmitiam uma cor diferente, misturada com o intenso azul dos olhos. A brisa de leve jogava seus cabelos cor de ouro sobre o rosto, de onde ela os retirava periodicamente. O rapaz admirava aquela cena, enquanto ela tentava adivinhar seus segredos olhando em seus olhos. Os cabelos castanhos voavam, mas não cobriam sua face rosada pelo sol.
- Foi muito bom passar a tarde contigo! Obrigado por tudo. - Will a abraçou e encostou o rosto em sua cabeça. Ela retribuiu aconchegando-se em seu ombro.
- Obrigada a você... Foi melhor do que imaginei... - Ele alisou os cabelos dela e olhou em seus olhos, continuando a abraçá-la.
- A gente pode repetir mais vezes, hein? - Ele abriu um sorriso que a derreteu por inteiro.
Ela riu e então disse:
- Podemos sim! - Ele então deu um beijo em sua testa e se afastou. - Tenho que ir agora.
- Ah, tudo bem... - O coração dela batia forte, mas já começava a doer quando ele foi se afastando.
- Tenho algumas coisas para arrumar em casa ainda... Tchau! A gente se fala!
- Tá! Tchau...
Lyra virou para a porta de cabeça baixa, torceu a maçaneta e entrou em casa. Mal ouviu o som da máquina de escrever da sua mãe no escritório. Subiu as escadas com o pacote vermelho entre as mãos, entrou no quarto e sentou-se na cama. Puxou as fitas pratas, desembrulhou o papel e descobriu que era um livro, mas ao abri-lo, viu que era uma caixa. Dentro havia um bilhete e embaixo dele uma linda corrente, também prata, com um pingente com forma ovalada. No bilhete estava escrito:
"Ly,
Nesse livro-caixa cabe mais coisas do que parece. E o pingente com a sua inicial parece não ser nada, mas se você segurar ele ao contrário e falar meu nome três vezes, meu rosto vai aparecer e eu vou ficar sabendo que você quer falar comigo. Depois eu te explico mais detalhes...
Te comprei esse presente para que sempre se lembre de nós dois. Sei que é covardia, mas não consegui te dizer durante o dia todo que estou indo mais cedo para Hogwarts esse ano. Não ia conseguir te ver magoada, e provavelmente ficaria muito triste também. Por isso estou me despedindo agora. Sei que sabe o quanto gosto de você. Te entendo e estarei sempre ao seu alcance para qualquer coisa!
Nesse momento eu já devo estar em Londres novamente... Te mandarei corujas sempre que puder!
Abraços do seu sempre amigo, Will"
Ela colocou o bilhete novamente dentro do livro, segurou o colar forte e se deitou. Chorou como sempre fazia quando ele ia embora, mas dessa vez, ela segurou o presente bem perto do rosto e repetiu três vezes "William". O rosto dele apareceu, e o pingente esquentou. Entre soluços ela esperou, mas acabou adormecendo.
