6:30. O relógio da sala toca, seu som meio abafado pela distância. Os cozinheiros ao lado de Maria se apressam em cortar os legumes; algo cai no chão, o cozinheiro chefe passa um sermão geral e, exatamente como nos últimos anos, a porta se abre e um loiro muito sorridente adentra a cozinha, vestido com seu uniforme caro da escola particular.
- Maria! – Quatre se senta na mesa encostada no fogão e joga a mochila ao seu lado. – Sentiu minha falta? Entrou em depressão? Há alguma possibilidade de você cozinhar algo que tenha relação com a palavra "hambúrguer" hoje à noite?
- Não, não e não, loirinho. Nós temos que ter essa mesma conversa todo santo dia? – Maria entrega um copo de suco de laranja ao garoto, que já estava pronta para quando ele chegasse.
- Sim, senão o dia não vai estar completo! – Quatre continuou sorrindo, tentando beber o suco enquanto tirava o casaco preto que fazia parte do uniforme da escola.
- Menino, onde está a sua gravata? – ela cruzou os braços com o seu famoso ar "vovó sabe o que você aprontou".
- Minha o quê? – Quatre fez um pequeno bico inocente, tentando entender do que se tratava.
- Gravata. – Maria passou a mão pelo pescoço para explicar.
- Ah! Aquele pedaço de pano que as pessoas usam pra dependurar no teto e se enforcarem? – sorriu de novo, como se estivesse falando de coelhos saltitantes pelo campo.
- Cadê?
- Meu cachorro comeu? – ele chutou meio incerto, olhando bem à senhora de avental só pra ver se ela tinha comprado. – Bom, vamos dizer que eu acordei de manhã e todas as minhas gravatas tinham sumido, O.K.?
- Sei, sei, viu? Qualquer dia você é expulso dessa escola pelas coisas que você apronta, Quatre! Só esse ano já foram pichações...
- Que eles não tem nenhuma prova de que fui eu...
- O trote da bexiga de tinta na sala do diretor...
- Limpei todas as minhas digitais da cena do crime...
- Sem contar que os professores não te aturam, menino! – Quatre ficou vermelho e tratou de colocar uma expressão emburrada em seu rosto.
- Pois deveriam! Eles ganham muito bem pra se preocuparem com um simples garoto mimado de dez anos enquanto os colegiais do outro lado da escola ficam fumante maconha no intervalo das aulas!
Maria abre a boca assustada.
- Deus, de onde você tirou isso, criatura?
- Acontece que eu tenho dois olhinhos que enxergam muito bem, tá?
- Então, porque não conta pro seu pai?
- Eu, hein! Pra ele me colocar pra ter aulas particulares aqui em casa? 'Mais' nunca! Pelo menos lá na "prisão" eu tenho outros riquinhos mimados pra tirar sarro...
- Mas eles não são seus amigos? – Maria o fitou curiosa.
- Hahahahaha! Se eles são meus amigos, eu não preciso de inimigos!
- Mas, Quatre... – o loiro revirou os olhos. Lá vinha o "Mas, Quatre"... – Por que você não gosta dos seus coleginhas?
-Só pra você ter uma idéia: hoje todo mundo saiu que nem louco de lá pra ver "Chiquititas"! O SBT tá reprisando a partir de hoje, então foi o mó auê... Teve gente que pulou o portão pra não se atrasar! E sinto muito, mas eu não posso ser amigo de alguém que assiste "Chiquititas"...
Maria, com um ar brincalhão que ela só tinha quando o loiro estava por perto, foi pegar mais alface do outro lado da cozinha e Quatre aproveitou a chance pra fazer de refém o pote de bolacha que estava dando sopa em cima da mesa já há algum tempo.
- Mas o quê... solta já isso, menino!
- Nhão... – o loiro agarrou firme o pote no colo. – Eu é que não vou comer essa coisa cheia de verdura que 'cê 'tá fazendo aí, viu?
- Seu pai vai ficar bravo!
- Correção: meu velho vai ficar bravo se ele souber!
- Se entupir de bolacha faz mal, meu pequeno!
- Estar apaixonada pelo jardineiro há vinte anos e não ter coragem nem de dar um "oi" pra ele também faz mal ... – comentou casualmente.
Maria o fuzilou com seu olhar mais severo.
- Não tô mais aqui!!!
Quatre desceu imediatamente da mesa, ainda com o pote nos braços e agora saboreando um Traquinas de morango. Foi quando, de repente, percebeu que alguém o olhava pelas costas a poucos metros de distância.
Virou levemente a cabeça para trás, o suficiente para seus olhos azuis pararem na figura morena que o fitava vividamente. Um garoto da idade dele, um pouco mais alto, lábios levemente avermelhados, cabelos cor de chocolate cobrindo parcialmente um dos olhos... Quatre parou de mastigar sua bolacha. Olhos verdes dignos de um deus...
Abrindo um sorriso, o loiro não perdeu mais tempo:
- Oi!
Afinal, não deveria ser tão difícil trabalhar na casa dos Winner. Tudo que tinha de fazer era ajudar na cozinha quando houvesse festas ou reuniões, sem contar que agora ele tinha um quarto para dormir e não teria que vagar por aí até que algum orfanato decidisse "catá-lo". Tudo que tinham dito para ele foi: "Ajude apenas se te chamarem" e o largaram no meio da cozinha.
Trowa olhou bem para uma senhora negra com um avental cheio de desenhos de flores que acabara de entrar na cozinha. Ela tinha um ar muito doce, como o de uma avó que fica sentada numa cadeira de balanço e faz tricô o dia todo.
É, talvez não fosse tão ruim mesmo...
Uma mansão enorme daquelas, tantos empregados... E havia apenas dois Winner vivendo ali. Ninguém iria nem notar a presença dele...
Exatamente 6:30. Ouve-se a batida do relógio na sala e todos os cozinheiros aceleram o passo, como se percebendo que a hora do julgamento final estava próxima. Bom, era só ficar parado até que alguém pedisse ajuda. Isso ele sabia fazer...
- Maria!
O coração de Trowa parou. Um garoto loiro, da idade dele, entrou alegremente na cozinha, se sentando de forma travessa numa mesa e jogando a mochila do lado. O uniforme preto amarrotado destacando sua pele clara, sua voz suave e feliz, os lábios carmesins que se abriam pra tomar o suco, seu rosto que ganhava diferentes tons de vermelho enquanto ele falava, o modo possessivo como ele segurava o pote de biscoitos,... Tudo nesse garoto era uma graça!
O moreno tentou sair de fininho dali, antes que alguém o pegasse encarando o provável "herdeiro dos Winner", mas já era tarde demais. O querubim estava de pé e já havia notado que alguém o olhava. Trowa viu em câmera lenta ele virar a cabeça levemente para trás, como se fizesse uma espécie de charme inconsciente, mas ainda assim um charme. Seus olhos pararam nele, como se tentassem lembrar de quem ele era; e pela primeira vez, o moreno viu os olhos azuis bebe mais fascinantes que já existiram.
Um momento se passou. Trowa fitando o jeito maroto do anjo: uniforme meio aberto, as migalhas da bolacha espalhadas sedutoramente pelos lábios, pequenas mexas de cabelo caindo pela testa e chegando até a metade dos olhos... E o outro o estudando marotamente. Antes que ele se desse conta, o garoto já tinha se virado totalmente em sua direção e sorria, alegre.
- Oi!
A saliva entalou na garganta do moreno. Era com ele aquilo?
- Oi...
Parecendo mais encorajado com aquilo, estendeu o pote para Trowa, numa oferta de paz.
- Hã... eu não posso, obrigado. – recusou sem jeito, mas o loiro pareceu meio contrariado.
- Não quer ou não pode?
Trowa ficou sem reação diante de mais um sorriso vindo daquela boca, não sabendo o que responder.
- Foi o quê eu imaginei... – Quatre continuou com a mão estendida, oferecendo o pote. Suspirando completamente vencido, e percebendo que jamais ele conseguiria negar algo ao anjo, ele estendeu a mão e pegou um Traquinas, assim como o próprio loiro fez em seguida.
Ficaram ali mastigando e se admirando como... Bem, como duas crianças de dez anos que eles eram...
- Eu sou Quatre! – ele praticamente pulou no pescoço do moreno, deixando-o muito e desconcertado. Trowa parou de respirar ao fitar o rosto feliz do menino em seu ombro. – E você?
- Eu... – "Droga! Qual é o meu nome mesmo?". Pensou atordoado. – Me... Meu nome é Trowa, mas... eu não sou ninguém. – falou sem emoção.
Quatre pareceu não entender por um segundo, no entanto sorriu logo em seguida. Um sorriso caloroso e cheio de amor.
- Ah, está enganado! Você é o menino de que eu mais gosto!
Continua (?)
Eu sumi por um tempo, mas já tô voltando á vida, minha gente! Valeu mesmo por todos os comentários e o apoio que tem tanta gente me dando, e desculpe por ter sumido! Tô muito feliz agora! T.T
