Capítulo 1. Cor de violeta
Ele entrou no seu passo macio, sem ruído. Não chegava a ser furtivo, era apenas um andar discreto. Educado, como diria sua mãe, antes de insistir que ele deveria fazer o mesmo que o irmão e passar horas andando de um lado para o outro com um livro na cabeça.
- Sirius! Onde você está? Dormindo? – perguntou, antes de ver o irmão levantar da cama com a cara amassada. – Está sozinho?
Os olhos de Régulos correram pelo quaro, como se tentasse descobrir se o irmão não escondera uma garota em algum lugar.
- Estava lendo – respondeu Sirius, mostrando um livro de transfiguração avançada.
- É um dever de casa? – Régulos ergueu as sobrancelhas.
Sirius fechou o livro e acomodou as costas na cabeceira da cama. Nada escapava aos olhos curiosos do irmão.
- Não, estou só tentando aprender como transfigurar tia Elladora num peru. Quem sabe não faço isso no próximo natal, seria uma ceia e tanto – Sirius riu de um jeito que deixou o irmão mais novo em dúvida se ele falava sério ou apenas brincava. Talvez nem mesmo Sirius soubesse.
Régulos deixou o envelope que trazia na mão sobre a mesa de cabeceira e mostrou ao irmão um grande cacho de uvas roxas.
- Veja, estão maduras – balançou o cacho no ar como um pêndulo. – Trouxe esse pra você, antes que as garotas acabassem com tudo. Narcisa insiste em pegar todas as uvas para fazer comida de boneca – Régulos fez uma careta que revelava bem o incômodo que as primas lhe causavam. Típico, em se tratando do garoto de onze anos que era.
- Já estão boas? Mas o verão mal começou – Sirius pegou o cacho e examinou as uvas. Puxou um dos frutos, tomando cuidado para não romper a delicada casca.
Colocou a uva na boca e mastigou devagar. Era enjoativa de tão doce. Cuspiu as sementes na palma da mão e as atirou pela janela num lançamento preciso.
- Trouxe também outra coisa. Mostro depois – Régulos sorriu, desviando os olhos para a janela.
O jardim abaixo se estendia até aonde a vista chegava, como um tapete verde manchado de cores vivas – as cores das flores desabrochando para o verão.
- Que coisa?
- Surpresa – Sirius o encarou, curioso e Régulos lhe sorriu de volta. Quando ele sorria, sempre se parecia com o menino de três anos que a mãe vestia quase como uma menina e o exibia para as amigas como seu doce e adorável caçula.– Mostro depois.
Sirius não insistiu. Conhecia aquela expressão do irmão. Ele a usava sempre que vinha lhe mostrar algo escondido no bolso ou debaixo da cama. Fazia mistério por um tempo, mas sempre acabava mostrando. Tudo não passava de um jogo, queria impressionar, por isso nunca deixava de ficar rondando Sirius com aquele sorriso antes de dizer a que viera.
Régulos. Seu irmão. Cabelos castanhos, com finas mechas queimadas de sol exibindo um brilho dourado. A pele branca que rapidamente se tornava vermelha no sol. As feições da mãe, com rosto pequeno e traços finos e delicados que nada tinham a ver com os firmes trejeitos dos Black. E aqueles olhos. Os olhos de Régulos tinham o mesmo brilho das uvas.
- Violeta... Mamãe disse uma vez que seus olhos eram cor-de-violeta.
- Cor de violeta? – Régulos olhou curioso para Sirius, enquanto este comia mais uma uva do cacho.
Régulos olhou para a pilha de livros ao lado da cama do irmão e se abaixou para ajeitá-la cuidadosamente. Depois esboçou um gesto de quem procura, provavelmente sentindo falta de um lugar certo para colocar os livros. Formou-se em seu rosto uma expressão de resignado bom humor. Então a desordem daquele quarto não comportava um móvel simples como uma escrivaninha?
- Ela disse "Régulos tem olhos cor de violeta" – repetiu Sirius.
- Como alguém pode ter olhos cor de violeta? – indagou Régulos, desistindo dos livros e se sentando na beirada da cama de Sirius.
- Cor-de-violeta – repetiu o outro, atirando mais caroços pela janela.
- Violetas... mamãe costumava fazê-las florescer até mesmo no inverno, lembra, Sirius? Eram violetas que ela tinha na estufa, não eram?
- Eram – respondeu.
- Ela não gosta mais de plantas – comentou Régulos. – A última que ela plantou foi a parreira. Lembra que quando éramos pequenos nunca deixávamos os cachos amadurecerem? – riu o garoto.
- Nunca esperávamos.
Régulos começou então a dobrar as mangas da camisa, com aquele jeito todo especial de garoto bem educado capaz de dobrar as mangas sem fazer rugas ou amassar o tecido. Sirius reparou que ele finalmente tinha parado de andar por aí com as horríveis abotoadoras de serpente dadas pelo avô paterno dos dois.
- Andrômeda quer que você desça – comentou Régulos.
- Estou ocupado – Sirius apontou para o livro.
- Mas não é um dever, você pode deixar pra mais tarde – insistiu o outro.
Sirius se ergueu do colchão, colocando os pés descalços em contato com o chão frio – um alívio para o calor do quarto que recebia sol direto quase o dia inteiro. Andou até a janela, sentindo um sopro de brisa. Mas era quente. A mansão inteira parecia estar no meio de um braseiro. Ficou alguns minutos respirando de boca aberta.
Abaixou os olhos para a grama verde e se viu correndo ali, fugindo com uma das bonecas de suas primas debaixo do braço. Era isso que Régulos fazia. Trazia lembranças da infância. Não via que aquilo só causava mais rancor dentro dele? Por que não podia deixá-lo em paz com seu quarto abafado, sua grande bandeira da Grinfinória sob a cama e seu ódio a todos os moradores daquela casa? Por que tinha que ficar aparecendo com uvas e aproveitar para espetá-lo com aquelas lembranças?
Não queria lembrar de nada. Não queria saber de nada. Era mais fácil ser vazio. Era mais fácil ser o filho desencaminhado, aquele para quem ninguém nunca direcionaria suas expectativas. Se pudesse ficar assim imóvel para sempre, respirando leve, se pudesse ficar assim por um instante que fosse, talvez a sensação passasse...
- Vamos? Os elfos fizeram torta de maçã, você adora – pediu Régulos, e ele sentiu aqueles olhos (olhos cor-de-violeta, tão estranhos aos olhos negros dos Black) fitando-o.
- Não gosto mais de coisas doces – falou Sirius.
- Não me diga que está fazendo regime...
Sirius limpou as mãos suadas nas cortinas de cetim. Sua camisa branca estava cheia de marcas de suas mãos sujas. "Esse menino se suja a todo momento. Não se pode vestir uma roupa bonita nele e ele a destrói completamente correndo naquele maldito jardim. Tão desagradável!"
Sua mãe nunca lhe poupara desse tipo de comentário. Régulos era vestido como um principezinho, mas ele, que sempre se sujava, vestia roupas simples. Ela nunca usava a palavra "sujeira". Sempre se referia às manchas de terra e comida nas roupas de Sirius como "descuido". Era capaz de ralhar com Sirius por seus "descuidos" usando a mesma elegância com que se vestia para vestir as palavras.
Ela gostava de palavras bonitas. Por isso tinha dado ao seu primogênito um nome de estrela. Mas gostava mais ainda das belas imagens. A casa inteira estava decorada com fotografias de Régulos em elegantes roupas.
"Laura é como o rei daquela história", dissera seu pai, num dia de inspiração. "Mas, em vez de transformar tudo em ouro, transforma tudo em beleza."
Tudo menos Sirius. Não que ele tivesse sido uma criança feia. Só não era bonito da forma que a mãe queria. Não era um menino para ser fotografado. Energia demais. "Descuidos" demais.
Régulos se conservava limpo. Sempre, como se estivesse numa redoma. Podia rolar no barro e não maculavas as vestes com uma única partícula de sujeira. Sirius não. Com a maior facilidade estava imundo da cabeça aos pés, pronto para ser jogado pelos elfos domésticos numa tina cheia de espuma.
- Sonhei com essa casa ontem a noite – Sirius ouviu a voz do irmão, se aproximando naquele passo silencioso. – Estava abandonada. Foi um sonho estranho.
- Sonho com essa casa quando estou em Hogwarts – comentou Sirius.
- Mamãe aparece em seu sonho? – perguntou o caçula.
- Sim.
Sirius se lembrou daquele sonho. Sua mãe e seu pai rodopiando numa valsa, com os ágeis pés mal tocando o chão.
- Ela estava dançando? – perguntou Régulos.
Ele sabia que aquilo era na verdade uma lembrança. Sua mãe estava jovem e sorria. A Sra. Black simplesmente não sorria mais agora.
- Ela estava dançando, Sirius?
- Não – respondeu Sirius. – Estava gritando comigo.
Régulos esboçou um sorriso amarelo e falou:
- No meu sonho ela estava dançando comigo.
Sirius se virou para o irmão, que sorria. E seu sorriso lembrava o que vira em sua mãe no sonho.
- Então, vamos descer?
- Não – falou, asperamente.
"Sirius, por que você faz isso com seu irmão? Ele está chorando agora..."
- Mas... a torta de maçã – Régulos suplicava com os olhos se curvando numa expressão de tristeza.
Régulos não podia simplesmente se limitar aos cômodos da casa que lhe diziam respeito? Sirius não queria que o irmão deixasse de gostar dele. Bastava que o ignorasse. Tinha que ficar sempre por perto daquela maneira, observando-o com aqueles olhos compridos?
Desde pequeno, no berço, já o olhava assim. Desde pequeno Sirius se sentira condenado àquela observação fraternal. Se lembrava de se esconder no porão, subir em árvores, fazia tudo para desaparecer das vistas do irmão, sempre imaginando "pronto, agora ele não vai me achar". Então lá vinha ele, aquelas mãos rosadas estendidas, o gemido de tristeza misturado à alegria de encontrá-lo. Parecia farejar o rastro de Sirius pela casa.
- Era essa a surpresa? – perguntou Sirius, se largando de novo na cama. – A torta de maçã?
- Ah, não, não! – exclamou Régulos, ao mesmo tempo em que a tristeza era varrida de seu rosto e voltava-lhe a expressão misteriosa. – A surpresa é outra.
"Sirius, não faça seu irmão chorar! Não quero que ele fique triste.", repetia sua mãe, em tantas ocasiões que elas se misturavam em suas memórias.
Para que Régulos ele não ficasse triste, só Sirius soube que a avó ia morrer. "Você já é bem grandinho para saber da verdade", dissera sua mãe.
Naquele natal, a matriarca dos Black viera ficar com eles e todos tinham se reunido ao redor de sua cama na noite de 25 de dezembro. Sirius se lembrava de ter tido a visão anuviada pelas lágrimas. E também lembrava que tinha pousado a cabeça ao alcance das mãos enrugadas da avó. Mas ela só via a flor amassara que Régulos trouxera das estufas. A pétalas pendiam pelo modo desajeitado de segurar das mãos pequeninas, mas era como se fosse de ouro puro aos olhos da avó.
E ele? Ele tocou a mão da avó mais uma vez. Mas estava gelada. Ela já estava morta. E tinha a estúpida flor, já seca, pousada nos cabelos cinzentos.
- Que é que você está escondendo, Régulos? Não vai me dizer?
Mas ele não pareceu ouvir. Tinha os olhos fechados e inclinava a cabeça para trás.
- Biscoitos! – exclamou. – Andrômeda deve estar fazendo. Me disse que aprendeu a receita da vovó.
"Malfoy está esperando", Sirius anunciara, ante a mesa posta para o café da manhã de natal, com várias travessas de biscoitos feitos em casa. Tinha então onze ano e o irmão seis.
O par de olhos cor-de-violeta o mirou, temeroso, e então Régulos se levantou e dirigiu-se para a porta com uma firmeza que espantou Sirius. Teve a visão do irmão ensangüentado, a linda roupa azul e preta em tiras.
"Você é menor, Regulos, vai apanhar feio..."
"Não vou deixar o Malfoy chamar os Black de covardes."
Sirius sentou numa das cadeiras e observou o irmão ir embora, enfiando na boca vários biscoitos de uma vez. A visão não lhe saía da cabeça e agora vinha incrementada com a mãe deles, irrompendo na cozinha, em prantos, com Régulos ensangüentado nos braços.
"Sirius, está me ouvindo? Onde está seu irmão?", a mãe (a real) o interpelou.
Sirius encolheu os ombros. Não sabia. Não era o elfo doméstico de Régulos. A mão o ficou observando, com aqueles olhos de um azul vibrante. Lembravam um pouco os de Régulos. Cor-de-violeta.
Sirius então saiu de casa, ainda comendo os biscoitos que enfiara nos bolsos. Foi andando pelo quintal, contornando a casa em direção ao portão. Olhou para as grades de ferro e parou de mastigar. Se precipitou, correndo para fora. Queria o irmão vivo...
Encontrou-o sentado na sarjeta, com a blusa azul de ceda rasgada e um arranhão fundo no braço. Sorriu palidamente. Ofegava. Malfoy e sua turma tinham acabado de ir embora. Sentia dor no pé. Tinha torcido, talvez.
"Ele não usou magia?"
"Usei primeiro", anunciou Régulos, um brilho perpassando aqueles olhos luminosos.
Não podia andar de volta para casa. Sirius o apoiou.
"Que bom que você veio me buscar", falou, sorrindo.
- Então não vai mesmo descer? – perguntou Régulos, fitando-o inquisidoramente.
Sirius acenou confirmando e voltou a mergulhar na leitura.
- O que você está estudando afinal? – indagou Régulos.
- Coisas de Hogwarts.
- Me diga o que é – insistiu. – Vou estudar isso um dia também!
- Você vai pra Durmstrang, não tem nada a ver com as coisas de Hogwarts – concluiu Sirius.
Então lançou um olhar ao envelope deixado por Régulos sobre a mesa de cabeceira e reconheceu o brasão. Um H ao redor do qual se dispunham quatro animais – o leão, a cobre, o texugo e a água. Adivinhou a surpresa. E isso provocou nele uma dor quase física.
- Papai resolveu te mandar para Hogwarts, é isso?
Régulos sorriu. E o sorriso se estendeu para os olhos. Olhos cor-de-violeta.
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Uma fic escrita durante a madrugada depois de eu ter pego um dos meus livros de contos pra reler alguns dos meus favoritos. Eu ainda não sei se vai ter continuação, mas deixei o título Cores pra poder continuar se me surgir uma boa idéia o.o
Comentem, viu? n.n
Bjos,
BelWeasley
