Capítulo 2. Amarelo das folhas
Ela entrou na cozinha, pé ante pé, tomando cuidado para não chamar a atenção dos elfos domésticos que trabalhavam de costas. Atravessou o caminho até a porta dos fundos o mais silenciosamente possível, suspirando longamente quando, enfim, fechou a porta atrás de si.
Calçou os sapatos sentada no pequeno lance de escadas diante da porta e correu em direção ao quintal, sacudindo a cesta acima da cabeça. Suas tranças refletiram o brilho dourado do sol, que apenas começava a macular a névoa do amanhecer. O dia seria azul quando ele conseguisse subjugá-la.
Chegando à cerca viva, atravessou-a de gatinhas por uma buraco nos ramos, indo encontrar o bosque. A caçada começou, com seus trêmulos dedos remexendo montes de folhas à procura de alguma que pudesse ser interessante.
Tinha medo de altura, nunca voava (uma vergonha para a família!), mas não tinha medo de adentrar o bosque e arriscar os pés e as mãos entre espinhos. E formigueiros. Tinha alergia às formigas. Ficara cheia de manchas vermelhas da última vez que encontrara um. Sua mãe a enchera de perguntas.
Valia a pena. Estava procurando folhas raras para levar para ele. A mais rara – uma que ele examinaria maravilhado e colocaria dentro do livro de capa preta. Terminar a escola queria dizer poder passar os outonos em casa. E sair para encontrar aqueles olhos amarelos e procurar folhas raras no bosque.
"Sambucus Nigra", ele dissera, apontando para a folha de um sabugueiro que ela tinha entre os cabelos castanhos. A primeira coisa que ouvira naquela voz melodiosa dele. Rolara barranco abaixo, tinha os cabelos e as roupas cheias de folhas. Não teria tido que correr como louca pelo bosque e rolar o barranco se não fosse o enxame de fadas mordentes. Maldita Bellatrix. Haviam lhe mordido a orelha. Olhos amarelos observando-a com curiosidade. Amava a irmã.
"Sabe o que é um botânico?" Não sabia. Só via os olhos amarelos dele. Do mesmo tom das folhas que caem das árvores no outono.
Era botânico, uma pessoa que estudava as plantas. Teodoro Tonks. Estava fazendo uma pesquisa para um trabalho da universidade. Trouxa. Ficara impressionado por ela não ter se machucado ao tombar diante dele (o barranco terminava tão abruptamente que era quase como se ela tivesse caído de uma árvore). Mas, oras, Andrômeda nunca se machucava. Desde pequena sabia, inconscientemente, como usar sua magia pra se proteger. Caíra uma vez do telhado e nem sequer se arranhara.
Naquele dia ela se machucou. Seus joelhos amoleceram diante dos olhos amarelos e ela perdeu o equilíbrio, caindo de mau jeito, sentada sobre o pé. Não conseguia pisar. Tonks se oferecera para ajudá-la a voltar pra casa. Como dizer não aos olhos amarelos? Ele havia passado um braço por debaixo do braço dela, envolvendo-lhe as costas. Com o outro ele ergueu suas pernas, tão levemente que ela se sentiu uma pluma sem peso.
Não era. Era a mais alta das irmãs e tinha problemas com o peso. Doces. Era louca por doces. E também adorava cozinhar. Resistira a infância inteira à ameaça de se transformar numa bolota com grandes bochechas rosadas. A adolescência aumentara o problema. Bellatrix e Narcisa eram magras sem nenhum esforço, tinham cinturas finas como bailarinas, pernas bonitas, feições finas. Ela não. Nem as poções emagrecedoras resolviam seu problema.
E, no entanto, Tonks (não, deveria chamá-lo de Ted, era como os amigos o chamavam, eram amigos agora, não eram?) lhe sorria de uma maneira que ela nunca vira nenhum homem sorrir para suas irmãs.
Permitira que ele a carregasse até a cerca viva e então inventara que já estava bem para andar sozinha. Não estava, claro, mas deixar um trouxa se aproximar da mansão Black não era exatamente uma opção.
Deixou de roer as unhas poucos dias depois, para espanto de sua mãe, que já tinha feito ameaças, chantagens, promessas, tudo que podia. Sem resultado. "Se eu contar, ninguém acredita", resmungava a mãe, vendo-a cortar as unhas, que, pela primeira vez em muito tempo, tinham crescido o suficiente para serem cortadas. Andrômeda colocava sua mais inocente expressão no rosto e dizia que não era bonito uma moça ter mãos feitas. Ted lhe dissera isso. Nunca se importara com as mãos antes, mas, no instante em que ele dissera isso, começara a se importar.
Ted dissera também que odiava falsidade e ela deixou de mentir. Ou passou a mentir menos. Andrômeda sempre se achara tão pequena e apagada que sentia a necessidade de se cobrir de mentiras brilhantes. Mentia sempre, com ou sem motivo. Mentia principalmente à mãe e a Narcisa, que era tonta o suficiente para sempre acreditar. Não mentia à tia Clotilde, a tia solteirona que morava com eles. Era meio vidente e parecia saber ver dentro das pessoas. "Tudo na vida pode se alterar, menos o destino traçado nas mãos", dizia sempre e com muita certeza. Tia Clotilde era boa em ler mãos. Dizia-se capaz de revelar o passado, o presente e o futuro. Dissera que Andrômeda não ia se casar com um bruxo uma vez, o que causara grande rebuliço na família. Um rebuliço nada agradável.
Mentiras eram como folhas de árvores que ficavam nuas a cada outono, segundo ele. Ao fim delas, só restava a galhada seca e retorcida, morta por uma estação inteira. Não era falsa com ele. Não conseguia. Ted sempre notava e voltava os olhos amarelos para ela, fitando-a com tamanha intensidade que seus joelhos ameaçavam ceder de novo.
A família dela não gostava de estranhos, por isso não o convidava para o jantar. Com um simples olhar daqueles olhos amarelos a mentira era duramente golpeada e morria. Com aquele olhar transparente, reto, ele deixava claro que queria a verdade. Não podia. Ele não acreditaria, acreditaria? Era um daqueles casos em que a verdade era ainda mais mirabolante que a invenção.
"Acho a verdade tão banal quanto uma roseira, daquelas que se planta nos jardins. Não tem graça", explicara Andrômeda. Ted discordou. Abriu seu livro preto cheio de folhas envoltas em plástico e virou as páginas até achar a folha da roseira. Estendeu-lhe o livro e uma lupa. "Veja de perto."
Não importava que a verdade tivesse valor, não podia. Mas continuava correndo pelo bosque, através da malha apertada de ramos e galhos de árvores, procurando por folhas diferentes numa alegria desatinada. O que tia Clotilde diria sobre aquilo? O que veria em seu futuro com Ted?
"Você é meio mágica, sabia?"
"Mágica?" – ela arregalou os olhos de surpresa.
"Como uma fada. As coisas sempre parecem acontecer como que por mágica perto de você", dissera Ted, com aquele sorriso encantador. Ela não resistiu e sorriu de volta. Lírios silvestres desabrocharam aos seus pés.
Andrômeda o avistou naquela manhã parado numa clareira, usando calças de flanela e um suéter de lã.
- Está frio – ele disse, ao vê-la se aproximar. Ela usava um fino vestido de verão e sapatos velhos para poder correr com desenvoltura.
- Não sinto frio.
Sentia calor, a face toda ficando rubra como metal incandescente.
Tia Clotilde dissera na noite anterior que ela estava com febre, ao chegar em casa, toda vermelha daquele jeito. Ela dizia que não, estava assim porque viera correndo. O assunto do noivado pairou novamente nas conversas do jantar. Um pretenso noivo com um bom trabalho no Ministério e uma boa casa. Não poderia esperar um milionário como as irmãs. Estava já ficando velha para o casamento. Dezoito anos era uma idade avançada naquela família.
Andrômeda não queria nenhum milionário, tinha seus sonhos já voltados para um par de olhos amarelos. Olhos de um trouxa. Seria um escândalo, ela sabia. Provavelmente seria retirada da árvore genealógica da família. Não importava. Se os olhos amarelos de Ted a quisessem, nada mais importaria. Ela queria acreditar que ia ser assim. Ted lhe dera um crisântemo. Não propriamente dera a ela, mas lhe passara um, colocara-o em suas mãos antes que ela partisse na noite passada.
Haviam conversado sobre a linguagem das flores. Cada uma tinha um significado, os botânicos sabiam disso. "O lírio é a pureza", ele disse, e isso a fazia pensar na meninazinha trouxa que conhecera na escola. Lilly. Lírio. Pureza e olhos verdes. O amigo de Sírius ia acabar conseguindo algo com ela. Ele a olhava daquele mesmo jeito que Ted olhava para Andrômeda.
- Salix Purpúrea – ele apontou maravilhado para uma imensa árvore de casca muito grossa.
Latim era a língua dos botânicos. Andrômeda odiava latim, mas, se era a língua de Ted, ela não via sacrifício nenhum em desenterrar sua velha gramática de latim do fundo do armário. Salix Purpúrea, isso ela entendia. Era um salgueiro.
- Formica bestiola est – falou ela, apontando para uma formiga que escalava o tronco do salgueiro com um grande pedaço de folha nas costas. Havia passado a noite procurando uma frase em latim que pudesse decorar e dizer para impressioná-lo.
Ted voltou os olhos amarelos para ela. A formiga é um inseto. Talvez não estivesse impressionado, mas com certeza não ficou indiferente. Riu. A risada mais gostosa que Andrômeda já ouvira sair daquela boca fina e bem desenhada. Ela riu também, mais confusa que contente. Ao menos ele achava alguma graça nela. E, se não achasse, não importava. Ele lhe dera um crisântemo.
Dera mesmo? Talvez só tivesse pedido que guardasse. Ela pensara nisso, por isso trouxera a flor consigo, escondida num bolso do vestido.
Ficou pensando e esqueceu de olhar onde pisava. Pisou num formigueiro. Formigas subindo por suas pernas muito brancas. Andrômeda gritou, sacudindo as pernas como uma maluca até cair sentada no chão. Ted estava morrendo de rir. Tentava tomar fôlego para ajudá-la a se levantar.
- Vai se machucar, menina!
Não era menina. Tinha dezoito anos. Para os Black isso já era plena maturidade. Ela quis dizer isso a ele, mas já estava cheia de dor das picadas de formiga. Ted ficou preocupado, não sabia que ela era alérgica. Não contara.
- Se tivesse contado, você não aceitaria minha ajuda – ela argumentou.
- Não aceitaria e você estaria segura – retrucou Ted.
Andrômeda não se importava com estar segura, queria era estar com ele. Não entendia isso? Não. Ela não era capaz de dizer. Deveria. Era uma Black.
"Uma mulher de cabelos de cobre vai vir buscá-lo", dissera tia Clotildes. Andrômeda não contara a ninguém sobre Ted, mas sua tia tinha esse dom de falar sobre coisas das quais não sabia. Não importava. Não ia vir mulher alguma. Ela mordia o lábio inferior e repetia para si mesma. Não ia.
- Tenho uma coisa pra te dar – ela falou, fingindo só se lembrar naquele momento da folha de hera que encontrara mais cedo. Folha em formato de coração.
Ted olhou para a folha como se visse algo fantástico. Inacreditável. Sorriu para ela e beijou a folha.
- Vou guardá-la aqui – colocou dentro do livro. Os olhos dela brilharam de orgulho. Conseguira. Encontrara a folha rara que merecia ser colocada no livro. Tia Clotilde podia prever o futuro, mas Andrômeda podia modificá-lo.
Seguiu na frente, olhando atenta para o chão. Folhas importantes sempre apareciam no meio das comuns. Estava feliz. Andava de um modo muito solene, tinha no bolso o amor. Um crisântemo. Ted vinha logo atrás.
"Gosta desse tipo de romance?", ele lhe perguntara, quando ela chegara um dia com um de seus livros no bolso. Um livro trouxa, daqueles vendidos em bancas de jornal. Era maluca por esses romances aguados. Ele riu.
"Você não gosta de romantismo?", ela perguntara, murchando de vergonha.
"Não é isso. Não acho que essa embromação tenha a ver com romantismo. As pessoas sempre parecem morrer pra dizer 'eu te amo'", ele se justificou.
"Você não diria se sentisse que ama?", indagou Andrômeda.
"Não dessa maneira. No dia que eu quiser dizer a uma mulher que a amo, darei a ela um crisântemo. Um crisântemo amarelo. Quer dizer 'eu te amo' na linguagem das flores. Bem conveniente a um botânico, não acha?"
Era formidável. Nunca encontraria de novo um homem como Ted. Nem bruxo nem trouxa. Pouco importava. Era encantador.
- Conhece alguma mulher ruiva? – indagou ela, quando atingiram as margens de um rio.
- Ah, sim – Ted respondeu rapidamente. Ele olhou de uma maneira estranha para ela e Andrômeda adivinhou por quê. Podia sentir o sangue fugindo de seu rosto. Provavelmente estava branca que nem papel. A boca estava seca e o coração fazia um barulho tão alto enquanto batia que ela temeu que ele pudesse ouvir.
Ted sorriu amigável e abriu o livro preto. Puxou de dentro uma fotografia. Trouxa. Ela já havia ouvido que as fotografias dos trouxas não se mexiam, mas nunca tinha tido a oportunidade de ver uma. Tentou não parecer espantada. Uma moça ruiva posava com Ted na foto. E tinha os braços em volta do pescoço dele. Ele olhava para ela com a mesma concentração que usava quando selecionava as folhas.
- Ela vem me ver amanhã. Vamos voltar juntos para Cambridge. Te contei que estudo lá, não contei?
Ela baixou os olhos, sem querer acreditar que o encontro daquele dia era uma despedida. E ele nem sequer a beijara. Era apenas um crisântemo. Não queria dizer nada. Um crisântemo amarelo. Vai ver isso queria dizer adeus.
- Vou sentir saudades de ter uma ajudante tão devota – ele disse.
Não podia acreditar que ele estava mesmo partindo.
- ... e tão bonita – completou Ted.
Andrômeda virou o cesto, derramando todas as folhas entre os dois. Aí estavam. Precisava voltar pra casa. Ela quis partir, correr de volta para a mansão. Sabia que ele nunca a encontraria lá. Nenhum trouxa podia entrar na propriedade dos Black.
Ele se ergueu num salto para segurá-la pelo pulso.
- Está escondendo alguma coisa? Por que está fugindo?
- Não estou escondendo nada, me larga! – ela tentou se soltar.
Ted a soltou. Mas continuou prendendo-a ali. Com o magnetismo de seus olhos amarelos. Crisântemo amarelo. Ele não podia ter lhe dado. Não podia realmente querer dizer aquilo. Não. Ela era gorda. Era desajeitada. Nem era bonita. Nem um pouco. Não podia.
- E o nosso trato de dizer a verdade?
Andrômeda enfiou a mão no bolso e tocou a flor. Estava intacta. Ele estava esperando. Ela teve vontade de ouvir sua risada de novo.
Foi levantando a cabeça. Ele continuava esperando. O sol enfim desfizera a névoa e brilhava com toda a sua intensidade acima das copas das árvores.
- Onde está aquele crisântemo que dei pra você ontem?
- Pra mim? – Andrômeda arregalou os olhos, sem conseguir acreditar no que ouvira.
Uma chuva de pétalas de crisântemo – todas amarelas – caiu sobre os dois e Ted olhou maravilhado para o alto tentando ver de onde vinham. Era lindo, mas não fazia sentido para ele. Pouco importava. Andrômeda não queria esconder mais nada dele. Ted tinha dito que a amava. Ele ia entender, pensou ela, quando sentiu os finos lábios de Ted contra os seus.
Crisântemos amarelos. Folhas amarelas. Olhos amarelos – os olhos de Ted Tonks. O próximo outono não tardaria a chegar – o que era um ano pra quem tinha esperado a vida inteira? Andrômeda fez uma nota mental para não esquecer de perguntar a tia Clotilde em que linha do destino aconteciam os reencontros. Para se preparar para ela mesma partir com ele da próxima vez que Ted viesse.
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Segundo capítulo com outra cor e outro personagem n.n
Eu terminei de escrever ele e pendei "nunca escrevi uma coisa tão fofa na vida"...
Obrigada pela review Lilli-Evans n.n As impressões que o Sirius demonstra do irmão nos livros são do moleque que virou comensal, não do menino que convivia com ele quando criança.
Deixem comentários, por favor o.o
Bjos e feliz natal o/
BelWeasley.
