Dormia. Já estava acostumado com aquele ar estranho, que antes lhe incomodava os pulmões. Apertado em uma cama de exército, estava cada vez mais infeliz por ter acompanhado Duo Maxwell desde aquela vez, na pensão da Sra. Yuan (se lembrava do nome da velha!). Tudo bem que nunca teve uma vida lá das melhores, sempre sozinho e esquecendo de tudo, mas agora estava tudo muito pior. Estava com medo. Um medo que parecia não afetar seus dois amigos, que também dormiam ali. Enquanto Heero estava na parte de baixo do pequeno beliche de ferro, Duo ficava na parte de cima, e Quatre na enferrujada cama ao lado. Ganharam esse quarto de graça de um funcionário do exército da colônia, e em troca disso o ajudariam a limpar parte do quartel-general. Acordou com empurrões. Era o funcionário, o tal do Steves. Hey, vocês! Não vão fazer o trabalho que prometeram.
Duo acordou xingando. Que saco, hein? A gente já vai!
Já dormiram quatro horas! Tá muito bom, não tá? Nos dias de hoje cê não pode ser assim senão a vida acaba com você. ele cuspiu num canto. Acordem e vão trabalhar, senão eu chamo Quatre se sentou na cama, com dor de cabeça. Confirmou calmamente para Steves e disse que já iriam. O funcionário saiu pisando forte no chão e reclamando dos terrestres folgados.
Putz! Duo desceu da cama com um pulo, quase caindo em cima de Heero. Eu não sabia que a situação nas colônias tava tão ruim assim!
É mesmo... Quatre suspirou. O que será que deve ter acontecido aqui? Não tinha uma qualidade de vida tão péssima. Não conseguimos achar nenhum hotel ou pensão com preço acessível para nós e todos os albergues estavam lotados. Parece que tão em guerra constante.
E estão mesmo. É uma pena.
Heero enfim se levantou. Vamos?
Quando foi sair, deu de cara com um soldado da facção. O homem apontou uma arma em sua cabeça.

205 A.C.
06 Circo Fantástico

Se são da Terra, o que tão fazendo aqui?
A última coisa que Heero esperava agora era ser feito refém. Amarrados nas mãos e nos pés com cordas grossas, os três ficaram sentados, apenas esperando. Doze soldados estavam ali, de vigia.
Aquele Steves... reclamou um. Filho da mãe! Trazendo essa gente da Terra para aqui dentro. Eu sabia que ele não prestava!
Quatre encarou-os.
Nascemos nas colônias.
É mesmo? disse um deles. Não me parece.
Da Terra nós não temos informação nenhuma do que ocorre aqui no espaço. Quatre dizia como se fosse um simples visitante, e não um prisioneiro. Podem nos dizer o que anda acontecendo aqui nos últimos dez anos?
O soldado encarou-o com desconfiança, mas o olhar de Quatre parecia ser tão convincente que ele aceitou. É claro que vocês terrestres já ouviram falar nos Gundams. Os três confirmaram com a cabeça.
Pois bem. Eles eram nosso símbolo de luta e esperança.. Mas é uma pena que tenham lutado contra nós. Contra a Presa Branca. Era o grande símbolo da revolução, vingança sobre o túmulo de Heero Yuy, depois de 20 anos.
Heero se assustou. Vinte anos? Não vivera tanto tempo assim, vivera?
E, depois da Final War, eles e a tal da Relena Darliam queriam por tudo unificar a Terra e o Espaço Sideral. continuou o soldado. Estavam conseguindo, estávamos aceitando, até os terrestres nojentos quererem tomar as colônias de novo. Nos reprimiram. Aí os governos colonianos resolveram se afastar da Terra, terminando qualquer tipo de comunicação entre ela e nós. Por isso, é incrível que vocês tenham conseguido chegar aqui.
Quatre fechou os olhos, pensativo. Duo estava em um momento raro de silêncio e serenidade, também refletindo. Não houve ruído ali por pelo menos cinco minutos. Quatre então resolveu falar:
Esse afastamento total da Terra fez com que a economia das colônias despencasse, e ficar nessa condição em que está hoje.
Todos ficaram quietos. Duo resmungou um pouco.
E aí, Quatre? disse. Você acha que vale a pena ajudar esses caras?
Ajudar?
Os soldados nada entenderam. Winner pensou um pouco.
Talvez. Mas é bom estar ciente de que isso começaria outra guerra.
É claro que sim.
Fitaram um o olhar do outro, por um instante, e tomaram a decisão. Em momento nenhum consultaram sequer os olhos de Heero, para saber se ele concordava, o que ele pensava a respeito. Duo, rindo, disse por fim:
Desamarrem a gente que temos uma surpresinha!

Presas as mãos, para não tentar fazer nada suspeito. Eram as duas levadas por um corredor estreito de um dos estabelecimentos da OZ II, com dois soldados de cada lado, armados e atentos. Caminhavam da cabeça erguida e expressão de quem não era culpado. Seria culpa de alguém tentar melhorar a vida dos seres humanos? É, seria.
Pararam diante de uma porta no corredor. Ela se abriu, e de trás dela saiu um jovem de estatura média, com um ar muito formal e uma voz que poderia ser a substituta de Treize Khushrenada.
Tenente Lucrezia Noin. disse com aspereza. E Major Sally Po. Sejam bem-vindas. Eu sou Aurey Mallaica.
Nenhuma das duas respondeu. Apenas estavam impressionadas o suficiente para não responder. O famoso militar Aurey Mallaica, que todos diziam mas que ninguém conhecia o rosto, estava ali, diante delas. Tanto Noin quanto Sally estranharam porque Mallaica não gostava de aparecer em público, já que ele tinha uma belíssima aparência e uma voz estimulante, ao invés de ser um velho mirrado e rouco que preferia se esconder nas sombras da OZ II.
Boa tarde, Senhor Mallaica. Noin disse, cheia de polidez. Eu acho que houve um pequeno engano aqui. Nós não recebemos nossa acusação, nem ao menos uma explicação de porque estamos sendo retidas.
Um engano? Ele se aproximou das duas. Sally preferiu ficar quieta: não tinha tanta experiência com pessoas importantes tanto quanto a companheira.
Sim, senhor. Noin insistiu.
Então eu mesmo farei o favor de explicar-lhes. Mallaica fechou os frios olhos castanhos, depois os abriu de novo, encarando-a com uma formalidade venenosa. Reuniões militares que não sejam da OZ II são proibidas. Isso poder ser os primeiros sintomas de revoltas, que colocariam o mundo em guerra.
Mas o mundo já está em guerra! ela persistiu, irritada.
Pela percepção popular. Estamos apenas fazendo os acordos necessários para a paz.
Noin quase enlouqueceu ali. Sally tremia de preocupação só de imaginar o que poderia acontecer com as duas, diante daquele escândalo da amiga.
Vocês acham que eu sou o quê?! Uma idiota?! Não sou uma pessoa comum do povo, eu já trabalhei na OZ original, e sempre fui um soldado que esteve no meio das disputas políticas! O que vocês estão fazendo é ditadura e opressão! Mallaica apenas ficou encarando-a. Em seu olhar havia um certo brilho de raiva, mas ele não demonstrou irritação em nenhum sinal além desse. Mordeu os lábios, e então disse.
Bem, a pena já está dada. Agora só se a senhora for recorrer a Relena Peacecraft. Desejo-lhe apenas sorte, pois seria uma pena uma dama soldado tão experiente e bela quanto a senhora acabar em uma prisão, concorda?
E mandou que levassem as duas.

Alguns deles até choraram de alegria e emoção. De algum modo, todos os soldados daquele pequeno quartel foram convencidos de que aqueles eram mesmo três pilotos Gundam, os pilotos que nasceram apenas para libertar o povo das colônias. O caso de Heero foi explicado, e esse ponto foi o mais difícil de eles acreditarem. Mas, reconhecendo o grande Quatre Raberba Winner, não haveria como duvidar dele. E vão mesmo lutar ao nosso lado? um soldado alto, de pele escura e rosto muito belo, parecendo ser o líder deles, perguntou com emoção. É claro que vamos. respondeu Quatre, comovendo-se. Viemos ás Colônias para isso.
Esse na verdade não era o motivo verdadeiro. Cansados do jeito que estavam, os três pilotos Gundam não pareciam exatamente muito confiantes em lutar numa guerra séria, por motivos sérios, como aquela guerra de dez anos atrás. Suas mentes, já acostumadas com a paz, queriam apenas descansar. Mas como descansar, vendo o que acontecia com sua terra natal e seu povo querido?
Um daqueles soldados dissera que um famoso circo, que viajava de colônia em colônia, estaria ali naquela semana. Um circo, com as suas apresentações, talvez fosse o melhor para os três relaxarem.
Ir... ao circo? Quatre tremeu de leve. Estava ele, Heero e Duo no melhor quarto do prédio, oferecido aos 'salvadores' pelos soldados. E qual o problema? Duo resmungou, mas logo viu o motivo. Er... eu sei que te lembra ele, mas... hey, e não é uma oportinidade?
Quatre apenas olhou-o, desanimado.
Oportunidade de quê?
De rever Trowa! Esse circo pode ser dele, right?
É.
Duo sentiu-se irritado pelo pessimismo do amigo. Heero apenas os olhava. O americano então foi recorrer a ele.
E você, Heero? O que acha de ir ao circo?
Eu? pareceu confuso. Não sei... Não faço questão. Decidam vocês dois.
Só então Quatre levantou os olhos novamente. Tudo bem. Vamos. Afinal, não temos nada a perder.
Duo completou:
E tudo a ganhar.

O circo era imenso, verde e azul, e ocupava uma grande área de grama que ficava a leste da colônia, reservada especialmente para eventos como esse. Estava muito sol, um ar quente e abafado, porém até que parecia agradável. Famílias pacatas das colônias adoravam esse circo, pois era o melhor e mais barato meio de entretenimento que possuíam, e servia para distrair os horrores de guerra, crise e opressão. Heero viu de longe, chegando cada vez mais perto, à pé. Então isso era um circo.
E sentaram-se na arquibancada, bem na frente. As pessoas vaziam barulho de todos os lados, acomodando-se nos lugares, tagarelando e rindo animadas sobre o show que se iniciaria. Heero nunca lembrara de ter ido a um circo antes, e realmente nunca fora. Quatre também, só passara perto. Duo, entsusiasmado, tentava explicar aos dois como seria.
E aí os trapezistas andam naquelas cordas ali, ó apontou. se equilibrando. É realmente perigoso. olhou Quatre, impressionado. Esses artistas de circo devem ser muito bons mesmo!
É... confirmou Heero, sentindo uma ponta de inveja de um garotinho ao lado deles, preseteado com um algodão-doce, no colo do pai, recebendo todo o carinho da mãe. E então o espetáculo começou. De fato, uma pessoa conseguiu andar perfeitamente pela corda lá em cima, além de conseguirem se equilibrar em pé nas costas de cavalos correndo em círculos, os trapezistas pendurando-se no alto, domadores judiando de seus leões e elefantes, mágicos, palhaços fazendo coisas idiotas, engolidores de fogo, malabaristas.
Chegou o momento final. O locutor anunciou, com sua voz grossa e frenética:
E, com vocês, nosso maior trapezista!
Tigres entraram no palco.
Atrás deles, veio um jovem. De calça verde-limão e blusa vermelho-vivo, uma máscara com um sorriso insano que cobria só metade do rosto. Quatre não teve dúvida:
Trowa! Gritou, ao se levantar, mas sua voz nem era ouvida no meio de tanta gente falando.
Calma, aí! Duo o puxou de volta, interessado no que Trowa iria fazer.
Você gosta mesmo dele, não é? Heero perguntou, mas se encolheu ao ver o olhar de ameaça de Quatre. É... calma! Eu não quis dizer isso!
Passaram a prestar atenção no que Trowa fazia no palco. Ele se pendurava em cordas que eram colocadas à sua disposição, e pulava em cima das costas dos nem tão amigáveis tigres, voltando depois. Os felinos estavam furiosos, irritados com a atitude ousada do trapezista. Mas suas garras nervosas não chegavam nem perto dele. Terminada a apresentação. A platéia de irrompeu em aplausos e vivas, impressionada. Depois dos tigres guardados novamente na jaula, Trowa desceu das cordas onde se pendurara e cumprimentou o público, dobrando o fervor e o carinho dos aplausos. Saiu. Terminada a apresentação. Heero, Duo e Quatre saíram do circo, junto à multidão. Procuraram com os olhos onde poderia ser o camarim. Vamos. chamou Quatre, protegendo os olhos do sol com uma mão. Deve ser por ali. Seguiram até a parte de trás da grande lona. Várias jaulas estavam espalhadas, com seus animais, todos exaustos, descansando. Alguns homens e mulheres do próprio circo andavam por ali, cuidando dos bichos e arrumando algumas coisas. Quando um jovem moreno veio lhe perguntar o que queriam, Quatre disse num fôlego só:
Trowa, procuramos ele.
Ah, o Trowa? o jovem sorriu. Podem entrar, vou procurá-lo pra vocês, tá?
Entraram pela pequena porta. O camarim estava ainda mais lotado que lá fora, todos se arrumando, tirando as roupas e a maquiagem. Foram logo ao encontro de uma jovem de cabelos compridos castanho-avermelhados, cacheados, vestida com roupas normais, mas ainda com uma pluma na cabeça, da apresentação. Heero a reconheceu: era a mais habilidosa malabarista que surgiu no palco, e muito bonita também. Ao seu lado um rapaz estava de costas, mexendo num baú, apenas com a calça verde-limão e sem camisa. Tinha cabelos castanhos, alongados até o final do pescoço. Quando se levantou e virou, viu-se que era alto, e que tinha um dos olhos intensamente verdes escondido atrás do cabelo.
Trowa? chamou o jovem moreno. Esses caras aqui querem te ver!
Ah, sim, Yande. respondeu, jogando o cabelo para o lado. E quem são?
Deparou-se com quem eram. Pareceu perder a respiração.
Quatre e Duo apenas o olharam espantado. Trowa Barton parecia bem mais alto do que costumava ser aos quinze anos e tanto; parecia mais descontraído e menos fechado. Depois desse espanto todo, Duo foi até ele e pôs a mão em seu ombro.
E aí, Trowa? A quanto tempo, neh? Lembra da gente?
Ele só teve forças para responder:
Não.
Quatre se aproximou também. Duo pareceu transtornado.
Hey! Eu tava brincando! Você lembra da gente! Ou não vai me dizer que perdeu a memória de novo? e virou-se para Heero. Tem outro aqui pra te fazer companhia. Tamos no clube dos desmemoriados!
A atenção de Trowa foi dele para Quatre, depois para Heero. Yande não estava entendendo nada, e a garota de cabelos castanhos fazia cara feia.
Têm certeza de que não se enganaram? ela disse, tirando a mão de Duo do ombro de Trowa. Eu acho que vocês não se conheceram. Devem estar confundindo ele com alguém.
Há, eu lembro de você! Duo deu um sorriso esperto. Você é aquela chatinha do circo, que não deixava a gente nem chegar perto dele... a tal da Catharina. Catherine. ela corrigiu. E não sei do que você está falando. Duo ia retrucar mais ainda, quando Trowa interferiu.
Por favor. continuava muito educado, não se irritando como a garota. Acho que não os conheço. Devem estar me confundindo.
Dessa vez Quatre não conseguiu ficar quieto. Aproximou-se.
Trowa... Trowa Barton, não é?
Trowa Bloom. ele corrigiu. Não Barton. Du ficou quieto. Quatre sentiu-se murchar por dentro, e Heero sentiu-se infeliz apenas de olhá-lo daquela maneira.

Como é possível?! São dois Trowas, que trabalham no circo, são altos e de olhos verdes e quem têm uma chata do lado que chama Catherine! Duo chutou uma lata à sua frente. É claro que é o mesmo, Quatre. A piranhazinha deve ter enfiado na cabeça dele que ele nunca foi soldado.
Andavam, à noite, pelas ruas vazias da colônia. Haviam passado o dia todo com Yande, que era bem simpático, e os mostrou o circo, os animais, todos os artistas, e ainda contou-lhes um pouco sobre o que sabia de Trowa. Não foi de grande valia: Yande apenas sabia que ele sempre fora Trowa Bloom, marido de Catherine Bloom, sempre amado pelo público do circo. A calma e a detreza de Trowa era tanta que ele costumava afanar as orelhas dos seus 'gatinhos', os tigres e os leões, para que dormissem. Mais nada. E agora andavam numa noite coloniana. Não tão agradável quando a terrestre, mas era sim ótima, principalmente pela calmaria. Haviam sentado numa praça, aonde havia um chafariz luminoso com uma estátua de golfinho. Eu já deveria ter imaginado isso! Quatre abaixou a cabeça. Claro! Ele perde a memória com facilidade! Nem sabe quem é!
E ainda tem a Catherine pra ajudar... Duo completou.
Não a culpe. Quatre se levantou, cansado. Ela só quer o bem dele, ao contrário de nós. Queremos só que ele abandone essa vida de paz e vá ao campo de batalha lutar tudo de novo.
Grande coisa. A gente fez isso.
Eu não vivi momento de paz nenhum.
Fale por você. Eu tava muito bem sem lutas. Agora a gente tem um monte de problemas, tamos com uma guerra nas costas e ainda por cima as colônias. Se ele algum infeliz dia da vida dele quis pilotar um Gundam, devia ter pensado melhor nas conseqüências!
Mas ele é casado agora! Lembra do que Yande nos disse?
E daí? Como assim 'e daí?
Se acalmem vocês dois! Heero tentou impedi-los, uma vez que Quatre ameaçou ir para cima de Duo, e começar uma briga. Que tal decidir isso amanhã? É melhor dormirmos agora. Houve um silêncio pela parte dos dois. Sentiam-se sem rumo agora.

Por que você fingiu?
Eu não tive escolha. Tudo o que eu quero é estar perto de você, mais nada. Mas eu sei como o seu Gundam e os seus companheiros são importantes pra você.
Se sabe, então por que me ajudou a mentir?
Porque é muito melhor assim.
Ótimo. Só vou fazer o que for melhor pra você.
Promete?
Prometo. Mas sente falta deles, não sente?
Passado é passado. Fico feliz apenas por ter algo bom para recordar. De agora em diante, vou viver só pra você... e pra ele... ou ela?
Acariciou o ventre levemente crescido de Catherine.
Se abraçaram e cobriram-se com o cobertor. Que aconchegante... Pra que uma guerra quando se pode ter uma vida dessas?

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Por Kitsune-Onna