Chegaram ao pequeno quartel-general da colônia. Relena tremia. Suas mãos suavam e ela respirava ofegante de tanta emoção, seu coração batendo mais rápido, como nunca batera antes. Cada minuto pelos corredores cinzentos pareceram horas, mas ela não via os corredores, nem nada ao redor. A única coisa que ela podia ver era Quatre, que eu seu incosciente se tornara seu salvador, aquele que trouxe Heero de volta à vida por ela. Mas as palavras que ele disse em seguida a fizera sentir como se tivesse levado um grande choque elétrico.
Não... sabem onde ele está. Quatre disse passivamente. Havia falado com um homem, mas Relena não via esse homem. Não era capaz de ver nada. Ele... não está aqui?
Não. Quatre deu um grande sorriso bondoso. Mas por que não espera aqui, Srta. Relena? Vamos almoçar. Não há muito luxo para alguém como a senhora, mas acho que serve, não?
Demorou até Relena se dar conta da pergunta e sorrir, afirmando que sim. Estava em pânico. E se Heero não estivesse bem? E se foi capturado pela OZ II? Vários pensamentos passaram por sua cabeça, desde um ataque militar até uma jovem bonita que o havia convidado para sair. Aceitou o convite de Quatre. Heero, por sua vez, estava bem. À frente do circo, que já estava se preparando para sair da colônia, ele estava determinado a falar com o tal de Trowa Barton. Não sabia como nem porque, mas seu olhar de alguma forma sensibilizara o atleta de algum jeito. Talvez alguma coisa que ele mesmo não lembrasse.

"205 A.C.
08 Vivendo apenas para você"

Não foi recebido muito bem. Antes de sequer olhar na cara de Trowa, a garota de cabelos castanhos cacheados o olhava com insatisfação. Não quis dizer onde seu marido estava. E quantas vezes eu tenho que dizer a vocês que ele não quer mais lutar?! Heero deu um passo para trás quando ela gritou, e a encarou assustado. Deixe-o em paz! Agora ele está feliz, não percebe?! Odeio todos vocês, seus pilotos idiotas!
Mas... ele é importante para nós como piloto!
E eu com isso!
Parou por um instante espantado pelo tom extremamente grosseiro dela. Depois, continuou.
Por... favor... Heero deu um passo à frente. Me deixe... pelo menos falar com ele? É claro que não! Ele sente dores de cabeça quando lembra de dias terríveis! Você não sabe a dor que é perder a memória e .
Parou de falar quando se lembrou que isso também ocorria a Heero. Não foi capaz de encarar o olhar triste dele naquela hora. Resolveu continuar por outro meio:
Já me basta Quatre vindo aqui! Não agüento mais! Quatre... veio aqui?
Veio. Ele é o pior de vocês, sabe? Me lembro muito bem dele há dez anos atrás, quando veio procurar o Trowa. É insistente, muito insistente. Aquele cara me irrita, irrita!
Fez uma pausa. Continuou a falar, embora Heero na verdade desejasse que ela calasse a boca.
Me dizem que eu devo ser a única civil que detesta os Gundams. Detesto mesmo! Eu só sofri com todos vocês!
Heero não agüentou. Quando deu por si, já tinha gritado.
E você acha que é a única que sofre, Catherine!
Ela de calou. Se encararam durante um tempo. Ela não conseguiu sustentar aquele olhar que ele tinha, um olhar que ela nunca vira e que só Heero era capaz de ter. Ele ficou extremamente sério, como era antigamente. Catherine, com a voz mais delicada, tentou retrucar:
Eu... estou esperando um filho dele... É mesmo... Heero percebera só agora. Mas nós vamos levá-lo.
E se ele se recusar?
Ele não vai recusar. Eu o conheço bem. Passou por uma assustada Catherine e foi procurar Trowa. Ela, ainda inconformada, tentou pará-lo. Sua voz tremia.
Fique sabendo... que ele é importante pra mim!
Heero parou.
É? se virou. E eu com isso?

Andava então Heero, pelas ruas vazias de um domingo coloniano, a cabeça doendo. Catherine não insistira mais, mas a via como um grande problema. Sentia um certo remorso por tratá-la tão mal, afinal, os sentimentos verdadeiros são muito mais importantes que qualquer conceito de guerra, e ele mesmo concordava plenamente com isso.
Mas não era esse o grande problema. Sim, falara com Trowa. Chegara perto dele enquanto alimentava os leões. Sr. Trowa Barton? Por um momento os olhos esverdeados do atleta se ergueram assustados, mas depois pareceu se acostumar.
Você... quem é você mesmo? Vim aqui com Quatre e Duo semana passada. Somos velho amigos seus, acho.
Trowa se levantara então.
Acha?
Acho. falava com um tom frio, sem ao menos perceber. Eu não me lembro de você ou daqueles dois, ou da sua esposa, ou... de qualquer coisa. Nem sabia o meu nome. Sou assim como você. E eu o entendo perfeitamente.
Os olhos de Trowa pareciam assustados como se tivesse recebido a notícia de que alguém conhecido morrera. Encararam-se durante um tempo. Escute... Trowa dirigiu os olhos para o leão ao seu lado, dentro da jaula, calmo e pacífico. Eu... não sou quem vocês procuram. Falo sério. voltou a olhar Heero. O pouco de lembrança que tenho me faz saber que nunca me envolvi em qualquer tipo de guerra. Eu nem... nem tenho força para tanto! sorriu, um sorriso nervoso. Depois, o sorriso se tranformou numa expressão que era quase desespero. Por favor, diga isso a eles. Não sou quem procuram, não sou quem procuram!
Houve silêncio. Heero, ainda naquele estado de seriedade, voltou a cabeça para o grande leão. Era belíssimo, grande e bem-cuidado, de pêlos limpos e macios, juba enorme e espessa. Tinha os olhos abertos, olhando para Trowa. Com seu ar majestoso, bocejou, e, ajeitando a cabeça entre as grandes patas, dormiu.
Heero voltou novamente a atenção a Trowa. Tudo bem. disse por final. Algo em seu íntimo não acreditava. Mas, se você for mesmo... ele... ou... sei lá, não ligue. Faça só o que você quiser, e viva em paz com a Srta. Catherine. E, se virando para ir embora, disse quase num sussurro, certamente falando mais para ele mesmo que para seu ouvinte. O melhor jeito de aproveitar a vida... é seguir as emoções.
Trowa sentiu um baque no peito. Não conseguiu nem responder ao adeus. Encostou-se na jaula atrás dele para não perder o equilíbrio, a cabeça tilintando como nunca. "Seguir as emoções, seguir as emoções, seguir as emoções, seguir as emoções, seguir as emoções, as próprias emoções, só as emoções, aprenda isso, Trowa, seguir as emoções, faça o que quiser, eu admito que você é forte, seguir as emoções, é assim que eu levo a minha vida"
Só chegou a desmaiar quando já estava caído sentado no chão.

Mas, retomando, é ali que estava Heero. Estava quase chegando no quartel-general. Então começou a pensar na tenente Noin e naquela outra militar loira, que ele não lembrava ao certo o nome. Noin era extremamente forte e extasiante para se esquecer facilmente. Lembrava-se dos seus cabelos azulados cobrindo metade do rosto, um sorriso esperançoso, de certa forma até inocente demais. Talvez fora isso que admirara tanto em Noin. Ninguém à sua volta lhe parecia inocente o suficiente para poder-se rir ao lado dessa pessoa sem desconfiar dela durante um único segundo. O abraço da tenente, na primeira vez que se encontraram, havia mexido relamente com ele. Não sabia se estava realmente apaixonado ou era só a surpresa de sentir pela primeira vez o abraço de uma mulher, pelo menos que ele lembrasse. Se bem que não se lembrava de nenhum abraço sequer. Aquilo fora uma experiência nova. Parou. Sentou-se num pequeno banco no caminho. Começou a se lembrar então do momento com Trowa. Fora... frio demais com ele. Nunca havia falado desse jeito com ninguém! Começou a imaginar que era assim antes de ter perdido a memória. Ouviu passos correndo, vindo ao longe. Era Duo.
Aonde você tava? perguntou ao se aproximar, sentando-se ali. Os cabelos, antes arrumados em um rabo baixo, agora estavam nova grossa trança, o que deu a Heero um ar intimamente familiar. Eu tava te procurando fazia tempo.
Por quê? perguntou, com o mesmo ar de sempre. Não conseguia ser com alguém como Duo do jeito que fora com Trowa. Eu pensei que a gente podia dar uma volta em naves, não acha? piscou um olho, e aquele sorriso. É rápido, e Quatre não precisa saber.
Notou a expressão de cansaço de Heero. Não quer, neh? Bem.
Ok, fica pra próxima.
Preciso... falar algo com você, Duo.
O americano olhou-o, e então Heero começou lhe contar tudo o que conversara com Catherine e Trowa. Duo pareceu desanimar-se, principalmente quando percebeu algo mais grave que aquela situação.
Você... desconfia de nós? perguntou, com uma serenidade raríssima.
Desconfiar? Heero desviou o olhar. Não podia olhar muito tempo naqueles olhos azuis quando estavam sérios.
De mim e de Quatre. E também não só de nós dois, mas de Noin e Po também. Acha que a gente tá te enganando? Concorda com o Trowa que estamos inventando toda essa história?
Não... não é isso!
Na verdade não pensava que o estivessem enganando. Pensava que o estivessem confundindo com alguém, que esse Heero Yuy certamente não era ele, que Yuy realmente já tivesse morrido e eles estavam nutrindo esperanças falsas num cara comum, vindo de... de Tokyo, talvez, nem ele mesmo se lembrava. Era o mais provável.
Já Duo tinha outra incerteza na mente. Entrara no quarto de Quatre sem bater. Só vira então uma moça loira sentada na cama do árabe, com olhar confuso, olhando através da janela. Por um momento, ao vê-la de costas (ele entrara em silêncio e ela não o vira), primeiramente pensara que ela fosse inacreditavelmente uma namorada de Quatre, depois lhe ocorrera que deveria ser uma de suas inúmeras irmãs e então ficara em dúvida. Chamou pela moça. Ela, ansiosíssima, virara o rosto para ele, os olhos esverdeados arregalados de susto. Então ele notara quem era. Quatre viera em seguida, esplicando-lhe. Parevia desolado por não ter encontrado Heero, e mandara Duo ir procurá-lo imediatamente.
Não que fosse muito de obedecer ordens, mas partiu imediatamente em busca de Heero. Alguns soldados devem ter ido também. E ali estava ele. Por um momento pensou em dizer sobre Relena, porque na verdade queria lhe fazer uma grande surpresa. E, como Heero não apreciava muito a vida dentro de um quartel-general, seria difícil convencê-lo a voltar sem um grande motivo. Então, inventara o passeio dos Gundams, coisa que Heero, por um certo amor que adquirira pelas naves que não tinham armas nem nada no gênero, que eram facílimas de pilotar e tinham uma vista panorâmica. Quatre alertara para que não andasse nessas naves.
Elas chamam muita atenção. explicara ele. Porque são facilmente identificadas por outras naves do espaço a quilômetros de distância.
Duo percebeu que não poderia inventar mais. Heero, por que a gente não volta pro quartel, hein? perguntou com simpatia. Tá meio tarde, e a gente precisa falar do Trowa pro Quatre.
Vou ficar um pouco aqui.
Aqui? Mas... Heero. Duo se levantou. Tem uma pessoa muito importante pra você lá. Entende?
Quem? Heero não se moveu. Estava novamente adquirindo, aos poucos, sua postura de fazer somente o que quer. Relena Darliam Peacecraft, lembra?
Heero sinceramente não se lembrou.
Peacecraft? perguntou mais para si mesmo que para o amigo. Um agente da paz?
Uma agente da paz! Duo riu. É Relena! Quando te vi pela primeira vez, o nome dela tinha causado algum impacto em você. E agora, nada?
Heero respondeu com toda a sinceridade.
Nada.
Cara, você amava essa garota! uma mistura de ansiedade foi se formando em Duo, mesmo que ele nem percebesse. Não é possível que tenha esquecido dela! Não se lembra nem de eu ou Quatre mencionarmos o nome dela?
Não. É sério, Duo, não lembro.
Duo pareceu desapontado, embora Heero tivesse aceitado ir com ele para ver a tal Relena. Não era possível que não tivesse nenhuma lembrança de alguém que um dia tivesse preenchido seu coração por completo. Ou será... - e Duo quase tremeu ao constatar isso - que seu coração já estivesse preenchido por outra pessoa?

Quer dizer que nem sinal da Relena Peacecraft? Wufei balançou a cabeça. Terrível, hein? Acho que ela abandonou vocês.
É claro que não. Noin retrucou. Provavelmente a impediram de lutar pela nossa liberdade, ou talvez ela nem tenha ficado sabendo que nós duas estávamos presas. Desculpe, Wufei, mas tudo o que disser sobre a Srta. Relena eu vou ter que retrucar, afinal, sou uma grande admiradora dela.
Entendo.
Foi bom ter parado naquele pequeno restaurante terrestre. Era um lugar simples, inteiro feito de madeira, em frente a uma praia um tanto suja, aonde não era muito aconselhável entrar na água. Não comeram muita coisa, e o peixe que serviam não era muito saboroso. Você pretende se unir aos outros pilotos? perguntou Sally, ao beber seu suco. Estava sentada ao lado de Noin, Wufei à frente delas, na pequena mesa de vista para a praia.
Os outros pilotos Gundam? Wufei mexia em seu peixe com um garfo, desanimado. Não. Não tem porquê.
E se precisar? Sally insistiu.
Se precisar, se o destino é esse, assim farei.
Pois eu acho que o destino é esse mesmo. a major suspirou. Noin permanecia calada. Teremos que tirar Aurey Mallaica e todos esses caras do poder, ou a Terra entra em colapso.
E o pior é que não fazemos a mínima idéia de onde estão Quatre, Duo e Heero. Noin explicou. Já haviam contado toda a história, detalhadamente, a Wufei. Nem onde está a Relena Peacecraft. completou o chinês.
Isso mesmo.
Por que não fugimos para o espaço? Sally se espreguiçou. Nossas chances são maiores, agora que temos você com a gente, Wufei. Ir... para o espaço?
Mas será que isso vai dar certo? Noin debruçou-se sobre a mesa, falando mais baixo. Nós havíamos ficado aqui para assegurar o retorno dos três. Se não houver ninguém aqui na Terra esperando, não podemos garantir nada de um retorno em segurança.
Wufei deu uma risada.
Mas vocês são presas políticas condenadas! zombou. Acha que podem assegurar algum retorno agora?
Noin corou um pouco. Ficou irritada consigo mesma por não ter percebido a sua situação, e também uma coisa muito óbvia.
Mas, se formos para o espaço, teremos que levar o Wing Zero, o Deathcythe e o Sandrock. disse, e ficou satisfeita de Wufei concordar. Vêem? E ainda tem o Heavyarms, do Trowa Barton. Será que conseguiremos passar pela atmosfera com cinco Gundams sem sermos percebidos? Não acham que é algo meio difícil? Encostou-se na cadeira e cruzou os braços, assentindo:
É melhor ficarmos na Terra e esperarmos por eles.
Sally concordou. Seria difícil mesmo. Lembrara-se como fora complicado esconder o Shenlong dentro d'água sem serem descobertos: demoraram quase duas horas para uma operação bem-feita. E o que fariam com quatro Gundams?
Então a solução é atravessar a atmosfera sendo notados. As duas olharam-no admiradas.
E lutar contra as forças da OZ II? perguntou Sally, incrédula.
Isso mesmo. Wufei olhava o mar. Montava as estratégias dentro da cabeça. Uma de você pilota o cargueiro levando três Gundams. A outra escolhe um Gundam e luta com ele. Eu vou com Nataku, claro.
Noin e Sally se entreolharam. Era um plano absurdo, um tipo de suicídio.
Ótimo! exclamou Noin ironicamente. Ao menos morreremos com honra. Wufei encarou-a realmente bravo. Ela não fez mais objeções.
Esse é o melhor jeito. ele se levantou, após terem pago a conta. É o MEU jeito. Eu não sei como vocês lutam, mas eu não acho o meu objetivo numa batalha se não for seguindo os meus sensos. Se têm medo, podem ficar aqui, eu ajudo vocês a encontrarem um lugar seguro para morar por uns tempos.
Você está mesmo decidido a ir, não? Noin suspirou. É mesmo teimoso.
Eu concordo com ele. Sally pôs a mão no ombro de Wufei. É a melhor saída.
Noin ficou boquiaberta. O quê?! Sally!
Wufei apenas as olhou discutirem por um momento, e finalmente Noin ceder. Saíram do restaurante, caminharam por uma pequena e deserta estrada de terra até onde estaria o Shenlong. Por um bom tempo, Sally tinha a mão em seu ombro, de forma carinhosa. Sentiu uma mistura de carinho e vergonha pela major. Algo esquisito, que sentia pela primeira vez em seus vinte e cinco anos de idade, e recusava a se deliciar com aquilo.

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Por Kitsune-Onna