Relena nem podia acreditar no que via. A dez metros dela estava a pessoa por quem ela esperara durante quase metade de sua vida. Lembranças passadas... via, sim, as lutas dos pilotos Gundam. Pois ali estava Duo. Pois ali estava ele. Vestia uma roupa simples, inteira preta, e olhava confuso. Ele não se moveu.
Quando Relena recuperara a consciência de quem era e aonde estava, seu corpo já a empurrava, indo correndo para Heero. Abraçou-o, escondendo o rosto molhado de lágrimas naquele peito amigo. Ele, de início, não se movera, mas depois pôs-se a abraçá-la também, movido de uma felicidade e uma emoção que ele mesmo não compreendia. Esse momento, apesar de, àqueles dois, parecerem séculos, não durou mais que dois minutos. Muito barulho, e depois enormes sombras se formaram acima deles. Mobile Suits, vermelhos, bem-equipados, cheirando metal novo. O que é aquilo?! Duo exclamou. São... da OZ II? Quatre disse, mais respondendo que perguntando.
Relena permanecia agarrada a Heero, embora agora ela olhasse para cima, assustada. Os grandes Mobile Suits - podiam-se contar seis - apontaram as armas para aqueles quatro reunidos ali. A voz metalizada de um soldado ali dentro disse friamente. Entreguem a Srta. Relena Darliam Peacecraft, e o Sr. Karim Asid, por ordem de Aurey Mallaica e da Intituição OZ II. Os Mobile Suits, que até agora estavam flutuando no ar, pisaram no chão, e a terra tremeu levemente. Quatre pôs-se à frente deles, Heero segurou a mão de Relena e escondeu a garota atrás de si, instintivamente. Não havia nem como negociar algo com aqueles homens: eles nada ouviriam. Quatre se sentia infinitamente incomodado e irritado por não poder esclarecer tudo em palavras. O soldado repetiu, com mais força:
Entreguem a Srta. Relena Darliam Peacecraft, e o Sr. Karim Asid, por ordem de Aurey Mallaica e da Intituição OZ II!
E atirou com seu canhão.
"205 A.C.
09
Eu desisto"
Heero levantou a cabeça, olhou à volta e só viu o pó levantado pela explisão da arma. Não fora atingido, mas sentia dores terríveis no corpo. Estirado no chão, levantou-se com dificuldade, preocupado com a jovem que o abraçara. Relena. Era esse o nome dela. Gritou:
Relena!
Ouviu a voz dela sair de dentro do pó. Logo, viu que aproximava, com a ajuda de Duo.
Heero!
Onde está o Quatre? Duo perguntou, quando já estavam juntos. Quatre! Oh, my, não podem ter levado ele!
Ajudou Relena a se sentar no chão, e olhou em desespero para todos os lados, à procura do amigo. Podia-se ver que tremia. Também tinha o corpo inteiro ardendo em uma dor estranha.
Esses filhos de uma puta! gritou. Queria andar, mas seu corpo mal de movia. Gás de arcânio!
O que é isso? perguntou Heero, sentando-se, não se agüentando de dor.
É essa bomba! Esse gás que ela solta que faz o nosso corpo arder assim.
Então... não é só poeira de uma bomba comum?
Se fosse poeira de uma explosão, tenha certeza de que a gente estaria misturado com ela.
É mesmo. Era mesmo um gás, embora fosse pesado como uma poeira. Heero juntou forças para se levantar e gritar o nome de Quatre, mas nada se ouvia ou se via. E então, quando virou a cabeça para ver se Relena estava bem, sentiu um chute acertar sua cara e ele caiu no chão. Dois soldados com roupa cinza de algum material especial cobrindo todo o corpo, e máscara de gás. Um deles agarrou Relena.
Tentou salvá-la, mas não conseguiu nem forças para gritar. A dor que o arcânio causava não era só externa, mas também interna: sentia seus pulmões arderem, o estômago profundamente embrulhado. Duo caiu ao seu lado, provavelmente também acertado por algum golpe e os homens tiraram Relena de até onde podiam ver. E então outro deles voltou, uma grande arma apontada para os dois pilotos caídos no chão.
Quatre acordou. Sentiu uma dor de cabeça imensa, a visão estava embaçada. Logo foi voltando ao normal, e foi vendo um lugar escuro, sem uma única fonte de luz. Só se mexeu um pouco, tentando lembrar o que acontecera. Viu que estava deitado numa superfície dura. Percebeu que tinha os braços e as pernas esticados, as mãos e pés presos àquela superfície. Moveu a cabeça para os lados, tentando inutilmente enxergar na escuridão. A cabeça ainda latejava, o corpo doía um pouco.
Lembrou-se de tudo. Viu que alguém abriu a porta e entrou na pequena sala, fazendo por um instante um feixe de luz, e depois a escuridão tornou-se total novamente. A pessoa andou poucos passos discretos e pareceu sentar-se.
Bom dia, Sr. Asid.
Não reconheceu a voz de imediato. Em seu estado, foi até mesmo difícil lembrar que tinha aquela outra identidade pública. Sentiu-se tonto pela altura e sonoridade da voz, e não respondeu. A voz continuou a falar.
Sinto muito pelo modo como procuramos o senhor, mas era necessário. Espero não nos julgar por isto. O senhor já está melhor?
Quatre não respondeu novamente. Dessa vez, percebeu quem era, e se sentiu levemente enojado.
O senhor está bem? a voz insistiu. Está consciente?
Consciente o bastante, obrigado. disse Quatre com desprezo. Mas não sei o que estou fazendo aqui.
Vamos esclarecer, é só.
Onde está a Srta. Peacecraft?
Ela está bem. Não se preocupe.
E onde nós estamos?
Em minha nave de guerra, indo em direção à Terra.
Quatre fez menção de se levantar de repente, mas foi barrado pelo o que prendia seus pés e mãos. Sentiu uma grande dor nos membros por tê-los esticado desse jeito.
TERRA!
Sim. disse a voz suavemente.
Sr. Mallaica, eu peço que volte agora!
Sinto muito, Sr. Asid. Não podemos. Infelizmente, o senhor foi acusado de corrupção contra o governo da Terra.
Quatre respirava com dificuldade, se desesperando. No escuro, não conseguia ver Mallaica, embora soubesse onde ele estava por causa da direção da voz. Faziam exatamente cinco anos que não se encontrava com Mallaica pessoalmente, talvez até porque fugia disso. E tudo estava acabado. E seus companheiros estavam mortos. E o mundo inteiro desabara.
O que estava fazendo nas colônias? perguntou a voz sonora. Por que fugiu?
Eu iria ser preso.
Mas o senhor me conhece muito bem e sabe que é impossível fugir de mim e de minhas tropas.
Eu prefiro tentar do que desistir tão fácil. a voz de Quatre estava extremamente séria, quase ameaçadora. O senhor deveria saber disso.
E o que estava fazendo com os Gundams, em pleno deserto? Planejava utilizá-los? O senhor é ridículo. Não é a máquina que faz milagres, e sim o soldado. sua voz enfatizou a última frase. Como um piloto Gundam, o senhor deveria saber disso.
Quatre respondeu sem emoção.
Sei.
Minhas afirmações estão certas?
Estão. Parabéns.
Nada mais importava. Não estava mais pensando em se esconder, em seu destino, em nada. Tudo o que era importante tinha acabado. O resto era um resto. Sua mente começara a trabalhar cada vez mais devagar desde a vez em que Trowa dissera não se lembrar dele. E, agora, a certeza de Heero e Duo mortos, em sua mente, e Relena levada a algum lugar onde provavelmente seria executada. A linhagem Peacecraft não tinha mais importância para o mundo, graças à OZ II, infinitamente mais suja que a primeira.
Ótimo. Mallaica voltou a falar. Pela primeira vez, sua voz expressava alguma coisa: satisfação. Não uma satisfação comum, mas uma que o fazia deliciar-se. Isso poupa-me trabalho, e da OZ II também. Não precisamos procurar mais pistas para confirmar minhas suspeitas. E, vendo que o senhor é proveniente das arábias, com certeza é o piloto Quatre Raberba Winner. Acertei?
É.
E agora?
Isso. E agora?
Fico muito enfurecido de um piloto Gundam ter sido um dos meus homens de confiança.
Como se, em algum dia de sua vida, tivesse confiado em mim. Quatre mantinha-se de olhos fechados, insensível a tudo. Que palhaçada. Fico feliz de morrer, ao invés de assistir mais ainda.
Mas eu não pretendo que o senhor morra tão cedo.
Dane-se. Eu não tenho mais nada a perder.
Ah Mallaica exclamou suavemente. Eu também queria que fosse assim.
Houve um silêncio, um silêncio que apertou o coração de Quatre até o máximo que ele podia agüentar. Voltou a ficar sensível, sensível o suficiente para se lembrar com carinho e preocupação da última coisa no mundo que ele não queria perder.
A voz de Mallaica se propagou de maneira impessoal, nem boa nem maléfica, como se falasse de qualquer assunto político.
O senhor tem muitas irmãs nas colônias. Eu, a OZ Ii e a Terra não temos mais nenhuma relação diplomática com as colônias. Nem de relações pacíficas, nem de respeito. Não vou mais atormentá-lo com minhas palavras. Mas essa é a punição. Não há nada que o senhor diga ou faça que vá nos impedir de exterminar todo o resto da família Raberba Winner.
O QUÊ?!
Começou a de mexer, tentando desesperadamente e inutilmente se soltar. Mallaica não produziu ruído algum. Depois de muitas tentativas, Quatre desistiu e pôs-se a gritar:
Mallaica! Não minhas irmãs! Eu estou aqui e estou submisso a tudo! NÃO! NÃO AS MINHA IRMÃS!
Sinto muito, isso já foi feito, Sr. Winner.
DESGRAÇADO!
Nunca ficara tão furioso na vida. Chorava enquanto gritava e xingava, palavras incompreensíveis e estranhas, metade delas todas em língua árabe. Quando seu incosciente gritou que aquilo tudo era inútil, ele foi parando aos poucos, como um louco que se cansa de ter seus ataques. Exaustos, murmurava palavras para suas irmãs. Sentiu morrer por dentro.
Não ouviu quando Mallaica se levantou da cadeira pesada onde estava, nem ouviu quando ele andou majestosamente no escuro até a porta, a capa de militar ciciando, os passos firmes e sem demonstrar nenhuma emoção. Não enxergou quando a luz forte de lá de fora entrou na sala e sumiu, e não ouviu quando a porta foi fechada com delicadeza e aparente respeito.
Eles estavam mortos...
Quando acordou novamente, Quatre não estava mais na sala escura. Não quis abrir os olhos e muito menos levantar. Permaneceu ali, desejando dormir novamente, sem sonhos, para que pudesse esquecer de tudo.
Winner? uma voz sussurrou, linda e delicada. Winner?
Quatre gemeu um pouco e se mexeu, mas depois voltou a tentar dormir. Sentiu um doce cheiro de perfume caro, daqueles que ele sempre sentia nas festas formais de reuniões políticas, provindos das graciosas damas da festa. Deliciou-se com o cheiro por um instante, e depois a linda voz passou de seu tom delicado a um tom zombeteiro e quase com desprezo.
Quatre Raberba Winner, veja só! Parece uma criança, um menino desiludido! Por que não abre os olhos?
Ele foi abrir, mas delicadas mãos se colocaram sobre eles.
Não! riu docemente. Primeiro, vai ter que advinhar quem sou eu.
Ele ficou quieto. Sinceramente não sabia, já que seu cérebro não conseguia mais associar as coisas.
Não sabe? Oh, meu querido Winner, eu vou te dar uma pista, tudo bem? Hum... deixe-me ver... Ah! Bem, eu e você temos idéias totalmente diferentes de como se luta uma batalha. Sabe agora?
Quatre permaneceu calado, mas, embora não quisesse, prestando atenção. A voz tinha um tom de vida e alegria, que o atraía agora, independentemente do que ela dizia.
Ainda não sabe? Ora... como ousou me esquecer? riu mais uma vez. Vejamos, mais uma pista... Eu AMO as guerras, acho elas atraentes e cheias de magia. São tão belas e tão emocionantes! Sabe agora? Ou precisa de mais pistas?
O silêncio de Quatre e a leve movida de sua cabeça foi para dar a entender que era para ela continuar. As mãos jovens e macias ainda estavam sobre seus olhos.
Tudo bem... terceira e última dica! Nós lutamos uma vez, mas não foi com Mobile Suits. O que foi que nós lutamos mesmo?
Ele não respondeu, simplesmente porque não sabia, ou porque não estava interessado em saber.
Será que nem disso você sabe? Pois bem... eu sei que esse é o seu esporte favorito. E você é realmente muito bom! Eu talvez não conseguiria tê-lo vencido, como aconteceu daquela vez, mas eu estava usando um sistema que você sabe que eu amo! Mas, provavelmente meu querido, você não se lembra do que é o Sistema Zero.
Quatre teve um sobressalto.
Sistema Zero... Wing Zero... Não, não era esse. O sistema Zero, utilizado sem um Mobile Suit... para... uma luta de esgrima...! Tinha na mente o som das espadas refinadas se chocando, a sala escura rodeada de luzes de monitores, a vontade de cumprir aquela missão para finalmente parar de lutar, e aqueles longos cabelos loiros e lisos se esvoaçando enquanto lutavam...
Dorothy! ele gritou, sem ao menos perceber que fora alto demais.
Ótimo, Winner! ela exclamou, aos risos. Tirou a mão dos olhos de Quatre. Ele os abriu.
A grande janela atrás da jovem, que dava para pastos longínquos de grama verde, as paredes cor-de-mostarda cheias de desenhos de lindas flores, o quarto grande e espaçoso, os móveis brancos finamente ornamentados e com detalhes em ouro, a grande cama redonda de colcha fofa cor-de-vinho; nada disso foi notado por ele. Quatre manteu os olhos naquela que estava à frente dele, sentada numa cadeira, os cabelos loiros soltos e escorrendo pelo colo e pelas costas, o vestido preto de grande decote, as mãos delicadas sobre a cama. Tinha uma maquiagem pesada nos olhos azuis e grandes brincos de ouro branco e diamantes nas orelhas. Mantinha o sorriso.
Dorothy... Catalonia... ele suspirou ao dizer isso. Não sabia se se sentia feliz ou triste, então manteu-se imparcial. Embora antes ela tivesse sido uma grande inimiga, agora seu rosto parecia seu bastante amigo.
Eu mesma, Quatre Raberba Winner. ela sorria, olhando-o nos olhos. Eu soube o que aconteceu com você! É uma pena, não? Por isso mesmo pedi ao Sr. Aurey Mallaica que o deixassem em minha mansão. Será que estou sendo uma boa anfitriã?
Ele não correspondeu ao sorriso e nem pensou em responder a pergunta carismática. De surpreso voltou a sério, e então baixou os olhos e ficou quieto. Mas sabia que Dorothy não manteria o silêncio; não, ela nunca parava.
De qualquer modo, por que tem de ficar assim? Dizem que não é sinal de boa sorte ver um soldado triste! brincou com um velho ditado de nações em guerra. Por que não reconstrói tudo? Por que, hein? Você é tão cheio de vida, poderia voltar a ser assim, estou ficando entediada com isso. Só eu falo aqui.
Ele não fez nada. Não respondeu, não a olhou. A alegria da voz tinha perdido a graça agora. Dorothy continuou:
Então... já que quer ficar tão calado assim, por que não vai ao seu quarto que eu reservei pra você? Meus criados já devem tê-lo arrumado. Esse aqui é o meu, sabia? ela se levantou, com orgulho. Também quero te mostrar minha mansão. Talvez você não saiba, mas eu fiquei muito rica vendendo mineral para Mobile Suits durantes esses últimos dez anos! Mas é claro que eu não me comparo à família Winner, obviamente... ficou um pouco calada, pensando se deveria dizer mesmo aquilo, e então resolveu que sim. Bem, já que agora você não tem mais as suas irmãs... é um herdeiro completo! Tudo em nome dos Winner ficará para você. Ah... bem, eu não havia pensado que você está impedido agora, por causa da corrupção contra o governo... Se bem que em tudo se dá um jeito!
Olhou para ele, parando finalmente de falar. No silêncio que sua voz não ocupava, ouvia-se a respiração de Quatre, fraca e sem vida, triste. Dorothy não gostava disso. Tinha uma certa afeição por Quatre desde a vez em que ele mostrou a verdade que ela mesma não conseguia ver: que ela odiava as guerras, e que sofria como ele. Era tão iguais... Dorothy se sentou na cama, pôs as mãos nos ombros de Quatre e aproximou seu rosto, de forma que testas se tocassem. Demorou um tempo até os olhos verdes de Quatre a olhares, e quando ele fez isso ela teve que desviar. Não dava. Mesmo com a visão embaçada - estavam tão próximos que ao ver um ao outro ambos pareciam ter apenas um olho - o olhar dele era inconsolável. Ela desistiu, se afastou, e se levantou.
Eu quero te hospedar aqui, acredite, é um grande desejo meu. ela disse. Eu acho que eu não aprendi nada com as suas belas palavras, mas quero retribuí-las. Portanto, o que eu faço não é caridade, compreenda. fez uma pausa. Vai ter seu quarto, comer do bom e do melhor, tudo igualzinho o que você tinha até ter a idéia infeliz de pilotar um Gundam na Operação Meteoro. Não se aproxime mais das guerras, tá? Você nem tem condição. e, quando ele levantou a cabeça para olhá-la, Dorothy esboçou um grande sorriso. E eu estou muito brava com você! Não cumpriu sua promessa. Disse que iríamos nos encontrar assim que sua máscara de Karim Asid caísse. Pois bem. O destino tratou de cumpri-la por você, meu querido.
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Por Kitsune-Onna
