Pisou na terra molhada, andou alguns metros nela. As botas pretas de borracha e longas, junto à capa-de-chuva azul-marinho. Via à sua frente um grande estabelecimento militar, uma indústria de armas bélicas, mais precisamente. Além da grande fábrica, que existia desde o surgimento da antiga Aliança da Esfera Terrestre Unida, haviam inúmeras casas, que pertenciam aos trabalhadores dali. Andou firmemente até a zona residencial. Estava uma noite fria e úmida, embora a chuva tivesse parado. Chegou ao guarda que vigiava o lugar à noite. Perguntou-lhe onde estava a pessoa que queria encontrar. O guarda viu sua identidade, sem nem desconfira de que era falsificada, e indicou onde era: uma das casas da parte mais alta. Casa muito humilde, como todas as outras, e era cinzenta (na verdade deveria ser branca, mas já estava cinzenta com a sujeira do ar). Era quadrada e pequena. Bateu na porta de madeira descascada. Seu coração batia tão rápido.
Ele atendera. E, sim, estava exatamente igual a dez anos atrás.
O... que está fazendo aqui? ele estremeceu. Poderia ser mais educado, pelo menos. ela sorriu. E então, como está?
O rosto dele era completamente pálido. Para ela, isso era mais belo ainda. Destacava ainda mais os profundos olhos quentes e esverdeados.

"205 A.C.
10 Thank you very much"

David Mukai era o líder da cooperação da indústria bélica do Oceano Índico. Na ilha de Madagascar, o lugar era pouco conhecido aos olhos mundiais, praticamente ignorado. Sujo e fedorento, com o cheiro constante de fumaça de fábrica e de uma substância que o cheiro se assemelhava a gasolina, essa indústria dava a seus trabalhadores um nível de vida muito inferior ao das pessoas que passavam fome nos desertos africanos e asiáticos, com comida de baixa qualidade e moradias de esgoto a céu aberto. Mas esses são apenas detalhes de seres humanos terrestres. O mais importante era quem morava ali, sem o conhecimento de ninguém.
Ela bebeu um pouco de café que ele servira gentilmente na pequena sala. Quase não sentiu o gosto do líquido por causa do cheiro lá de fora que também adentrava na casa. Ele, por sua vez, quase tremia. Interessante você achar mais um nome, não é, tenente? ela sorria por trás da xícara. David Mukai... você não se confunde com tantos nomes?
Não precisa me chamar de tenente, Noin. ele suspirou. Estava sentado no sofá à frente dela. Nem sou mais Zechs Marchise... e você sabe disso.
Zechs Marchise. Esse nome causava um arrepio diferente em Noin. Ele prosseguiu:
Não sei como me encontrou, mas não é bom que fique aqui?
Mas por quê? a tenente se assustou. Não está feliz em me ver? Eu passei os últimos dez anos da minha vida procurando por você, um homem que todos acreditavam estar morto, menos eu. E agora você me diz isso?
Zechs baixou a cabeça. Nas roupas cinzentas de um simples trabalhador-soldado, estava mais magro, e também perdera toda aquela elegância e aquele orgulho que tinha na época da OZ II ou da Presa Branca.
Não é isso, Noin... você sabe que não.
Levantou a cabeça e sorriu sinceramente.
Estou muito feliz em te ver.
Noin também sorriu.
É, eu sei. Desculpe por julgá-lo mal. Zechs se levantou e se sentou ao seu lado. Sabia que não estava muito cheiroso nem limpo para tanto, mas sentia essa vontade mais do que tudo. Tocou o rosto de Noin com uma mão, e passou a franja que cobria os olhos azuis-escuros para trás da orelha.
Sabe que está mais bonita assim? Ela corou de leve, mas se aproximou.
E eu te prefiro assim.
Assim? ele quase riu. Nesse estado? Seja sincera comigo, Noin.
Eu falo sério. Não disse que fica mais bonito assim, mas disse que prefiro assim. Com você desse jeito, eu não tenho medo de me aproximar.
Zechs se tocou de o quanto Noin o respeitara no passado. Medo de se aproximar! E de um amigo da escola, um velho conhecido! Sentiu-se até culpado por tê-la deixado encabulada antes. Agora era ele que se encabulava.
Noin segurou sua mão. E então começou a falar - aquela voz preciosa - e contar tudo o que acontecera. Como era de se esperar, Zechs ficou imensamente surpreso em saber que Heero Yuy estava vivo e que três pilotos Gundam já estavam reunidos, mais Wufei com ela e Sally, mais os cinco Gundams novamente ressucitados. Contou também todos os planos pré-formados.
E é claro que vim pedir sua ajuda. ela terminou. Wufei me falou que você estava aqui.
Como ele sabia?
Não sei. Mas, de alguma forma, sabia, graças a Deus.
Zechs suspirou, olhando-a. Palavras tilintavam em sua cabeça, contar, não contar, contar, não contar, contar, não contar, contar, não contar, contar, não contar, contar, não contar.
M-me cas-sei, N-noin. as palavras tropeçaram. Noin arregalou os olhos. Podia-se ver ela empalidecer.
Casou? Com quem?
Charlotte. Também é uma trabalhadora daqui. Foi ela quem me acolheu nesse lugar quando eu estava sendo trazido pelo mar, praticamente morto. Viu Noin escutando com atenção. Via que os olhos dela pediam detalhes. Prosseguiu:
Charlotte é de uma nova seita religiosa africana, muito estranha... Ela rezava há muito tempo para ter um marido e uma família, e quando eu vim para cá ela acreditou ser um presente da deusa das águas, oferecendo-me em matrimônio. novamente quase riu. Muito estranho mesmo. Mas eu não quis decepcioná-la. Foi tão boa comigo. Além disso, eu não havia lugar nenhum para retornar.
Mas ela fala alguma língua africana?
Sim, cinco línguas africanas. Mas também fala a língua universal. Com sotaque arrastado, mas fala. E está me ensinando a falar suas línguas, enquanto eu ensino as minhas.
Mas... ela não quis só um marido, mas também uma família. Noin mordeu o lábio de preocupação. Vocês... tiveram filhos?
Não. ele disse, e ela demonstrou-se bem mais aliviada. Não quis dizer a Charlotte, mas tenho certeza de que ela é estéril.
Noin sorriu um pouco, mas também gritava por dentro. "Seu canalha, se não tiveram filhos, não foi por falta de tentativas"
Entendo... assentiu, educada. Mas pelo visto ela não está em casa? Faltou semana passada por doença, e agora está tendo que repor as horas. Vai trabalhar a noite inteira hoje. Só voltará amanhã de manhã.
Cada célula do corpo de Noin gritava "Ótimo!" e mandavam que ela aproveitasse. O coração também, batendo, excitado. As mãos ao segurar as de Zechs, as dele frias, as dela quentes, ambas carinhosas. Apenas a mente, no lugar da consciência - a maldita consciência - era quem resistia. Não que isso tivesse durado por muito tempo. Noin tocou a bochecha fria de Zechs com os lábios, fazendo o soldado estremecer. Ele a olhou nos olhos, então ergueu delicadamente as mãos dela e as beijou. Noin levantou seu rosto com as mãos, e então beijou-o, enfim na boca, aquele beijo tão esperado por tanto tempo. Ele correspondeu ao beijo e caiu sobre Noin no velho e simples sofá.

Onde a idiota da sua amiga foi parar? Wufei fungou. Mulheres! Demoram demais e são enroladas demais. Depois ficam tentando dar uma de soldado!
Ela só quer encontrar uma pessoa querida. Sally olhou para a água. Estava sentada num cais vazio, os pés balançando sobre a água do mar.
E precisa de tanto tempo? Wufei estava em pé, de braços cruzados, atrás dela. O crepúsculo fazia com que apenas uma pequena faixa amarelada no horizonte desse os últimos vestígios de sol.
É importante para ela.
Que romântico.
Para o coração ser saciado.
E o corpo também.
Wufei!
Hehe, e qual o problema?
Você não era assim!
Eu? É, talvez eu tenha mudado um pouco mesmo.
Sim, estava mais sorridente que há dez anos atrás. Sally reparara nisso. E ficou imensamente feliz, porque não havia coisa mais satisfatória no mundo que um sorriso verdadeiro de Wufei.
Virou-se para ele. Viu aquele rosto sereno e mal-iluminado, novamente sério, a encará-la. Ela riu, talvez para disfarçar alguma timidez que tinha daquele olhar negro.
Por que me encara tanto? e virou-se novamente para o crepúsculo. Não é nada. Wufei permaneceu sério.
Não?
É que você mudou bastante. Nem tinha te reconhecido, Sally.
Era raro ele chamá-la pelo nome. Mais raro ainda era ele expressar uma opinião desse jeito. Ela sentiu-se completa naquele instante.
Ah, é? brincou mais uma vez. Será que estou ficando tão velha assim?
Não.
Acho bom mesmo!
Ficou melhor de cabelo curto. Ficou mais leve, combinou com você.
Um elogio! Sally se virou novamente. Ele estava com um meio-sorriso.
Estou certa? ela disse, espantada. Está me dizendo que estou bonita?
Isso é só um elogio. ele tornou a ficar sério, parecendo um pouco constrangido. Fica bem melhor assim que com aquelas duas tranças ridículas. Sally ficou séria.
Está me dizendo que antes eu era ridícula.
Não. Só era... estranha. Gosto assim. Mas não que a minha opinião faça diferença na sua vida.
O sol desaparecera por completo. A total escuridão na noite só era interrompida por uma pequena lâmpada que ficava pendurada no cais, e refletia uma fraca luz amarela na água negra. Não é melhor irmos procurar um lugar mais claro? perguntou Sally, se levantando.
Tem medo de ficar aqui? Wufei não se mexeu. Já havia um tempo, seu olhar fitava a pagua.
Ela permaneceu ali, fitando a sombra que seria o piloto Gundam. Ele voltou-se para olhá-la também. Silêncio. O burburilho da água de vez em quando, indicando a passagem de um pequeno peixe. Sally se contorceu de raiva por ter sido tão tímida e tão infantil naquele instante, mas era isso que a presença de Wufei lhe causava. Desviou o olhar. Ele, não.
Você nunca me contou nada sobre o seu passado. ela tentou disfarçar iniciando outra conversa. Por quê?
Porque não é necessário. a voz dele respondeu, serena.
Virou-se e se afastou. Suspirou, olhou um pouco à volta.
Vamos buscar a jovem donzela apaixonada? ele perguntou, voltando à naturalidade. Ou nós nunca realizaremos nosso plano.
Vamos para o Espaço?
Sim, para o Espaço.
Mas... não sabemos onde Quatre, Duo e Heero estão! Sally então se levantou, chegando perto de Wufei. Vamos ter que procurar por todas as colônias? Se eu fosse você já iria me preocupando com outra coisa. Como vamos para as colônias? Teremos chance de passarmos despercebidos?

Ouviu o som insistente do despertador ao fundo, algo irritante, que levava de volta à vida real e aos problemas reais. Zechs, depois de ver que o pequeno relógio não iria desistir tão fácil, esticou o braço e socou-o, fazendo-o cair no chão. Que droga, nada mais de dormir por hoje... Estava completamente ciente de que estava em sua humilde cama, deitado e nu, abraçado a Noin, nas mesmas condições que ele. Ela parecia tão satisfeita com a noite e tão absorvida em sonhos que nem se moveu quando o despertador sôou.
Mas era dia, e como um dia, a vida não havia mudado. Tinha de estar no quartel-general às seis, e já eram cinco e meia. Sentou-se na cama, Noin se mexeu ao seu lado soltando um pequeno gemido e acordando.
Vai trabalhar hoje? ela perguntou, sonolenta, e depois bocejou.
Estou pensando seriamente nisso. ele sorriu, deitando-se de novo nos travesseiros macios. Tinham o cheiro doce dos cabelos da tenente. Acha que eu devo ou não devo ir?
Não deve. ela o abraçou pela cintura, abrindo os olhos e sorrindo para ele. Zechs retribuiu o sorriso. Mas não, aquela noite já havia sido suficiente. Pelo menos por agora. E ainda mais: o que faria quanto a Charlotte?
Mas foi ela quem se levantou. Caminhou pelo quarto à procura de suas roupas, e as vestiu vagarosamente. Zechs apenas a contemplava. Noin, depois de vestida, sentou-se na cama.
Temos mais assuntos importantes para tratar. ajeitou os cabelos. Wufei e Sally estão nos esperando. Nós vamos às colônias! Vamos voltar a lutar!
Nesse "nós" você me incluiu também? Zechs ficou sério. Noin, pega de surpresa, assentiu que sim. Eu não sei, Noin. Não sei o que devo fazer.
Tenha certeza de que a Sra. Charlotte irá agradecê-lo quando você livrá-la da OZ II e dessa vida.
Não sei. ele deu de ombros. Acho que ela não se interessa muito por política.
Se levantou e também se vestiu. Olhou no relógio.
Charlotte vai chegar a qualquer momento. anunciou.
Então eu vou embora. Noin se dirigiu à porta da sala. Você vem comigo? Zechs pensou por um tempo. Ao final:
Não. Sinto muito.
Noin não discutiu. Nem sequer o olhou. Saiu andando calmamente pela porta, sua pose de soldado, seu ar sério e formal. A terra ainda estava molhada. As pessoas começavam a sair das casas para irem à fábrica. Sem poder se conter mais, Noin olhou para trás, como talvez um último adeus. Deu de cara com Zechs atrás dela.
Z..Zechs! exclamou, com um pulo de susto. Você ficou forte, Noin. ele lhe sorriu. Agora era um sorriso de um superior a um soldado querido, e não mais um sorriso de um amante. Vamos, irei com você. Ou com a senhora, Tenente Lucrézia Noin.

No mesmo cais, às oito da manhã. Wufei, Sally, Noin, Zechs.
Destino: colônias! Sally exclamou, feliz como uma garotinha. Que tal, que tal? Estamos tão perto!
Como você é adiantada! Wufei advertiu-a. Não vê? Nossa próxima parada é a Província Arábica.
Tem razão. Noin desanimou. Tem quatro Gundams lá, e com certeza o exército da OZ II na ex-base de Asid. Teremos que lutar se quisermos eles de volta.
Ao menos com ele aqui nós agora. disse Wufei, apontando Zechs com a cabeça. Vai ser melhor para lutarmos.
Acredita que teremos que lutar? perguntou Zechs, sua primeira fala desde que aquela conversa de iniciara. Ainda usava as roupas simples de trabalhador, e à primeira vista pareceu ser qualquer estranho a Wufei e a Sally. Mas via-se que não era qualquer um. Seu jeito de andar - passos largos, tronco ereto e cabeça erguida - ressaltava que era um grande líder militar. Ele e Noin haviam chegado até o cais com uma pequena nave.
Você não? Wufei encarou-o. Eu acho que sim. Talvez não, Wufei. Noin lembrou-o. Heero, Quatre e Duo foram direto ao espaço, sem lutas.
Está esquecendo da recuperação dos Gundams, minha cara tenente. Wufei demonstrava irritação. Não é? E depois, quando estivermos nas colônias? Acha que não haverão lutas? Como as mulheres olham por ângulos tão pequenos?
Não era necessário falar assim. Sally defendeu-a. Seria melhor pararmos as discussões. Zechs interferiu. Mas como vamos lutar na Arábia? Só temos o seu Gundam, Wufei.
Não é preciso mais que isso.
Está dizendo que pode lutar sozinho?
Certamente.
Pois eu não acho. Zechs não gostava muito do jeito dele. Será melhor se você puder recuperar um Mobile Suit para mim. Para Noin e Sally também, se elas quiserem. O melhor agora é atacarmos juntos e protegermos uns aos outros. Estamos em pouco número. Se um de nós cair, todos caímos.

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Por Kitsune-Onna