O casal Mandaire demorou a saber de tudo, pois os espiões mandados por Clermont eram capturados pelos soldados da OZ II antes que descobrissem qualquer coisa. Quase sempre eram mandados de volta à universidade, mas quando não se tinha certeza se o espião era ou não de lá, este era morto. Até que houve um dia em que Mallaica mandou uma carta a Relena. Parecia uma carta pessoal, manuscrita, que era curtíssima, dizendo apenas claramente:
"Srta. Relena Peacecraft, tenho tido problemas demais com revoluções para a senhorita intrometer-se e eu ter ainda mais problemas a resolver. Afaste-se, ou Clermont será oferecida a colaboradores que causem menos incômodo.
Atenciosamente
Aurey Mallaica, governante da Esfera Terrestre e das Colônias."
206 A.C.
22
Primeira Vitória - as idéias
Relena rasgou o papel e jogou-o longe.
Quem ele pensa que é?! "Colaboradores que causem menos incômodo"?! "Governante da Esfera Terrestre E das Colônias"?! escondeu o rosto entre as mãos. Não vai tirar Clermont de mim!
Heero, que estava em pé junto à porta - estavam na sala de Relena - olhou o papel rasgado no chão. Pegou todos os pedaços e se sentou na cadeira em frente à mesa da diretora, juntando o papel picado.
Leu a carta, depois espalhou os pedaços novamente.
Ele é mesmo ousado. concluiu. E desde quando se preocupa tanto com Clermont?
Relena, com o rosto entre as mãos, abriu os dedos de modo que só um olho fosse descoberto.
Está falando de mim?
Estou.
Simplesmente me preocupo, assim como era com o Reino de Senk. ela descobriu o rosto e se esticou na cadeira. Espírito de soberana, talvez.
Heero mexia preguiçosamente com os pedaços da carta.
Por falar nisso, que fim levou Senk?
Foi anexado à Lestásia. Relena respondeu. Logo depois que os países voltaram a se unificar, depois da Final War.
Não sente vontade, ou necessidade, de voltar a governá-lo?
De maneira nenhuma. Ele não está envolvido em nenhuma guerra, e se eu voltasse a governá-lo poderiam acabar os dias de paz por lá. Não, isso nunca.
Se bem que sentia falta de Senk. Era um belo país, agora sendo chamado Província de Senk da Lestásia.
Heero esperou o silêncio pairar. Foi quando afirmou:
Eu vou investigar na África.
Relena se levantou de um salto.
Não vai!
Heero olhava-a, firme e sem emoção.
Já disse que vou. Cansei de confiar tudo a esses estudantes, e cansei de ficar longe de experiências militares. Não deve se preocupar comigo.
Relena ia protestar mais uma vez quando Heero levantou-se e pôs as mãos nos ombros dela. Olhou-a com afeto, e chegou até a sorrir.
Não deve se preocupar comigo. repetiu.
A porta da sala se abriu. Era Quatre.
Parecia triste, imensamente triste. Mas continuava com seus modos educados.
Boa tarde. Eu ouvi o que diziam; deixe-me ir para a África em seu lugar, Heero.
Heero soltou Relena, parecendo preocupado com o estado do piloto. Relena se dirigiu até ele, segurando sua mão.
Tudo bem com você... Quatre? perguntou com delicadeza.
Na outra mão, notou que Quatre tinha uma carta amassada, que guardava junto ao peito. Fê-lo sentar-se, perguntando:
Uma carta de Mallaica? Recebeu uma também?
Quatre espantou-se.
De Mallaica? Você recebeu uma carta dele?
Recebi, mas.
O que dizia?
Ameaçava-me por mandar espiões. Ah, mas não, não se preocupe! adicionou ao ver a expressão de Quatre. O que diz nessa carta?
Quatre separou-a do peito, demorando a responder:
Essa carta foi escrita ano passado por um dos meus subordinados em Jeddah. Só agora é que conseguiu chegar às minhas mãos.
Estendeu-a a Relena, que pegou e começou a ler. Heero ficou ao lado dela para ler também.
"Ao Sr. Karim Asid, saudações
Os tempos ficaram difíceis depois que o senhor deixou Jeddah. Esperamos que o senhor volte, pois aqui aconteceram problemas demais, e os homens restantes o querem de volta.
Jiddah foi completamente destruída, por causa de uma batalha que parecia requerer os Gundams guardados na fortaleza. Desconhecidos para nós - embora de grande confiança para os grandes membros do Maganac Corps - chegaram aqui para levar consigo os Gundams. O Maganac Corps os ajudou, mas a batalha contra a OZ II foi intensa demais. Devo informá-lo de que todos os membros do Maganac Corps faleceram, nossas condolências, senhor. Foram encontrados todos os corpos, e a cerimônia do enterro foi realizada imediatamente.
Esperamos o senhor.
Abdul Aziz e forças"
Tanto Relena quanto Heero terminaram a leitura, chocados. Ao mesmo tempo, encararam Quatre em seu sorriso generoso e triste, profundamente triste.
Quatre... sussurrou Relena.
Abraçou-o com força. O que mais poderia fazer?
É por isso Quatre murmurou em seu ouvido, durante o abraço. que quero ir à África. Imediatamente.
Heero ouvia um dos professores discursar aos alunos. Na imensa sala aula, toda feita de mármore branco e marrom (pois cada sala de Clermont era diferente uma da outra), os alunos assistiam das cadeiras dos vários patamares, ouvindo o professor no plano mais baixo, que falava ao microfone e apontava os mapas atrás de si. Geografia e Política Moderna. Heero olhava tudo da porta da sala, em pé e de braços cruzados, como costumava fazer de vez em quando. Gostava desse professor, Stefan, austríaco muito jovem com um longo cabelo preto que tinha uma voz calma e agradável.
O deserto Amazônico foi sempre uma floresta, uma floresta, tropical, mais precisamente equatorial. Era a maior floresta do mundo, e era até chamada de "O Pulmão do Mundo.
Heero apoiou a cabeça na batente da porta, sonolento. Ultimamente era difícil dormir à noite.
... mas a floresta era autosustentável, o solo fértil que ela continha era produzido e protegido por ela própria. O local não passava de uma bacia sedimentar.
Quase dormia. Estava se lembrando, aos poucos, em cada noite de insônia, dos tempos depois da Final War. Sim, se lembrava. Levara uma pancada na cabeça, e depois mais nada na mente a não ser um vazio negro. Tão parecido com a morte
... foi indevidamente explorada. Milhares de hectares de terra eram devastados, no que ficou conhecido como a maior devastação do planeta.
Como assim, tão parecido com a morte? Não sei o que é morte. Mas me lembro daquela vez, em que autodetonei o Wing. Tudo rodou à minha volta, sangue, sangue, sangue, acordar dias depois.
... a floresta Amazônica desapareceu totalmente em 34 A.C., no que originou o deserto que hoje conhecemos; não exatamente um deserto, pois lá o índice de chuvas ainda é forte. Revoltas nativas aconteceram, e, embora tentassem replantar a floresta, nada germinava num lugar tão árido. É importante mencionar que milhões morreram durante esse processo, as pessoas que viviam às custas da floresta.
Aconteceu a mesma coisa dessa vez! Mas devo ter dormido mais tempo. Até parece que vivi duas vidas. Tão diferente uma da outra, essa e aquela, Relena me disse algo parecido que.
Sr. Yuy?
Viu o prof. Stefan à sua frente. Claro, as aulas terminaram, mas na verdade ele não lembrava ter ouvido o sinal tocar. Os alunos arrumavam as coisas para sair.
Desculpe. Heero disse friamente, mal se importando. O que você explicou, é tudo verdade?
Ambos deram espaço para os alunos passarem.
Comprovado em estudos. o prof. Stefan confirmou orgulhosamente. Era alto, e os cabelos negros caíam próximo a seus olhos e deslizavam pelos ombros, lisos e brilhantes. Não parecia um professor. Interessado pelo assunto?
É incrível como o ser humano daqui destrói a Terra, pensou ele. Como a desperdiça. Não éramos assim nas Colônias. Toda aula você fala de destruição natural, toda aula.
Ao invés disso, disse:
Não, não muito. Só um pouco.
O prof. Stefan sorriu educadamente, depois disse que tinha de se retirar - mais aulas. Heero assentiu.
Depois, ficou sozinho na imensa sala de mármore de Geografia.
Mapas, mapas por todas as paredes. Nomes das principais capitais do mundo. Nomes de todas as Colônias do Espaço na outra lista. Nomes das organizações mundiais desde 500 A.C., quando o mundo tentou se unificar para conseguir a paz. Trauma antigo.
OZ II. Estava na lista, a última organização. Um pouco acima, Rolme-Feller, OZ, Aliança da Esfera Terrestre Unida, Nações Unificadas do Mundo, União das Nações Mundiais.
Entre a Rolme-Feller e a OZ II havia, escrito em letras pequenas e vermelhas, "Verdade Revelada". Parecia algo tão técnico, tão sem importância, e que logo seria quando alunos futuros estudassem a História da Terra em suas apostilas de Geografia.
O prof. Stefan ensinou sobre a Verdade Revelada. Sem críticas, apenas essa coisa técnica. Só no final da aula começava o debate.
O que acham disso?
Stefan havia ficado muitíssimo satisfeito com Relena e Quatre no poder de Clermont. Independentes da OZ II, permitiam qualquer tipo de crítica durante as aulas. E Stefan adorava criticar, analisar, e fazia seus alunos também gostarem.
Os dias iam passando.
Heero era parado nos corredores pelos alunos. Eles perguntavam sobre Mobile Suits e sobre estratégias de guerra, pois muitos ali queriam ser militares. Quanto às máquinas, Heero já estava desatualizado, mas as artes de guerra raramente se desatualizam. E sempre é possível, na mente de um soldado como ele, imaginar estratégias novas. E Heero passou a gostar de explicá-las. Se reunia com os alunos que desejavam trabalhar nas forças armadas, terem cargos militares de importância, e narrava suas batalhas de destaque, dizia o que era preciso pensar na hora.
Todos jovens, muito jovens, os alunos. Com a reeducação escolar do pós-Colônias, os alunos prestavam vestibular aos 15 ou 16 anos de idade. Era mais com objetivo dos líderes terem soldados cada vez mais jovens, com as idéias na mente mal-formadas e incapazes de fazer críticas e se rebelar. Pessoas mais velhas, com mais experiência, teriam base para analisar as ações dos líderes.
A OZ II é ladra. A OZ II não presta, absolutamente.
Era o pensamento geral da universidade como um todo.
Até os professores começaram a passar isso com o tempo. Stefan, principalmente, em suas aulas e aulas em que colocava os alunos para discutir. Relena gostava disso, sentia-se orgulhosa. Quatre, não.
Se isso escapar daqui, nós não vamos acabar nada bem. ele dissera, e não uma única vez. Com certeza isso chega aos ouvidos da OZ II, Relena!
São só estudantes tendo idéias democráticas. ela quase sempre respondia. Clermont, assim como nós, não tem nada a ver com isso.
Como vai garantir isso a ele?
Somos subordinados dele! Teoricamente fazemos tudo o que ele manda! Desde os tempos iniciais da Aliança, Clermont é diretamente subordinada à organização líder.
Mas podemos mudar isso logo, ela pensava, já apaixonada pelo cargo que exercia e quantas oportunidades tinha agora.
Principalmente com essa revolta africana. Os estudantes conversavam sobre ele, excitados, cheios de expectativa sobre a decadência da OZ II.
E tinham Heero. Como isso os entusiasmava!
Quatre preparava suas malas, pronto para ir à Arábia. A noite estava fria, e a lareira se seu quarto e de Relena permanecia acesa, deixando o quarto quente e aconchegante. Até que Quatre teve que abrir uma fresta do vidro da janela para deixar um pouco de ar frio entrar.
Já reunira pessoas suficientes que o acompanhariam; nove estudantes, assim como Lala Samira. O prof. Stefan também disse que iria.
Alguém bateu na porta devagar.
Sid Quatre, querido?
Pode entrar.
Lala Samira entrou no quarto, já sentindo o calor de súbito. Tirou o lenço que tinha na cabeça e envolta do pescoço e ficou em pé ao olhar Quatre preparar as malas.
Na verdade... Quatre começou, terminando de fechar a última mala. Lala Samira, acho melhor a senhora não ir. Não, é perigoso.
As sobrancelhas pintadas dela se levantaram levemente.
Me deixe ir. Por favor, se vai levar jovens com você, por que não uma velha professora?
Ele lhe sorriu.
O que dizia a carta de Hashid?
Lala Samira sentou-se na cama ao lado dele.
Que estava tendo problemas na Arábia... que o senhor não voltava mais... que a OZ II os estava pressionando... que sentia saudades... e ainda coisas mais íntimas que não quero que saiba.
Sorriu como uma tia afetuosa, e Quatre como um sobrinho querido. Ele sabia do romance antigo de Samira e Hashid, em como ele queria deixar a Arábia logo que se aposentasse e vir para a Velha Zelândia morar com ela.
Soubemos tarde demais. Quatre murmurou com tristeza.
Para mim está ótimo. Lala Samira disse com energia ao levantar-se. Antes tarde - ou nunca - do que na hora. Não é mesmo? Vamos, vamos, Sid Quatre, partimos amanhã, lembra-se?
S...sim. ele levantou para pegar as malas.
Já despediu-se de todos?
Já... de todos os professores, Heero e Relena. Não podemos demorar mais.
Ótimo. Agora, sorria, Sid Quatre, sorria.
Por Kitsune-Onna
