Rastros de morte e destruição foram inevitáveis.
Dois meses depois da chegada das forças das Colônias à Terra, estas já estavam às margens do Nilo, embora ainda longe da foz. Chegaram a uma faixa deserta, depois pararam para descansar à margem do grande rio. Não precisavam ficar fugindo como ratos, agora. Tinham forças suficientes para a OZ II tomar bastante cuidado antes de atacá-los. Várias outras bases, assim como Tynley Manor, se uniram a eles, formando um grande e experiente exército. Às que se opunham, Zechs mandava que não houvesse matança, mas um grande saqueamento, tanto de armas como de alimentos. Mas as opositoras geralmente não aderiam ao movimento por medo da OZ II, que com certeza teriam de enfrentar várias vezes, com chances de vitória mas riscos de grande porcentagem de morte.
Mallaica utilizou dos saques e mortes causados pela Revolução, dizendo que isso era resultado das revoltas. Como estratégia, o exército da OZ II em momento nenhum ameaçou uma cidade africana ou saqueou. Logo que chegaram a Megauda, no Nilo, Zechs montou nova estratégia. Estava feliz de, ao menos, ter um exército garantido. Não absolutamente leal, mas seria útil e seguro agora.

206 A.C.
23 Discórdias

Duo olhou à volta. O Nilo seguia ao norte e ao sul, sumindo na paisagem, e o deserto se espalhava em todas as direções. Parecia até outra dimensão de um daqueles velhos filmes de ficção científica que ele assistia para dormir. O calor permanecia forte.
Estava ele num morro mais alto, tendo uma árvore pequena fazendo-lhe sombra, vendo o exército abaixo dele a se acomodar para passar a noite. Os Mobile Suits permaneciam perto deles, e alguns soldados preparados dentro deles, caso viesse algum ataque. Pretendiam chegar ao Cairo logo, onde poderiam se abrigar nas ruas estreitas e antigas. A OZ II, preocupada com a própria imagem, não os atacaria num lugar com milhares de cidadãos.
Duo viu Trowa subir o morro até ele, cobrindo o rosto do sol com uma mão. Chegou perto o suficiente para gritar:
Duo, vamos tomar banho! Você vem?

Entrou com tudo no pequeno lago.
Brrr... que água gelaaaada! Wuufei fungou ao seu lado.
Nos meus treinamentos era sempre assim. Água gelada torna o homem mais forte na meditação.
Ah, sei. Duo brincou com a água como uma criança. Esses caras que ficam meditando embaixo de cachoeiras.
Wuufei revirou os olhos.
É, esses caras.
Os dois, mais Trowa, Zechs e alguns oficiais mais importantes estavam num pequeno lago raso - uma saliência do Nilo, escondida entre as árvores e pequenos morros. Wuufei o achara sem querer, e na verdade queria o lago só para ele, mas Trowa descobrira o lugar também.
Ah, um ótimo lugar num dia tão quente. O sol já baixava um pouco e por estar escondido em sombras de árvores e morros, o laguinho não se aqueceu muito. Na verdade, perto do calor de fora, a água estava até gelada.
O assunto continuava sendo militar. Agora tinham planos de dominar o Nilo, porque dominando a água se poderia conseguir muito mais.
Duo começou a desfazer a trança, com dificuldade e ajuda, pois estava embramada. Só então que percebeu como estavam secos e horríveis os cabelos que geralmente eram tão bem-tratados, até demais para um soldado. Percebeu como estava sujo, e as pessoas ao seu redor também, e como o exército em si fedia, depois de dias e dias de lutas seguidas, com poucos banhos e alimentação péssima. Percebeu que estava magro demais, também. Só não tinha muita barba porque dava um jeito nela sempre que podia, cortando com cacos de vidro. Percebeu que nunca marchara com um exército. Como era mais confortável antes, sendo um piloto solitário.
Ficou nadando preguiçosamente no lago. Já era possível ver a lua no céu azul-claro. Ouvia a voz de Tylon explicando:
Dominando os portos da foz do Nilo, teremos um certo poder no Mediterrâneo. Se o Comandante Zechs disse que a base principal da OZ II fica no norte da Península Itálica.
Exatamente. confirmou sonolenta a voz de Zechs. Talvez seja melhor cercar o Mediterrâneo inteiro. Não é mais tão fácil, Comandante. disse a voz de um dos oficiais, Duo esqueceu o nome dele. As forças sul-européias não estão tão insatisfeitas com a OZ II para passarem do nosso lado com tanta facilidade. Ainda são leais, suponho.
Concordo. disse Trowa com voz baixa. Parecia que todos ali estavam com sono. Mas ainda há o norte da África. Não será difícil rendê-los, se tivermos o Nilo. E ainda a Arábia. lembrou outro.
Todos pareciam esperar a resposta de Zechs. Então a próxima parada será o Cairo. o comandante confirmou. Amanhã.
Já amanhã? aquele oficial prevenido protestou. E as tropas? Estão cansadas!
Assim que tivermos o Nilo inteiro, teremos tranqüilidade para descansar. garantiu Zechs. Primeiro é o Cairo, e a foz.
Ele se levantou, chamando para que todos saíssem. Chutou um pouco de água em cima de Duo, que quase dormir boiando no lago.
Duo, saia daí. Deixe Noin e as garotas tomarem banho também.
Aah, então eu não me importo de ficar.
Nenhuma piada americana por hoje! Wuufei puxou-o para fora pelos cabelos.

Passaram por algumas cidades, que se rendiam antes que o exército as ameaçasse. Não queriam qualquer tipo de opressão, e pediam proteção em troca de abrigo e alimento, além das águas fartas da estação do grande rio. Mais e mais soldados se ofereciam para lutar contra a OZ II.
Por fim, o Cairo. De longe já era possível ver as torres islâmicas da cidade; as que tinham sobrevivido às guerras contra os cristãos e judeus décadas antes. Essas guerras já não eram mais realidade, e o Cairo foi a única grande cidade inteiramente islâmica que restou. O Nilo passava por ele, em seu caminho até o Mediterrâneo.
Os habitantes ficaram transtornados, mas pareciam já estar esperando. Tropas de Mobile Suits da cidade já estavam de vigia, postos à frente das tropas inimigas. Não planejam se render. disse Noin, falando a Zechs. Vamos destruir a cidade inteira? Ela é patrimônio histórico da humanidade, um dos poucos que existem.
Também não gostaria de destrui-la, Noin. Mas.
Viu, ao longe, que os habitantes se apinhavam nas ruas. O sol já se punha, deixando toda a cidade em tons de laranja. As torres e as cúpulas das antigas mesquitas se erguiam com fragilidade.
Uma fez o Cairo afundara. Zechs se lembrava de ouvir a notícia quando era criança. A cidade ficava assentada em solo instável, por causa das águas subterrêneas, que aumentavam de nível cada vez mais. Edifícios e pessoas ficaram soterradas na terra; o estrago foi similar ao de um terremoto.
Zechs? Noin chamou-o, ao não ouvir mais nada.
Inesperadamente o exército do Cairo atacou. Eram muitos para serem de uma única cidade, mas o milenar poder bélico muçulmano era bastante conhecido. Zechs deu a ordem de atacarem, e então os dois exércitos se chocaram. Os partidários da Revolução Coloniana eram muito mais numerosos que as forças do Cairo, contudo. Ultrapassando o exército muçulmano, chegaram rapidamente à cidade em si.
Zechs estendeu um canhão simples e disparou. Atingiu a cúpula de um templo, bela e ornamentada, explodindo-a em pedaços. Alertou que não teriam pena da cidade caso houvesse resistência ou, principalmente, caso convocassem a OZ II em seu auxílio.
O exército inimigo hesitou um pouco, mas continuou atacando. Logo Zechs viu o Shenlong de Wuufei levantar nos braços um Mobile Suit que havia atingido com seu tridente. Wuufei lançou-o bem em direção à cidade, caindo em cima de outro templo, evitando as ruas apinhadas de gente desesperada.
Não ouviram o que ele disse?! foi o que gritou.
Continuaram hesitando mas lutando. Duo chegou perto de Wuufei, temendo o que este pudesse fazer à população. Wuufei nunca se importara muito com inocentes, dizia que era inevitável a morte deles e quase necessário.
Pega leve, Wuufei. Duo disse exclusivamente para ele. Não vai ser difícil derrotar todos, tudo bem se eles não desistirem até o final.
Já tivemos perdas suficientes! Wuufei disse com desprezo e cheio de raiva. Vi vários dos nossos africanos sendo destruídos aqui mesmo. Aqui na África eles não sabem lutar!
Atirou seu canhão de fogo em um Mobile Suit inimigo, que ardeu e depois explodiu. Pegou os restos ardendo em chamas, e, para o espanto de todos, atirou-os bem nas ruas da cidade.
Milhares de pessoas correram, desesperadas. O fogo se alastrou pelas ruas estreitas e pelas casas, todas muito juntas. O comandante do exército do Cairo desesperou-se, gritando a Zechs:
Nos rendemos!
O próprio Zechs estava impressionado. Chocou-se com a atitude brusca e violenta daquele que ele esperava que fosse seu subordinado. Forças do Cairo lutavam para combater o fogo, pessoas ainda corriam. Tinham que mandar cartas de desculpas, ajudar a reparar o dano. Como fariam para serem aceitos agora?

Haviam acampado a alguns poucos quilômetros do Cairo. A noite tinha descido, fazendo o deserto à volta deles esfriar violentamente.
Wuufei mal havia descido do Shenlong quando viu alguém partir para cima dele e dar-lhe um tapa no rosto.
Noin.
O que estava fazendo?! Noin vociferou, irritadíssima. Levantou a mão mais uma vez para outro tapa, mas Wuufei defendeu-se com uma mão rapidamente e sem dificuldade. Num piscar de olhos, ia devolver a agressão, mas parou com a mão bum ao lado o rosto de Noin.
Ela ficou surpresa com a reação, mas não menos irritada. Sua boca tremia e os olhos estavam levemente molhados de lágrimas.
Viu Zechs dirigir-se a ele. Tinha a expressão muito diferente do costume, parecendo até frágil agora.
Nosso objetivo era fazê-los concordarem conosco. começou dizendo. Como vamos reparar as mortes desnecessárias que você causou?
Logo atrás dele, Trowa e Duo. Outras pessoas do exército resolveram não se aproximar muito, mas observavam de longe, a maioria sentada na areia para descansar da última batalha.
Tínhamos que fazer tudo muito rápido. Wuufei defendeu-se, sem fraquejar na voz ou na expressão. Não era o seu objetivo?
O meu objetivo nunca foi mortes desnecessárias.
Não foi desnecessário! Se fôssemos mais rápido, já estaríamos na tal foz do Nilo, não é?
Como se sentia patético em explicar essas coisas a eles todos. Não, eles não entendem. Estamos em um exército. Zechs começou. Você também. Agimos em conjunto, sob ordens de um líder. No caso eu, e também Noin. Fugir dessas ordens nos atrasa em nossos objetivos.
VOCÊ atrasa em nossos objetivos!
Temos que ter a simpatia do povo!
Não querem simpatia; obedecem quem é mais forte!
Zechs respirou fundo. Não discutiria, não assim, gritando.
De que adianta recomeçou, com mais calma. sermos líderes fortes, se formos opressores? Um povo obedece ao mais forte quando este é opressor. Não pretendemos tirar a OZ II do governo da Terrra, e, portando, a opressão? De que adianta se formos iguais a Aurey Mallaica?
Wuufei ficou quieto, embora não concordasse. Zechs então o encarou e estreitou os olhos.
Você... fez parte do plano do ano passado junto com Sally?
Wuufei quase avançou nele. Duo e Trowa logo conseguiram impedi-lo, Noin afastou-se um pouco, assustada.
Do que está me acusando?! gritou ao comandante. Eu não traio ninguém pelas costas!
Poderia ser. Vocês eram bastante unidos.
Sou um guerreiro de um clã milenar! Tenho senso de justiça!
Isso não nos garante nada.
E também de honra, e integridade! Muito maior que o seu!
Ele enfim parou de lutar, e Trowa e Duo o soltaram, sem dizer palavra alguma. Noin estava comovida, pensando no caso de Sally pela primeira vez em muito tempo. Estendeu a mão e tocou o ombro de Wuufei, que o mexeu para que ela o largasse.
Tudo bem. Talvez precisemos descansar, há a foz ainda, não é?
Isso mesmo! disse rapidamente Duo, odiando aquele momento tenso. Wuufei, tudo bem, a gente acredita em você! lançou um olhar rápido a Zechs e depois continuou. Afinal, você é um dos pilotos Gundam, não é? É um de nós. A gente acredita, mesmo.
Trowa, silencioso, apenas correspondeu com um balanço afirmativo da cabeça e um sorriso.
Wuufei olhou para Duo. Tinha um olhar quase meigo - assustadoramente quase meigo.
Eu sei. Eu sei.
Virou-se e entrou no Gundam. Dormiria lá dentro.
Guardou um ódio profundo por Zechs. Sentia que nunca tivera tanto ódio por alguém, exceto os homens que destruíram sua Colônia, onze anos antes, matando todo o seu clã e toda a sua tradição.

Pelo Mar Vermelho?
Claro. As notícias chegavam muito devagar até nós porque não tínhamos mensageiros fora do exército. Por isso que disse a você que arrumássemos alguns. Eles foram bastante úteis.
O sol ainda não nascera, mas o céu já estava de um azul mais claro. Envolvidos pelo ar parado e gelado da madrugada, os soldados preparavam-se para partir. Noin e Zechs discutiam novos planos, mudados por um mensageiro, mandado em segredo por Noin à Península Arábica. Outros haviam ido para o leste da África, Penínsulas Itálica e Ibérica.
Nos disse que estão entusiasmados pelo nosso movimento, na Arábia. Noin continuou. Dizem que querem apoiar a Revolução da África unindo-se a ela. Atacam postos da OZ II com freqüencia. Centenas de aldeias do exército já adeririam ao movimento. Zechs sorriu com orgulho e satisfação, vendo que pessoas já seguiam seus exemplos. Aquele velho orgulho de quando era Zechs Marchise da OZ. Não pararia por nada agora.
Duo chegou correndo até eles.
Vocês nem sabem! disse, ofegante.
Zechs e Noin apenas esperaram, perplexos. Quando viam Duo preocupado? É o... Wuufei... ele partiu, de repente! Deixou escrito algo na areia. Disse que ia para a China.
Por Kitsune-Onna