Andam dizendo que a tal revolução chegou à Arábia. o homem do monitor parecia realmente preocupado. Por que não os atacamos de vez? Todas as forças da Terra?
Ah, é por isso que Sua Excelência não gostava do senhor.
O quê? Nada, apenas pensava alto. O comandante deles é muito esperto, eu gostaria muito de tê-lo para a OZ II. Ele se esconde em cidades, e não podemos atacar inocentes. Chega de revoltas populares.
Mas então quando?
O senhor não sabe esperar? Só será quando eles vierem nos atacar, a não ser que surja outra oportunidade.
Mas.
Desligou. Como era irritante! Mas Mallaica percebia que perdia cada vez mais a credibilidade. Nem a violência causada pela revolução fazia as pessoas pararem de crer nela. E o pior? Quatre Raberba Winner saíra de Clermont, querendo ir visitar os túmulos da organização Maganac Corps. Perto demais dos problemas.
Talvez precisasse começar a agir rápido.

206 A.C.
24 O Festival

Calor. O calor escaldante que só os desertos eram capazes de ter, o ar sem um pingo de umidade, o deserto se estendendo por toda a volta, em suas dunas de cor alaranjada. Era pôr-do-sol, por isso a temperatura estava mais amena do que naquelas horas em que o sol estava a pino no meio do céu. Ele estava prestes a se pôr, queimando no oeste. Mas mesmo assim, o calor.
Sua antiga base, ao lado da base de Jiddah, ligada a ela por um caminho subterrâneo. Estava completamente em ruínas. Metade das paredes, das poderosas muralhas, estava em pé. As passagens antes subterrâneas formavam grandes valas na areia, que não foram totalmente cobertas pelas tempestades porque as muralhas as protegiam. Restos de Mobile Suits eram encontrados aqui e ali. Quatre viera com sua pequena expedição. Homens árabes fiéis que antes eram subordinados dele, os curiosos estudantes, que nunca tinham visto a Arábia, mais Samira e Stefan. É verdade, então? Quatre perguntou, encarando a ruína. Todos, todos eles? Um dos beduínos confirmou respeitosamente com a cabeça, e depois disse:
Fizemos patrulha, duas horas depois da batalha. Acreditamos que alguns deles tenham sobrevivido, mas os ferimentos graves e o calor os matou antes que chegássemos a tempo.
Eu sei. Vi na carta. Me impressiona o senhor ter recebido a carta tanto tempo depois, Sid Quatre.
É mesmo. E afinal foi que eu sumi.
Quatre ficou a olhar tudo.
E aqui acaba o Maganac Corps, pensou ele consigo mesmo. Massacrado nesse deserto, onde não é possível ver mais nada.
A própria sede de Jiddah estava destruída; não havia mais nada. Passou a andar pelas ruínas. Tentaram segui-lo, mas Lala Samira os impediu.
Via, por entre os destroços, os imensos buracos feitos por Mobile Suits. Uma outra parte com certeza foi causada por explosão: uma vala circular quase perfeita. Quatre agachou-se ao lado dela, observando.
Havia também partes pretas, queimadas por explosões e pelo fogo - com certeza houvera incêndios - que o sistema de segurança da base não conseguiu deter.
E os corpos? Onde estavam eles? Todos recolhidos; tinha de visitá-los. Talvez estivessem no Cairo, não era lá?
Mestre Quatre, eu trouxe o chá. Hashid entrara no quarto naquela noite, a bandeja com o chá rosado. Como está?
Bem, obrigado, Hashid. Quatre estivera com febre naqueles dias, de cama em seu quarto no pequeno local que ficavam, na Terra.
Hashid sentara ao lado da cama, como um irmãos mais velho, estendendo a bandeja para que Quatre pegasse a xícara. Obrigado, muito obrigado.
Por que se lembrava agora de algo tão simples? Talvez fosse para lembrar bem a expressão de Hashid.
E, nas noites livres que tinham, na Terra ou nos tempos antes da Operação Meteoro, costumavam cantar e dançar músicas antigas folclóricas, muitas tiradas de história d'As Mil e Uma Noites. A alegria dos tambores e do ritmo faziam até o próprio Quatre dançar, às vezes.
E havia as histórias, as reunidas n'As Mil e Uma Noites, que cada um contava uma durante as noites e que festejavam juntos. Lala Samira também sempre as contara a Quatre, quando ele era criança.
Lala Samira sempre contava uma que ela adorava, representando como uma atriz de teatro enquanto narrava.
Um rei muito jovem, conhecido como o jovem rei das Ilhas Negras, contara ao sultão sua trágica história: após ferir mortalmente o amante da esposa, que era feiticeira, recebeu uma maldição da infeliz mulher, que ele antes julgava completamente fiel. O amante ficara incapaz de se move e falar, um semi-morto, que a feiticeira sustentava através de uma poção. O jovem rei tivera seu reino desaparecido por mágica, com todos os habitantes transformados em peixes, e ele mesmo foi transformado em metade-homem, metade-mármore (embora Quatre nunca conseguisse imaginar algo assim). E a feiticeira todos os dias ia visitar seu amante em seu túmulo, oculto por cobertas, a chorar e lamentar sua má sorte. E todos os dias ia castigar também o marido, dando-lhe cem chibatadas. O sultão, com pena do jovem rei, resolveu ajudá-lo. Uma noite foi até o leito do amante da rainha, descobrindo-o, cortando sua cabeça e livrando-se dela e do corpo. Deitou-se no lugar dele, ocultando-se na coberta.
A feiticeira veio à sua visita diária. Primeira castigou o pobre rei, com as cem chibatadas, em outro aposento do chamado Palácio das Lágrimas, e depois foi ver o amante. Chorou e lamentou por nem ouvir uma palavra vinda da boca dele. Foi quando o sultão falou, imitando o sotaque indiano - nacionalidade do morto - fazendo a feiticeira ficar em êxtase.
"Infeliz" disse ele. "Merece que eu diga alguma coisa"
Quatre ouviu sons de Mobile Suits. Virou-se e olhou, vendo que era apenas os beduínos. A OZ II não passaria por ali.
Agachou-se novamente onde estava, e dessa vez sentou-se no chão, revirando um punhado de areia nas mãos. Como eram nítidos para ele os rostos das personagens, suas expressões! Lembrava-se de ter medo deles quando criança.
Continuou a imaginar a história. Faziam dez anos que ele não ouvia essa nem nenhuma história. Sentiu tristeza por isso. De que adiantava contar para si mesmo?
A rainha ficara assombrada com a frieza do amante, perguntando o porquê de tudo aquilo. Ele dissera que ouvia todos os dias os gritos de desespero do jovem rei, e as lamentações dos moradores daquela cidade. Ele nunca conseguiria levantar assim, disse. Aquilo tudo o atordoava.
Louca de paixão, antes mesmo de descobrir o suposto amante coberto, a feiticeira foi imediatamente ao jovem rei e o fez normal novamente, depois toda a cidade. E mandou o rei fugir daquela cidade o mais rápido possível, senão ela o mataria. Voltou correndo ao túmulo, feliz. Mas quando tirou as cobertas, o sultão rapidamente desembainhou o sabre e cortou a rainha ao meio.
Quatre!
Ele se virou rápido, encarando Lala Samira ajoelhada ao lado dele. Sid Quatre... Como terminava mesmo a história?
Ele lhe sorriu, depois se levantou junto com ela.
Que aconteceu, Lala Samira? Parece preocupada.
Chamei o senhor várias vezes, mas não me respondia! estava pálida. Ah, como estou preocupada!
Parece que o rei, agradecido ao sultão, resolveu ir com ele. E o sultão então criou o jovem rei como um filho. Porque fizera isso, Quatre não havia entendido.
Alguém chegou logo após dela, o jovem professor Stefan. Seu rosto pálido estava avermelhado por causa do sol, e ele parecia estar sofrendo com aquelas roupas pesadas no calor do deserto, principalmente por causa da falta de costume.
Sr. Winner? perguntou preocupado, os olhos apertados por causa do sol.
Desculpe a minha demora. Quatre sorriu. Sentia-se melhor agora. Vamos visitar os túmulos, depois voltamos a Clermont. Tem mais alguma coisa que queira fazer aqui na Arábia, prof. Stefan?
Bem, na verdade... Espere um instante. Stefan se dirigiu até uma sombra, que finalmente aparecera, feita por uma muralha. Lala Samira e Quatre riram e depois o seguiram, ficando na sombra também.
Stefan respirou fundo, como se estivesse planejando perguntar aquilo faz tempo:
Será que teremos chance de ver a revolução?

Tinha ido visitar os túmulos, mas breves visitas. Porque a OZ II estava por lá. Era como se os vigiasse. Quatre não queria qualquer tipo de contato com a organização, e, embora quisesse muito passar um bom tempo ao lado dos companheiros mortos e prestar-lhes homenagem, à maneira árabe, achava que poderia fazer isso depois, quando a situação estivesse mais amena. Agora queria ver também sobre aquela tal revolução. Stefan dissera estar ansioso para ver o exército que desafiava a OZ II na África, e confessou somente a Quatre, que, se fosse possível, uniria-se a eles. Quatre também queria ver como estava o poder da OZ Ii fora de Clermont. Ela teria perdido sua influência mesmo?
A Arábia em si, por ser quase toda desertos, não tinha países definidos, nem era um único país. As cidades, isoladas nos oásis, eram pequenas tribos com seu próprio líder e suas próprias leis - tradição milenar. Por isso, era mais difícil para a OZ II vigiá-las: por serem tão isoladas. Quatre tentou imaginar porque a revolução não se formara ali, ao invés da África, mais controlada.
Andou por várias cidades, ele e sua comitiva. Cidades que, apesar de terem a tecnologia atual, tinham ainda características das antigas das antigas cidades árabes, e vestígios do mundo muçulmano. O Islamismo fora quase extinto pouco depois da criação das Colônias, parte derrotados pelos cristãos, parte porque o conceito de religião se tornara gradualmente fraco, ficando então sem importância. Foi um dia antes de voltar a Clermont que Quatre entrou numa cidadezinha com poucas pessoas, onde todos se preparavam para algum festival. Bandeirinhas, lenços, vasos decorados, as ruas inteiras enfeitadas. Extensas mesas colocadas ao ar livre, e logo sendo lotadas de comida. Faltavam poucas horas para o sol se pôr. Sempre o pôr-do-sol, a caracterização do deserto laranja. Ali não haviam soldados da OZ II. Talvez nem valesse apena que ficassem lá, um lugarzinho tão fim-de-mundo, com suas casas antigas cheias de pessoas que mal conheciam a guerra. Uma linda música ticava, cheia de tambores e flautas. Quatre, Lala Samira e o prof. Stefan andavam pela cidade em preparação - os outros da expedição estavam separados deles três. Na verdade Lala Samira também gostaria que Stefan os deixasse em paz, mas ele não percebera isso. Se queixava por causa do rosto queimado e ardendo.
Viam os encantadores de serpentes. Os músicos. As dançarinas. Um grupo de mulheres que dançavam numa roda a música alta, chamaram alegremente Lala Samira, que aceitou, hesitando um pouco em deixar Quatre sozinho - pois Stefan já se afastara, avançando na comida.
Fazia tempo que a professora não dançava num desses festivais típicos, que tanto amava quando menina. Mas não perdera a experiência: o corpo esguio continuava movendo-se como uma serpente.
Quatre se sentou na ponta de uma comprida mesa, lotada de frutas. Já sorria, vendo a alegria contagiante das pessoas ao redor. A música tinha um ritmo agitado e alegre, tão lindo, igual ou até melhor que aquela tocada pelo Maganac em dias de festa.
Ficaram quase uma hora lá. Com o sol já escondido, a cidade começava a ficar mais fria.
Quatre contemplava as pessoas à volta. Estando com sono, se levantou, indo procurar a tal hospedaria em que ficariam esta noite. Começou a andar por entre as pessoas, a cabeça novamente voltando ao Maganac.
Sentiu uma mão em seu ombro. Se virou, vendo que era um garoto alto mas com cara de criança. Estava ofegante e com o rosto vermelho: correra muito? Parecendo assombrado, sibilou:
O senhor é Sid Asid, não é? o garoto perguntou falando ao ouvido dele. O senhor é?
O que houve? Quatre perguntou de volta. Não iria responder, a não ser se.
Têm forças militares vindo aqui. Forças militares! Ouviram falar que o senhor estava aqui, e querem vê-lo, agora mesmo.
A OZ II! Mallaica teria se zangado com ele?
Disseram estar sem paciência! disse o garoto, como que querendo mostrar que a cidade talvez corresse perigo.
Mas... é a OZ II?
A música estava muito alta. O garoto não ouviu.
Quatre correu com ele pelo festival, embora não soubesse o que poderia fazer, temendo estar sozinho diante da OZ II. Um aperto grande. Teria menos medo se quarenta homens treinados e fiéis estivessem ali com ele. Na verdade, não teria medo nenhum.
Mais uma mão no ombro de Quatre. Dessa vez era Stefan.
Sr. Winner?
Seguiu-o, embora Quatre o mandasse ir embora. O resto das pessoas não pareceu perceber que eles saíam, ou que a OZ II estava fora, mas não distante da cidade. E impaciente?
Avançando para fora da cidade, o frio os foi invadindo. Saindo dela, pisando sobre a areia do deserto, os viram ao longe.
Céus! Stefan exclamou. Mobile Suits!
Dezenas dele, num grupo afastado, semi escondido por dunas altas. Um grupo de pessoas, não distantes, esperavam por Quatre e pelo garoto. Sid Karim Asid! um dos homens exclamou quando chegaram, aliviado. Então era verdade que o senhor estava aqui. Esta aqui é a comandante.
Ah, por Alá! Quatre exclamou, de uma maneira de raramente se expressava.
Comandante Noin, o homem ia dizer.
Por Kitsune-Onna