Relena acordou, assustada.

Não sabia porque, mas tinha a impressão de que o prazo para enviar apoio à revolução havia acabado. Talvez fosse apenas o sono agitado e confuso.

A pequena faixa de luz que entrava pela janela vazada ainda não aparecera. Provavelmente o sol não tinha nascido.

Era mais cedo do que ela esperava. Heero ainda dormia profundamente ao seu lado!

Estavam bastante afastados um do outro, devido ao tamanho da cama. A expressão dele mostrava que o sonhos também não eram tranqüilos. Estava deitado de bruços, as costas subindo e descendo no ritmo lento da respiração.

Relena se levantou. Apagou o abajur. O ruído que fez nesse momento foi o suficiente para Heero acordar.

Ele ergueu os olhos para ela, em pé ao lado da cama.

Decidiu?

Decidi.

206 A.C.

27

A Traição de Clermont

Heero riu.

Mas que astuta! Teve essa idéia ontem?

Tive, sim! ela estava satisfeita simplesmente com o riso dele, o plano fosse ou não fosse absurdo. Me lembrei que já era hora de contribuirmos, assim como Clermont sempre contribuiu com qualquer guerra em grande escala.

Contornou a mesa de sua sala, sentando-se na cadeira.

Eu sei que pode não parecer muito ético usar algo tão nobre para nossas próprias ambições, mas isso é pelo bem de todos, não? ela brincava com a caneta entre os dedos, olhando o dia belo e frio pela janela. E depois faço algo para compensar.

Heero confirmou com a cabeça.

O plano de Relena consistia em usar um navio tradicional de Clermont que sempre ajudava os civis das nações em guerra, levando até eles mantimentos. Mandando esse navio à necessitada Arábia, ele supostamente seria saqueado pelos revolucionários. Essa era a melhor maneira que Relena encontrara para levar os alimentos e medicamentos que a conturbada revolução certamente precisaria, segundo os pedidos de Lala Samira.

E, por enquanto, é claro que Aurey Mallaica não vai precisar saber de nada. ela completou. Mesmo que fique um pouco suspeito, não é o mundo inteiro que vai pensar como ele... olhava para o teto. Mas se Clermont não mandasse nada a crítica mundial começaria a questionar. Então...

Depois de raciocinar um pouco, olhou para Heero.

Mandarei em três dias. Lala Samira vai contactá-lo de novo, não vai? Avise a todos que se preparem.

Passaram-se alguns dias, e a revolução estava cada vez mais pressionada. Estavam começando a sofrer ataques da massa civil insatisfeita com aquela guerra, e, embora fossem fáceis de conter, eram bastante problemáticas.

Também haviam conflitos internos no exército. Cada vez mais soldados queriam que a revolução tomasse um rumo definitivo. O ano chegava ao fim, já faziam quatro meses que haviam chegado à Terra e haviam vários protestos dizendo que a verdadeira revolução teria que acontecer logo. As tropas da OZ II estavam cada vez menos vigilantes, aparentemente convencidas de que os rebeldes terminariam por acabar uns com os outros.

Diziam que Zechs Marchise estava pronto para se render. Que ele viera à Terra sem objetivo nenhum, sem nada a perder além da vida errante que levava. Ele não avançava!

A imprensa mundial divulgou o navio St. Anne, que saíra de Clermont rumo à Arábia, e que mais tarde iria ao leste da África também – as regiões mais afetadas. Alguns diziam que Relena Peacecraft iria entregar os mantimentos ao exército rebelde, e não à população, mas não passava de boato de quem não apreciava Peacecraft desde quando ela ainda era muito jovem, à frente do reino de Senk.

Chegou enfim, o navio.

Era madrugada nas terras próximas à Índia, para onde o exército havia avançado. Passando por aldeias cada vez mais numerosas, a revolução era novamente risco à população civil, o que impedia a OZ II de fazer qualquer movimento. Não havia civis revoltados ali como houveram nas terras árabes, ali a população parecia ser um pouco mais dócil, ou, pelo menos, desinteressada.

Metade dos soldados permanecia acordado em vigia, mais que o habitual, desde que receberam o aviso do homem de Clermont – que muitos afirmavam ser Heero Yuy.

Alguém entrou nos aposentos de Zechs.

O navio, comandante.

Zechs não disse nada. Apenas prosseguiu com o subordinado.

Como estava quente aquela noite, diferente da noite no deserto. Os dias desde que chegaram ali foram sofridos. Depois do dia quente que muitos dos soldados ainda não estavam acostumados, ao invés do frio da noite árabe, vinha o calor da noite indiana.

Lala Samira informara a Heero que direção eles estavam tomando e a que velocidade viajavam, para serem encontrados. Também destruíram alguns lugares civis naquela região, para atrair o navio exatamente para lá.

No mar completamente escuro estava o monte de luzes longínquo, que era o navio se aproximando da costa. Poucas pessoas dentro dele sabiam o que realmente estava acontecendo. Para a maioria, seria mesmo um ataque-surpresa.

Zechs se encontrou com Duo, Trowa e Quatre, que permaneciam em pé a poucos metros da praia.

Tem certeza de que Relena ordenou mesmo aquilo? perguntou apreensivo ao chegar perto deles.

Sim, Heero mesmo disse. Quatre também parecia nervoso. Mas foi uma boa idéia, não foi?

Eu gostei! Duo sorriu. Até que enfim a gente sai dessa joça e luta do lado da elite. tanto Quatre quanto Zechs o encararam friamente, mas ele não notou. E aí? Vão atacar primeiro?

Atacaremos, depois eles mesmos virão. Zechs procurava por Noin com o olhar. E então, vocês três, mais a Lala Samira, serão levados secretamente para dentro do navio.

Não gosto dessa idéia. Trowa falou pela primeira vez naquela noite Me sinto fugindo do campo de batalha.

Acho que nós três lutaremos melhor longe desse campo de batalha. Quatre sorriu.

As ordens passadas por Heero haviam sido claras: devem seqüestrar aquele navio e roubá-lo, depois deixá-lo voltar para Clermont com os pilotos Gundam e os professores. O prof. Stefan preferira ficar, apaixonado que estava por aquela revolta.

Noin enfim apareceu, o rosto vermelho de calor.

Está bem próximo agora, Zechs.

Ótimo. É agora.

A ordem foi dada: dezenas de MS saíram do continente e foram a alto-mar, assaltar o navio. Embora o St. Anne tivesse seu sistema de proteção, com canhões, o ataque foi tão de imediato que logo ele teve que se render. Os depósitos, cheios de alimento e remédios, logo foram invadidos.

Um tempo depois, na praia, os cinco observavam.

Boa idéia, essa aí. disse Duo para quebrar o silêncio. E então, Quatre? Quando a gente entra?

Agora. surpreendeu-o Quatre, indicando o mar. Um vulnerável barco os esperava no mar agitado por causa dos ataques. Tomara que seja seguro... ele riu um pouco. Sim, é esse mesmo.

Virou-se para Zechs, apertando a mão dele.

Boa sorte, comandante, voltaremos em breve.

Obrigado. Zechs retribuiu. Quero que agradeça Relena por mim. Meus soldados irão ficar satisfeitos.

Quatre depois cumprimentou Noin com o mesmo respeito, e depois já foi chamar Lala Samira, escondida até então. Enquanto Duo e Trowa também se despediam, um dos homens do pequeno barco na praia desceu, apressado e tropeçando.

Por favor, os Gundams também. vendo que não entenderam, ele acrescentou. Há um compartimento embaixo do St. Anne em que será possível amarrar os Gundams. Por favor, os Gundams devem ser levados também.

Meia hora depois, todos partiram.

O que você fez?! Relena deu um salto.

Quem me obrigou a dormir na sua cama foi você.

Engraçadinho, não é isso... Quero dizer, mandou trazê-los até aqui?

Heero fingiu que não a ouviu, e ficou a contemplar um pouco mais a vista maravilhosa da sacada do quarto.

Relena se levantou da cama e foi até ele, nervosa. Segurou-o no ombro e virou-o, fazendo-o ficar de frente para ela. A princípio Heero se assustou com o movimento brusco, mas depois ignorou.

Por que isso?

Por que está questionando tanto? Heero franziu o cenho, demonstrando uma suave irritação. Você nunca questiona as coisas que eu faço.

Não, nunca, mas poderia ao menos ter avisado! Afinal, a idéia foi MINHA.

Convencida de que não adiantaria mais e de que sua insistência era infantil, Relena voltou à cama, se estirando no cobertor macio. Olhou para Heero, que voltara a olhar a vista marítma da janela.

Meu irmão vem também? perguntou preguiçosamente, olhando no relógio. Era manhã de domingo.

Não. Só os pilotos.

O que vai fazer com eles aqui?

Eu, nada. Não sou o comandante deles. virou o olhar para Relena, com um quase sorriso. Mas sei que os pilotos Gundam vão agir melhor se separados de toda aquela gente. O próprio Wuufei já fugiu de lá faz um tempo.

Vocês vão trabalhar juntos?

Talvez. Essa ditadura do Mallaica é um tédio. ele mantinha um ar relaxado, enquanto a encarava. Não é como os tempos do Treize Khushrenada, oscilantes. Precisamos tirar aquele garoto do poder o quanto antes. e, sério, falando consigo mesmo, completou. E preciso ajudar as Colônias... quase me esqueci das Colônias...

Relena não disse nada.

Nos dias que se seguiram, rumo ao fim-de-ano, Heero passou horas trancado em sua sala de computadores. Os alunos, sim, estranhavam a ausência do excelente professor de estratégia militar, que na verdade não tinha função determinada em Clermont mas acabava por ensinar nas horas vagas os alunos mais curiosos. Relena preferiu não procurá-lo. Heero ainda vinha toda noite dormir em sua cama, mas muito tarde, quando ela já estava dormindo – acordava com os ruídos que ele fazia, e tornava a dormir quando ele se deitava. Foram três noites assim.

Na quarta noite, Relena estava acordada quando ele voltou.

Ainda acordada? ele perguntou ao entrar silenciosamente no quarto.

Impressionou-se com a expressão de contentamento de Relena. Ela, que estivera na sacada olhando o mar, foi até ele e puxou-o até lá, mostrando o oceano negro. No fim dele, luzinhas distantes indicavam a aproximação de um navio.

Até que enfim. ele suspirou, enquanto ela comemorava.

Era tarde da noite naquela Colônia, próxima à Lua.

As Colônias haviam voltado ao seu espírito pacífico de outrora. Desistindo de insistir contra a OZ II, os pequenos grupos rebeldes iam aos poucos se dissolvendo, e, através de acordos e tratados, os líderes das Colônias conseguiram trazer o apoio da OZ II de volta ao Espaço. Desde que não quisessem interferir na política, nem reclamassem do controle exercido pela OZ II, teriam de volta o abastecimento terrestre.

Embora a maioria tivesse se rendido, alguns revolucionários ainda apostavam na resistência contra o domínio da OZ II. Entre eles estavam as duas mulheres que conversavam naquela sala daquela Colônia, tarde da noite.

Uma era engenheira de MS, perseguida pela OZ II nas Colônias. Eleni Daaé, reconhecida nas Colônias e na Terra, uma das mentes mais brilhantes desde os inventores dos Gundams. Ao lado dela uma prisioneira, agora sem importância às Colônias, mas antes quase condenada à morte. Sally Po, antigo membro da Aliança, antes também mundialmente reconhecida.

Torne-se um pouco mais grata. resmungou Daaé, franzindo o cenho em ameaça. Gostaria, querida, que não se esquecesse de quem a libertou de sua prisão. Ficaria 20 anos presa, até ficar velha e mais feia do que já está.

Sally, que até então estivera discutindo, calou-se. Sentada, de cabeça baixa, via-se mais uma vez sob o controle de outra pessoa.

Que novidade fungou consigo mesma.

O que disse?

Nada, madame. E então, o que decidiu?

Eleni andava de um lado para outro, calmamente, enquanto refletia. Virava os olhos para as janelas, de onde era possível ver o espaço, depois encarava Sally, depois as próprias mãos, analisando o comprimento das unhas bem-feitas. Por fim, disse:

Primeiro, quero que me conte todos os planos da Operação Meteoro organizada pelo Zechs Marchise ano passado. Preciso saber de detalhes.

Pois não. respondeu Sally com um sorriso. Mas já aviso que não sei todos os detalhes. Quem sabia eram ele e a comandante Lucrezia Noin, acho que já ouviu falar dela.

Oui, claro.

Pois bem, então só sei o mesmo que os oficiais de alto escalão das forças rebeldes sabiam. Sally apoiou os cotovelos nos joelhos, pondo o rosto entre as mãos. Vou lhe contar tudo, madame. Era só isso?

Não.

Eleni puxou uma cadeira para se sentar à frente da entrevistada.

Por que trocou o movimento pelo Aurey Mallaica? perguntou gravemente.

Ah, de novo, não!

Responda!

Sally estalava os dedos com nervosismo, embora encarasse Eleni com frieza.

A senhora não vai me denunciar, vai? Me disse que planeja ir para a Terra. Vai me levar junto com a senhora?

Você seria um prejuízo por lá! riu Eleni, com ar zombeteiro. Mas, sim, vou levá-la, se cooperar. Há muitas coisas que você precisa esclarecer para mim, meu bem.

Sally começou a contar tudo, em detalhes, aparentemente sem se interessar em esconder algo da entrevistadora. Todos os planos de ataque que sabia, daquela operação organizada em 205 A.C., contou tudo – mas nada foi novidade a Eleni. Por fim, disse que sabia que a revolta não abalaria Aurey Mallaica, e que, apesar de apoiar os interesses dele, e os seus próprios, também pensara na segurança de Zechs, Noin, os garotos dos Gundams. Por que os expusera a esse perigo? Sally alegou supor que eles não poderiam ser derrotados por tropas comuns, se até aos Mobile Dolls do passado os Gundams resistiam. Era isso.

Ao fim da narrativa, Eleni parecia insatisfeita. Ainda olhando para as unhas, tirando uma pequena lasca de imperfeição, concluiu:

Seus argumentos estão vagos, querida.

Sally não respondeu. Esperou que aqueles olhos claros sem expressão a encarasse, e Eleni completasse:

A quem mais contou essa história.

Sally mordeu o lábio inferior.

Fale o que quiser. É isso, e me sinto culpada, admito.

Eleni se levantou, voltando a olhar para o espaço pela janela.

Durante o tempo em que esteve presa, Sally querida, houveram três tentativas frustradas de tentar libertá-la. Os homens que fizeram isso foram identificados como soldados quaisquer. Ninguém sabe os motivos, ainda. Suponho que eram seus amigos, também.

Eram.

E quem eram?

Ninguém importante. Sally jogou os cabelos para trás. Eram simplesmente amigos, que não queriam me ver presa.

Ah, mas há outro detalhe! sorriu Eleni, pondo os olhos em Sally mais uma vez. Ficou provado que todos eles nasceram na Terra.

Nasceram. Sou da Terra, só tenho amigos da Terra.

Eleni confirmou com a cabeça.

Certamente. após mais uma pausa, continuou. Bem, há mais coisas em que você pode me ajudar, minha querida. Venha, temos muito o que fazer ainda hoje... Aff, veja, minha unha quebrou.

Por