Capítulo 02 – Conselho Tutelar.

- Então? Como é que isso funciona? A Dark anda por aí recrutando pessoas com "habilidades especiais" para resolver problemas causados por monstros sobrenaturais? - Durante o trajeto cheio de solavancos na van, Marcos tentava começar uma conversa descontraída com os seus colegas.

- É, algo por aí. - Respondeu Bruno, que estava sentado do outro lado do veículo. - Mas temos algumas exceções, como nosso amigo Timóteo aqui. Ele só é bom com os seus facões. - Timóteo era bem ruim de conversa e não respondeu nada. O seu grunhido, no entanto, sugeriu que ele não havia gostado da citação. O agente era curioso, não usava armas de fogo, preferindo portar suas armas brancas. Parecia deslocado no tempo, vestia inclusive um gibão de couro. Se não fosse pela ausência do chapéu de cangaceiro, ele bem que podia passar por um cosplay de Lampião.

- E você? - Perguntou Michele, uma ruiva que Marcos teve que fazer esforço para não ficar encarando. Ele a achava muito atraente.

- Comparado com mira perfeita, eu não sou lá grande coisa. - Respondeu Marcos, tentando transparecer modéstia sincera. - Fui rotulado de corpo fechado. Basicamente sou um repelente de balas.

- Vou me lembrar disso. Durante a missão vou ficar bem pertinho de você. - Marcos chegou a interpretar aquele último recado como algum tipo de flerte. Não tinha certeza, uma parte dele chegou a conclusão de que sua carência estava interferindo no seu discernimento.

Tentando se isolar o máximo possível, bem no canto da van, Bento checava a sua prótese ocular com um espelho. Devido ao implante cibernético, a sua visão passou a ter precisão digital. Bento tentava se convencer de que aquela opção era melhor do que perder metade da visão, porém, seu lado instintivo, desejava arrancar aquela prótese. Ela lhe parecia um intruso, um corpo estranho.

A van estacionou. - Muito bem, garotos. - Disse Gael, o motorista. - É hora do show. - O veículo passou pela portaria, entrou no condomínio e estacionou perto do prédio onde o incidente ocorreu. Próximo a entrada, o funcionário que fez a chamada de ajuda os esperava. Os policiais saírem da van e o homem os guiou até o apartamento problemático. Mesmo do lado de fora dava para perceber o fedor que exalava de lá. Os agentes pediram que o funcionário se afastasse e prepararam suas armas. Após Gael arrombar a entrada com um chute, cada oficial tomou uma posição. Eles estavam atentos a tudo, nem mesmo a poça de sangue e órgãos no chão da sala os distraiu. Não podiam baixar a guarda, Afinal haviam chances do monstro causador daquela tragédia ainda não ter ido embora.

Michele foi a primeira a notar que aquele apartamento tinha um quarto de criança. Talvez movida por um instinto maternal, ela correu para o cômodo deduzindo algo que logo seria comprovado. Sentada no chão, abraçando os próprios joelhos, a criança mantinha um olhar fixo na parede e não reagia a nada. Nem mesmo à invasão dos policiais. Michele ajoelhou na frente da menina, para ficar no mesmo nível dela, e tentou se comunicar. A criança não falava uma só palavra. - Quem fez isso? - Perguntou Michele aos seus colegas, indignada. Bruno, que foi o próximo a entrar no quarto, respondeu.

- Gael acha que foi efeito de algum feitiço estuporante. - Era meio obvio que Gael seria o primeiro a chegar a uma resposta, ele era o mais inteligente do grupo. A Biblioteca Viva, como o chamavam. Quanto a Michele ela só faltava se contorcer de raiva. Ela nunca foi muito fã de magos, bruxos ou feiticeiros, casos assim só reforçavam sua perspectiva.

Marcos Mignola achou que seria mais produtivo dar uma conferida no outro quarto, que era de um adulto. As fotos dos porta-retratos denunciavam que viviam ali somente mãe e filha. O nome da criança Marcos conseguiu ao checar o verso de uma foto. "Jéssica, você é o amor da minha vida". Como sempre fazia quando investigava um local de crime, Marcos buscou por alguma arma escondida. Quando o policial era criança, o seu pai também escondia uma. Sendo assim ele passou a prestar atenção onde as pessoas costumavam esconder aquele tipo de coisa.

- Irmãozinho, olha só o que eu achei! - A memória de Marcos o levou até o dia em que seu irmão mais velho pegou escondido a arma do pai. O agente balançou a cabeça levemente para levar aquelas lembranças embora com o gesto. Ele precisava se concentrar no presente.

A caixa de sapatos colocada em um canto alto do armário chegava a ser um clichê. Marcos esperava encontrar um revólver ali dentro, não foi o caso. De aproximadamente vinte centímetros, o objeto parecia um graveto, mas era preto e muito bem ornamentado. - Isso é uma varinha de bruxo. - Disse Bruno, que entrou no quarto sem se anunciar. - Pelo visto a dona do apartamento é uma bruxa.

- Ela foi a vítima ou é uma assassina que deixou a filha pra trás? - Marcos não acreditava muito na última hipótese que levantou. Ele sentiu muito amor materno vindo daquelas fotografias.

- Um grupo de peritos foi convocado, eles devem responder essa pergunta. Quanto a menina, chamamos uma equipe médica.

Michele decidiu acompanhar Jéssica na ambulância. Marcos foi junto, mais para apoiar sua colega do que por uma preocupação genuína com a menina. A ambulância já estava na metade do caminho para o hospital quando um homem surgiu no meio da estrada. Ele estava vestido de bata e todo de branco. Em sua mão direita havia uma varinha similar àquela que Marcos encontrou no apartamento. Assim que percebeu isso, ele ficou logo com o pressentimento de que algo muito ruim ia acontecer.

O suspeito apontou sua varinha para a ambulância e a desgrudou do chão. O veículo flutuou até uma altura considerável e fez um movimento de arco. A ambulância sobrevoou o bruxo e caiu atrás dele. Com a queda, a ambulância ficou de cabeça para baixo. O impacto deixou tudo bagunçado e fora do lugar. Inclusive os profissionais, que caíram de maneira troncha, como bonecos articulados jogados de qualquer jeito.

- Deve ser o bruxo assassino que veio terminar o serviço! - Disse Michele enquanto se recompunha da queda e preparava sua metralhadora. Ela abriu as portas do fundo da ambulância e, assim que conseguiu ficar ao ar livre, descarregou sua munição no bruxo. Ele respondeu com apenas um gesto e uma palavra de comando que ninguém ali entendeu. Ele havia invocado uma magia que transformou as balas em perfume.

Os policiais não eram o alvo principal do bruxo, mas, como Michele havia tentado matá-lo, ele voltou sua atenção a ela. - Cuidado! - Gritou Marcos assim que ele viu o bruxo apontar sua varinha para Michele. O raio saído da varinha havia sido mirado para ela, mas como Marcos se pôs na frente dela, ele que foi atingido. Os dois policiais ficaram quietos, esperando uma tragédia acontecer. No fim das contas perceberam que o feitiço havia sido ineficaz. Marcos deu uma risada de alívio. - Que modo estranho de descobrir que também tenho corpo fechado para feitiços!

Marcos caminhou calmamente na direção do bruxo, ignorando todos os raios luminosos que o sujeito jogava nele com sua varinha. Assim que ficou perto o bastante, Marcos deu um soco no queixo do seu adversário com vontade. O policial chegou a achar engraçado o modo como o bruxo despencou teso no chão.

O tempo passou, e antes que os envolvidos percebessem, uma semana já havia se passado. - Então o seu nome é Sandoval, né? - Perguntou Gael. Na sede da Polícia Dark havia uma área reservada à detenção. Ela não precisava ser tão grande quanto uma penitenciária, pois a maioria dos desafetos da organização eram monstros (então não havia problema em serem abatidos na hora). Um bruxo, apesar de ter características próprias, ainda podia ser considerado humano. - Gostou do tratamento que nós oferecemos a assassinos de crianças? - O bruxo estava preso em uma cela feita para conter o seu tipo de magia. Não que isso fosse um desafio, já que sem sua varinha ele basicamente ficava indefeso. O seu rosto estava inchado e roxo, alguns dentes o haviam abandonado.

- Aquela criança endiabrada foi capaz de matar a própria mãe. Ela é uma ameaça. - Por causa dos dentes que lhe faltavam, Sandoval falava um pouco sibilante.

- A menina mal tem oito anos! Você quer que eu acredite nisso?!

- Ela é uma psicopata com expressivos poderes mágicos. Mais cedo ou mais tarde ela… - O prisioneiro foi interrompido por Michele. Ela entrou na área de detenção no intuito de informar Gael sobre um acontecido.

- A menina, ela… - A voz de Michele estava embargada de emoção. - Recebemos a ligação de um sobrevivente. A menina massacrou a família que a adotou. - Desde que pôs os olhos em Jéssica, Michele a tratou como uma criança que precisava de cuidados. Ter esse ponto de vista desmentido a deixou com um sentimento confuso, uma mistura de culpa com raiva motivada por uma traição.

- Viu, "gênios"?! - Disse Sandoval. - Só porque vocês não resistiram a um rostinho fofinho, agora temos uma bruxa psicopata a souta. - Gael pôs o seu polegar direito no leitor da tranca digital da cela, fazendo com que ela abrisse. Michele e Sandoval ficaram perplexos sem entender qual era sua intenção.

- Alerte os agentes, Michele. - Disse Gael. - Temos uma bruxa perigosa para caçar. Sandoval agirá como… - Ele fez uma pequena pausa enquanto procurava o termo certo. - Um especialista contratado.

Assim que recuperou sua varinha, Sandoval tratou logo de remendar o estrago feito em seu rosto. Ficou novo em folha, para a raiva daqueles que implementaram o castigo físico. Na operação, o bruxo funcionava como um segundo em comando, atrás só de Gael. Não foi muito difícil encontrar Jéssica, bastou seguir o rastro de corpos estilhaçados. A menina foi pega no ato, em um beco escuro frequentado por viciados. Os agentes e o bruxo testemunharam três pessoas tendo seus corpos explodidos por dentro, como se houvesse uma bomba no interior deles. Do ataque restou apenas sangue e órgãos espalhados pelo chão.

As armas estavam apontadas para a criança, mas nenhum dos agentes teve a coragem de efetuar o disparo. Ela poderia ser um monstro, mas ainda tinha menos de dez anos. - Tudo bem. - Disse Sandoval. - Basta um feitiço simples e isso acabará sem dor.

- Não! - Michele abriu os braços e ficou entre o bruxo e a menina. - Ninguém vai tocar nela!

- O que está fazendo? - Perguntou Marcos.

- Eu vou cuidar dela. Eu assumirei a responsabilidade de criá-la e livrá-la do mau caminho.

- Você está doida?! - Gritou Gael. - Ela pode te desmembrar só com um pensamento.

- Talvez isso possa dar certo. - Interveio Sandoval. Com um gesto de sua varinha, ele fez aparecer uma pulseira prateada em sua mão esquerda. - Essa pulseira é feita do mesmo material da cela da Polícia Dark. Isso conterá a magia da menina, ao menos por enquanto.

Michele pegou a pulseira da mão do bruxo e andou calmamente na direção de Jéssica. Com uma voz infantilizada, ela explicou que seria sua nova mãe e que não deixaria nada de ruim lhe acontecer. A criança parecia atípica, não falava e evitava contato visual. Enquanto a agente colocava a pulseira no punho esquerdo da criança, Sandoval partiu em um teleporte, mas não antes de deixar um aviso para Gael. - Não pense que eu vou esquecer do tratamento humilhante que a sua agência me fez passar. Esperem uma reprimenda em breve.

Naquela mesma noite, Michele levou Jéssica para sua casa. Depois que a colocou para dormir, foi até o seu quarto tratar do seu próprio sono. No meio da madrugada Michele acordou sobressaltada, vítima de um pesadelo. Sua primeira reação foi correr até Jéssica para conferir se estava tudo bem com a menina. Não havia nada de errado. Mesmo assim Michele continuou inquieta, a imagem do seu sonho não saiu de sua mente. A sombra de uma criança com uma faca na mão. Quando a agente foi para a cozinha, para tomar um copo d´água antes de dormir, ela notou que no mostrador faltava uma faca.

XXX Bestiário XXX

*Bruxo (a): pessoa com poderes mágicos adquiridos por nascença, por estudo de feitiçaria ou através de algum pacto. Pra utilizar sua magia, eles geralmente usam um objeto para servir como condutor do feitiço. Na maioria dos casos, o objeto condutor é uma varinha ou anel. Porém, há bruxos que não precisam de nada disso. Um nascido bruxo tem expectativa de vida-longa, alguns conseguindo ultrapassar séculos. Aqueles que ganharam poderes mediante estudo, também conhecidos como bruxos teóricos, tem habilidades mais sutis, não podendo soltar raios ou lançar bolas de energia. E, por último, os bruxos que ganharam poder através de um pacto com uma entidade, precisam "pagar o contrato" para exercer suas habilidades místicas. Esse "pagar o contrato" é sempre algo que o bruxo (ou contratado) em questão deteste. Por exemplo, há um caso em que o contratado tem que comer cigarro para usar seu dom, em um outro o bruxo tem que experimentar a dor da quebra de um dos seus dedos. Varia muito.