Capítulo 2 – Filhos de Zeus!

O tempo tinha passado depressa, e quando dei por mim tinham passado dois anos. Estava uma mulher, e a minha ordenação como sacerdotisa de Afrodite foi um motivo de grande alegria no Santuário. Fiquei feliz por um lado e preocupada pelo outro. Agora que ia deixar Chipre, podia passar mais tempo com os meus irmãos; mas o que encontraria em casa deixava-me nervosa. Shion deixou-me encarregada de supervisionar o pequeno Templo de Afrodite que existia no Santuário. A devoção à Deusa da Beleza permitia-me manter a sanidade mental.

Quando estava em casa, tentava ignorar tudo o resto para brincar com os meus dois querubins. Saga era o mais tranquilo, e extremamente sensível. Se lhe ralhavam, ficava triste que só visto e encolhia-se num canto horas a fio. Kanon era um diabrete, que adorava arreliar o irmão. Alcíone estragava-os com mimos, e a minha mãe, embora não cuidasse deles, tinha sempre tempo para lhes pegar ao colo e os beijar. Eram as crianças mais lindas e meigas que se pudesse imaginar, com olhos enormes que brilhavam como pedras preciosa, e carinhas perfeitas. Os cabelos azulados – que o meu pai nunca deixava cortar – desciam à altura dos ombros, em suaves caracóis.

Eles eram doidos por mim, e pediam-me muitas vezes que os deixasse dormir no meu quarto. Numa noite de Inverno tempestuosa, estávamos os três profundamente adormecidos (Saga agarrado a um urso de peluche e Kanon a chuchar no dedo, com medo dos trovões), quando fomos despertados pelos gritos lancinantes da minha mãe e o percorrer precipitado de passos. As crianças, aterrorizadas, armaram imediatamente um berreiro. Tentei acalmá-las, enfiei apressadamente um robe e corri para o salão. A casa estava cheia de gente, incluindo os cavaleiros de ouro. O temporal tinha mandado abaixo a luz eléctrica, pelo que todos seguravam tochas. No centro da sala, vi a minha mãe a chorar, agarrada à urna da armadura de Gemini. O meu coração parou de bater. Pensei que o meu pai tivesse morrido.

Mas não tinha. Acontecera uma coisa ainda pior: ele tinha desertado, para fugir com uma cortesã italiana. Há já algum tempo que esse caso durava, mas nunca esperáramos que fosse acabar assim. A deserção era crime, punível com a morte, e acarretava desonra para a família inteira. O porquê? Soube-o mais tarde. Pela boca da profetisa do Santuário… Uma notícia ainda mais terrível do que pudera supor. Zeus seduzira a minha mãe. Saga e Kanon não eram filhos de Eros! Saga e Kanon, filhos de Zeus!! Pelos vistos, o meu pai só descobriu anos mais tarde, no Oráculo de Delfos. Foi nessa altura que decidiu fugir. Ele, que tantas vezes fora infiel, não suportara ter Zeus como rival. Tremi de pavor. Os meus irmãos…semideuses. Como poderia conduzi-los?

O meu pai planeara bem as coisas: nunca mais foi encontrado. E a vingança de Hera não se fez esperar. Desde esse dia, o estado mental da minha mãe piorou tanto que ela teve de receber tratamento numa clínica psiquiátrica. Ia e voltava, e de cada vez, se mostrava mais distante da realidade. Uma noite, eu e Alcíone ficámos geladas de terror: ela tentou sufocar os pequenos com uma almofada. Porém, a sua beleza não se alterava. Perdera muito peso, mas continuava tão bela, que com o olhar assim perdido, parecia uma pintura dos anjos. Shion, preocupado com a nossa segurança, aconselhou-me a mandá-la de volta para a clínica. Não tive coragem de fazer tal coisa. Tentava dar-lhe todo o carinho, mas era inútil: nos últimos tempos, já não me reconhecia. Julgava-se em Paris, durante a adolescência, indo a bailes com os seus numerosos pretendentes, e passava o dia ao espelho, maquilhando-se e experimentando os seus belos vestidos, até cair de exaustão, esperando que o meu pai entrasse pela porta a qualquer momento. Apenas uma vez, me abraçou e me disse com voz angustiada:

-Se os teus irmãos se tornarem cavaleiros será uma desgraça! Acredita em mim! Há uma maldição que pesa sobre esta família! Impede-os, Medeia, impede-os… – teria ela razão?

O meu avô ainda era vivo, e escreveu-me pedindo que a levasse de volta para França, onde ele se encarregaria dela. Porém, os deuses não quiseram que isso acontecesse. A minha mãe suicidou-se, atirando-se do alto do Cabo Sounion. Teve o destino de todas as mortais que se atrevem a despertar ciúmes na Rainha dos Céus! E a sua terrível vendetta ia estender-se aos meus irmãos, pobres inocentes…

Foi um rude golpe para mim, e pensei que não voltaria a sorrir. Que dó ver os meus irmãozinhos sem pais. Eram ainda muito pequeninos, mas apercebiam-se de que algo não estava bem, e as saudades da mãe eram terríveis. Começaram a fazer perguntas embaraçosas sobre a morte. Durante a noite, via-os muitas vezes, com os seus pijaminhas brancos, uma lanterna de pilhas debaixo dos lençóis, de mãos dadas como era seu hábito, temendo que o fantasma da nossa mãe os viesse buscar para os arrancar dos treinos…

Certa vez, Alcíone veio ter comigo em lágrimas.

-Ai menina, que esta família está desgraçada!

-O que temos agora, ama? – Perguntei.

-Foi o menino Saga, que veio ter comigo à cozinha hoje depois do jantar. Julguei que me viesse pedir para rapar a massa dos bolos das taças, como gosta tanto; mas ao invés disso, Zeus nos valha, ele senta-se num saco de batatas e começa a fazer perguntas, a pedir-me que lhe explicasse onde estava a mamã agora, e se ela estava no Hades…

- E que lhe disseste?

- Que quer que eu lhe tenha dito, menina! Pois então, respondi o melhor que sabia, que a mamã dele era uma boa pessoa e com certeza estava nos Campos Elíseos. E ele não tem mais nada: desata a chorar que não era verdade, porque Giggars tinha dito que os que tiram a própria vida vagueiam no Vale dos Suicidas por ordem do Juiz dos Infernos! Ora, eu fiquei sem saber o que dizer; e antes que eu pudesse abrir a boca, entra Kanon e abraça o irmão, jurando que um dia vai ao Hades matar esse juiz! Palavra, que eles não são como as outras crianças! Fiquei toda arrepiada, e mandei-os para a sala com uma taça de biscoitos, dizendo-lhes que não proferissem mais blasfémias por hoje! Até estou com o estômago embrulhado. Por Hera! Os Deuses nos livrem de todo o mal…

Dei uma palmadinha amigável no ombro da boa Alcíone e fui espreitar como estavam Saga e Kanon. A luz alaranjada da lareira batia-lhes nos rostos, e os dois riam já de uma história que Saga lia num livro de contos. Muito juntinhos, muito amigos, com os cabelinhos desalinhados, assemelhavam-se a gatos persas bebés, piscando os olhitos por causa da pouca luz. Acendi um candeeiro para que não estragassem a visão, e deixei-os ficar.

Eu estava no limite dos meus nervos, de tal forma que decidi passar a noite no templo. Todas as outras sacerdotisas tinham saído já, com excepção de Hulda, a profetisa do santuário, que estava na sala ao lado. Deprimida e exausta de chorar, deitei-me junto da estátua da Deusa, implorando por ajuda. Acabei por adormecer. Foi então que uma luz me cegou, acompanhada de um intenso perfume de rosas. Abri os olhos, assustada, e vi na minha frente a Deusa Afrodite em pessoa. Curvei-me em silenciosa reverência.

Não chores, Medeia – disse ela – Athena chegará ao santuário em breve, mas antes virei eu, e tenho uma missão para ti. Tu foste escolhida para trazeres no ventre aquela que será a minha reencarnação, e a mais poderosa de todas até hoje! Tens de ser muito corajosa, minha querida, porque juntamente com Athena, virá Ares, o Deus da Guerra, com sede de sangue; e será missão da tua filha equilibrar os dois pólos.

Mas senhora – respondi, ainda trémula – eu não tenho namorado sequer, como pode acontecer uma coisa dessas?

-Eu indicar-te-ei o meu escolhido, e vocês vão amar-se, e eu renascerei do amor perfeito.

Inclinei-me até ao chão e aceitei humildemente. Afrodite desapareceu perante mim. Se não fosse Hulda ter ouvido também – ela veio beijar-me as faces com os olhos escorrendo lágrimas de alegria – pensaria que tudo tinha sido um sonho. Mas eu tinha os meus irmãos para cuidar. Enchi-me de renovada coragem e regressei a casa para substituir a minha mãe, de tal forma que quase esqueci o acontecido.

Saga e Kanon tinham agora quatro anos, e Shion ordenou o começo do seu treino. Era doloroso para mim, mas não tinha alternativa senão obedecer. Na ausência do meu pai, o Mestre designou Gerard de Leda para seu tutor. Bom, Gerard era uma personagem! Enorme, forte sem ser gordo, não era um homem bonito, mas era atraente, de feições marcadas, com um nariz um tanto grande, e pequenos olhos azuis que mostravam a sua viva inteligência. O cabelo louro, comprido e despenteado, dava-lhe a aparência de um bárbaro. Nascera em Friesland, no norte da Holanda, e era íntimo do círculo do Grande Mestre, que o respeitava imenso pela sua profunda sabedoria em termos de estratégias de guerra e pelas técnicas mortíferas que desenvolvera, e que só ensinava aos seus alunos preferidos.

Ele era considerado um dos melhores professores do santuário, mas nunca usara uma armadura de ouro por causa da sua rebeldia e feitio um tanto apatetado. Extremamente poderoso, era um bom gigante, mas muitíssimo rigoroso nos treinos. Fiquei com medo – ele era conhecido por se entusiasmar e sovar os discípulos para lhes aumentar a resistência, e, apenas nesse aspecto, era o terror dos aprendizes. Em tudo o resto, era adorado por todos, e grandemente querido pelas senhoras, que não resistiam à sua pronúncia gutural, cheia de rrr e ao seu nariz torto – defeito que devia ao meu pai, de quem era muito amigo, e que lho partira durante uma noite de bebedeira, quando tentavam provar quem era o mais forte. Divertido, amigo de comer bem e de beber melhor, não havia quem não gostasse dele.

Relutante, levei os meus dois irmãos para o conhecerem. Saga estava pronto desde as sete da manhã, com o cabelo acabado de lavar, penteado para trás com um rabo-de-cavalo, e a roupinha de treino nova em folha toda no lugar. Kanon, o dorminhoco, foi um castigo para tirar da cama; depois gritou que nem um danado para tomar banho, insistindo que não precisava, porque se ia sujar todo logo a seguir.

-Um grande guerreiro não toma banho! – Berrava ele.

- Toma sim, Kanon; Shion é um grande guerreiro. Achas que ele anda todo sujo?

-Eu não quero ser Grande Mestre, para estar sentado todo dia – protestou ele, enquanto eu tentava desesperadamente lavar-lhe a cara, suja de bolo de chocolate do pequeno-almoço, com uma esponja – Quero ir para a guerra, ganhar batalhas, partir ossos, furar barrigas…

-Eu cá quero ser Grande Mestre – disse Saga firmemente. Não soube dizer o porquê na altura, mas o meu coração deu um salto. Saga estava encostado à porta, surgido sabe-se lá de onde, e com o ar mais sério deste mundo.

Até Kanon estacou a olhar para ele.

- Saga, para seres Grande Mestre, ainda tens de comer muito pão – brinquei eu – és muito pequenino.

Ele não disse nada, e limitou-se a olhar para nós com um ar muito estranho, zangado como eu nunca o tinha visto.

- Para que é que tu queres ser Mestre, mano? – Perguntou Kanon.

- Porque gosto de estar lá em cima a mandar em todos como Mestre Shion, e quero a banheira dele!

Não me contive e comecei a rir de alívio pela ingenuidade de Saga. Tirei Kanon da água e, enquanto usava uma mão para o embrulhar com uma toalha, estreitei Saga com o braço livre e beijei-o com ternura.

-És um menino muito lindo, Saga, e serias um belo Grande Mestre.

Isto fê-lo sorrir de prazer.

-Então e eu, sou algum monte de lixo? – exclamou Kanon, ciumento.

- Serás um monte de lixo senão aprenderes a gostar de banho como o mano, mas também és um anjinho lindo!

Abraçaram-me os dois, e eu pedi a Athena que os guiasse no seu treino a partir dali. Depois de algum trabalho, encaminhamo-nos para uma das arenas, onde Gerard nos esperava.

Ele engraçou imediatamente com Kanon – levantou-o por cima da cabeça e deu-lhe várias palmadas no pescoço, como quem testa um cachorrinho de fila. Kanon ria-se deliciado e sem mostrar sombra de medo.

- Este é forte, gossshto dele, tem fibrrra! – Exclamou o Mestre.

Depois virou-se para Saga, que segurava firmemente a minha mão.

-E tu deveshh ser o Saga, estou cerrto? Macacos me morrdam, vou demorarh a conhecher os dois! São iguaizinhos!

- Eu sou Saga – disse o pequeno com voz serena, muito direitinho e olhando-o com curiosidade. Gerard apertou-lhe o nariz, e ele pareceu não gostar da brincadeira, mas não protestou. Depois, passou-lhe uma rasteira, e Saga, sem nunca largar a minha mão, equilibrou-se com uma pirueta.

O mestre mandou-os ir andando para o treino e chamou-me à parte.

- Medeia, espero conseguir treinar estes dois para a armadura de Gémeos. Eles são como duas faces da mesma moeda, não existem um sem o outro. O que falta a Kanon em ponderação, Saga tem de sobra. Olha para ele. Só tem quatro anos, e já parece um pequeno imperador, tem o parecer de um líder. Mas em compensação, Kanon é agressivo, aguerrido e impulsivo, menos terra a terra. Ambos são garotos ambiciosos. Creio que farei um bom trabalho aqui, mas tenta vigiá-los de perto. Sinto qualquer coisa no cosmos deles…

Isto preocupou-me. Olhei para aquelas crianças inocentes, andando de mãos dadas.

- Uma faceta menos boa que têm de aprender a controlar. Tenho esperança nestes dois, Medeia. Talvez lhes possa mesmo vir a ensinar a minha técnica secreta, que nunca ensinei a ninguém, e que até Mestre Shion me implora que lhe explique….

- E que técnica é essa? – Indaguei, e ele olhou para mim com o orgulho estampado no rosto.

- Chama-se EXPLOSÃO GALÁCTICA.

Espero que tenham gostado deste segundo capítulo! Para o mestre dos dois, pensei que seria bom criar uma personagem misteriosa e desregrado, que tal como eles, tivesse um carácter duplo – muito poderoso, mas muito rebelde. Inventei um guerreiro holandês, porque Friesland fica perto do lugar onde estou, e também porque acho que não há nenhuma personagem desta nacionalidade (corrijam-me se estou enganada!). Para caracterizar física e psicologicamente o Gerard, baseei-me no actor francês Gerard Depardieu, um dos meus favoritos, e também num amigo holandês que os meus pais tinham quando eu era pequena, que tinha esse nome e era enorme! É uma forma de me despedir da Holanda, porque dentro de 10 dias se Zeus quiser já estou de volta ao meu Portugal! Leda era rainha de Esparta, mulher do rei Tíndaro, e ao envolver-se com Zeus, deu à luz Castor e Pólux – os Gemini originais – e a famosa Helena de Tróia. Escrevam comentários!