Capítulo 4 – A bela chegou
Pouco tempo depois, nascia aquela que confirmava as palavras da minha Deusa. Dei à luz uma menina lindíssima, que recebeu o nome de Ishtar, ou seja, a Afrodite babilónica, Deusa toda poderosa do amor e da Guerra, que dominou os Infernos e era conhecida como a « Estrela da Manhã».
Shion não sabia da minha visão da Deusa até ao nascimento de Ishtar, quando Hulda entrou pelo salão dentro, cheia de alegria para anunciar que uma Deusa tinha chegado. Ele ficou furioso por eu lhe ter escondido tal coisa, mas eu não tinha alternativa; se lhe tivesse contado a verdade, obrigava-me a ficar no solo sagrado para protecção da criança.
Eu tinha apenas dezoito anos, e não cabia em mim de felicidade perante aquela criaturinha perfeita, cujo cosmos celestial inundou o palácio desde o primeiro momento em que veio ao mundo com um denso perfume de rosas. Assim que me recuperei totalmente do parto, o meu marido acompanhou-me ao Santuário, para que o bebé fosse reconhecido e abençoado como a reencarnação de Afrodite. Shion já não estava zangado comigo; e, na noite antes da nossa chegada, Athena falara-lhe em sonhos, confirmando a identidade da minha filha, pelo que ele se sentia duplamente satisfeito.
Instalámo-nos na Casa de Gemini, e os meus irmãos vieram a correr, saltando de contentes, para conhecerem a sua « xubrinha» (ambos tinham uma dicção engraçada nessa idade, e não pronunciavam correctamente os sss). Saga ficou a olhar para o berço, com uma expressão de imensa ternura, e acariciou o rosto dela com a ponta dos dedos.
-És uma menina linda – disse ele baixinho – quando cresceres, vou casar contigo.
Claro que não dei importância às palavras de uma criança de cinco anos. Quanto a Kanon, não gostou do que ouviu; olhou para dentro da caminha com indiferença, e limitou-se a rosnar que todos os bebés eram umas sanduíches de salame! Shion achou imensa graça, mas Kanon falava a sério; irritado, saiu da sala.
Fui atrás dele e perguntei o que se passava. A princípio não me quis dizer o que era. Depois, tomou coragem, e de um fôlego, desatou a barafustar.
- Não gosto que ela tenha nascido! Eu e Saga estamos para aqui sozinhos porque tu foste para longe! E agora tens um bebé, e gostas mais dela do que de mim e de Saga juntos; e nós treinamos e treinamos todo o dia, e agora Saga também gosta mais dela do que de mim, e pronto, já disse!
Ri-me e enchi-o de beijos. Jurei que não importava quantos filhos eu tivesse, ia sempre adorar os meus maninhos, e que a recém chegada ainda agora tinha aberto os olhos, mas já gostava muito dos tios! Mais do que tudo no mundo! Quanto a Saga, se havia uma coisa de que eu tinha absoluta certeza, era de que nada o podia fazer deixar de adorar Kanon; mais do que isso; Saga idolatrava-o. Por vezes, penso mesmo que ele se sentia inseguro, por ser mais tímido e menos afoito do que o irmão mais novo.
Regressámos à sala, e Saga já andava de um lado para o outro com Ishtar ao colo. Passámos um Natal esplêndido todos juntos, e uma vez que Dorian precisava de estar algum tempo na Arábia Saudita em negócios, pedi-lhe que me deixasse ficar no Santuário.
Por essa altura, Gerard veio ver-me bastante preocupado.
-Medeia, tenho de falar consigo. Estou desconcertado com os seus irmãos! Estavam a ir bastante bem, mas de vez em quando, Saga enfurece-se do nada, e já atacou Kanon. Um dia destes, mordeu-o severamente num braço. Ficou com uma expressão estranha no rosto, de tal modo que tive receio de me aproximar, com medo que lhe desse algum ataque. Quanto a Kanon, já é a segunda vez que me foge. Fui dar com ele no templo de Poseidon, escondido no meio das ruínas. Diz-me que ouve vozes. Creio que estão apenas a tentar chamar as atenções, mas gostaria que falasse com eles a ver o que se está a passar.
Não consegui arrancar-lhes uma palavra; quando confrontei Saga com as marcas que Kanon tinha no braço, disse simplesmente que não se lembrava do ocorrido.
À medida que a minha filha crescia, as minhas palavras pareciam ter-se realizado. Ela adorava os tios, e brincavam o dia todo. Mostrava-se maternal para com Kanon e passava horas junto de Saga, até lhe adormecer no colo. Era uma menina linda, com o cabelo louro do pai, e os olhos escuros e lábios cheios característicos dos Gemini. Kanon chamava-lhe magricelas, o que a fazia muito triste; mas Saga estragava-a com elogios e carinhos.
Shion decidiu começar o treino dela, o que complicou um pouco os projectos que eu fizera para a sua educação. Ela devia treinar em Chipre e Citera, ilhas sagradas de Afrodite, e no Santuário. Contornei um pouco as coisas, de modo a passarmos mais tempo juntas. Consegui que uma parte do treino fosse tomada em Inglaterra, e sempre que ela estava na Grécia, eu tirava uns dias para ir vê-la. Aconteceu que ela passou a maior parte da infância na casa de Gemini, junto de Saga e Kanon.
Um dia, tinha ela uns oito anos, e Saga treze, aconteceu uma coisa que me apanhou completamente desprevenida. Saga veio falar comigo, dizendo-me que assim que Ishtar tivesse idade, queria casar com ela. Chamei-o doido varrido; eles eram do mesmo sangue! Quando perguntei a Ishtar o que significava tudo aquilo, disse abertamente que era verdade. Expliquei-lhes que nos nossos dias, tais casamentos não eram permitidos, o que a fez cair numa tristeza profunda. Ishtar era extremamente mimada e teimosa, e desistir não fazia parte do vocabulário dela. Sem que eu soubesse de nada, foram os dois ajoelhar-se aos pés de Shion, pedindo-lhe que os deixasse ficar juntos. Perdi a cabeça com uma tolice dessas! Corri para lá, e vi o Mestre divertido como já não o via há muito tempo. Pacientemente, ele acedeu a deixá-los casar se quando crescessem sentissem a mesma coisa. Vendo a minha consternação, lembrou-me que casamentos entre tios e sobrinhos, ou entre primos, eram uma coisa comum nas famílias nobres, e sendo Ishtar uma Deusa, não haveria problema nenhum. Mesmo assim, eu achava que iam perder essa ideia com o decorrer dos anos.
O tempo passava, mas a ideia não se desvanecia, para minha pena. Achava que um relacionamento desses era no mínimo esquisito. Mas não tentei afastá-los; tinha uma absoluta confiança no cavalheirismo de Saga. Ele era já um belo adolescente, alto, musculado, com uma cintura esguia de artista marcial, o cabelo longo roçando os rins, e um rosto angelical e másculo ao mesmo tempo. Possuía uma elegância inata e um carácter nobre e justo, que o tornavam ainda mais atraente. Outra característica sua era a imensa doçura. Creio que nunca conheci um jovem tão meigo como Saga, mas isso não o enfraquecia em nada, antes parecia que da sua bondade nascia uma grande coragem e um carisma singular.
Além de Kanon, fazia-se sempre acompanhar de Aioros, Shura e Kamus, o que eu considerava excelentes amizades. Aioros, alto e sempre queimado do sol, era tão extrovertido como Saga era reservado, mas igualmente sensato. Se não fosse pelos incentivos dele, creio que Saga teria vacilado à medida que o seu treino ia endurecendo. O jovem grego tinha uma vontade de ferro. A sua frase preferida era «não é assim tão mau». Fora descoberto por um «caça talentos» do Santuário quando ajudava os pais nas terras, mas não se podia dizer que tivesse alguma coisa de rústico, a não ser uma extrema pureza de carácter, que o tornava cegamente idealista. Os olhos castanhos estavam sempre iluminados pela esperança. Pobrezinho! Não posso dizer quantas vezes penso nele e lamento o triste fim que teve, tão bonito e tão jovem.
Kamus e Saga eram considerados no Santuário arbiter elegantorium1, não porque fossem vaidosos, mas porque havia sempre à volta deles uma aura de distinção e classe, que lhes era inerente. O aquariano era requintadamente belo, e um excelente conversador. Ele e Aioros adoravam Ishtar como a uma irmãzinha mais nova, e eram seus companheiros de equitação e tiro ao arco. Depois, havia Shura. Se não fosse tão determinado, creio que nunca tinha chegado a Cavaleiro de Ouro. Brincalhão e farrista, não tinha medo de nada nem de ninguém, e pregava partidas a todos, fazendo perder a paciência a Mestres e servos. Adorava achincalhar Giggars, chegando ao extremo de lhe roubar o olho de vidro e passear-se com ele na camisa, enquanto toda a gente virava o Santuário do avesso à procura da gema e o pobre chefe da guarda berrava desesperado. Mas a sua devoção a Athena era quase obsessiva, e foi isso que lhe granjeou a armadura.
Kanon deixava-se ir; não creio que fosse íntimo de nenhum deles, mas apreciava a sua companhia. Quando Miro de Escorpião se tornou mais velho, começou a dar-se com ele, o que resultava numa tremenda indisciplina.
Agora que eram quase homens feitos, era difícil discernir quem era quem, ou quem era mais belo. Iguais como duas gotas de água, distinguiam-se pelo olhar., que em Saga era triste e infinitamente meigo, e em Kanon, luminoso e cheio de alegria. Ambos tinham olhos deslumbrantes, de um tom metálico. Vendo de muito perto, tinham tons de um castanho frio; mas com certa luz, poderiam passar por negros ou azul esverdeado. Atrevo-me a afirmar, porém, que os olhos deles são cinza escuro, e profundamente transparentes, rasgados e com largas pupilas negras. Claro que quem os conhecia bem, achava impossível confundi-los. Saga mantinha uma pose de extrema dignidade. Kanon movia-se com a agilidade de um felino, e nunca parava quieto. Saga era cerebral, mas capaz de emoções profundas, quase extremas. Kanon era emocional e arrebatado, nunca contendo o que sentia, mas por vezes surpreendia-nos com a sua frieza.
Saga continuava apaixonado por Ishtar, e eram considerados o casal número um do Santuário. Ela era já nessa idade uma beleza que roçava a perfeição absoluta, e os dois eram inseparáveis.
Por essa altura, Saga foi consagrado Cavaleiro de Gémeos. Shion dissera que tinha outros planos para Kanon, algo de grandioso e que se adaptava mais ao seu carácter incapaz de se submeter. Kanon não ficou triste, nem melindrado; sabia que pertencia a uma constelação dupla, e que sem ele Saga nunca poderia suportar aquela armadura. Ishtar tinha a sua kamei também, e eu, que acabara de dar à luz a minha segunda filha, Circe, retirei-me para Inglaterra, e depois para Nova Iorque, sem voltar ao Santuário durante muito tempo. Ishtar ficou com o noivo – já me tinha habituado a chamá-lo assim, que remédio – e tudo estava preparado para a era da mais espectacular geração de Santos de Athena dos últimos séculos. Eu estava feliz. Tinha feito um bom trabalho.
Espero que tenham gostado deste capítulo, e da descrição dos amigos de Saga. Uma breve explicação quanto aos olhos dele: foi a primeira coisa que me fascinou nesta personagem, mas Masami Kurumada não se decide de que cor são: na Saga do Santuário, de Poseidon, e no filme de Abel, são negros; na Saga de Hades, os de Saga são claramente verdes, e os de Kanon, azuis. Mas toda a gente cisma que Saga tem olhos azuis! Sem saber o que fazer, decidi-me por uma cor metálica que mudasse com a luz, assim ficamos todos contentes.
Não pretendo com esta fic reescrever «A maldição de Saga», mas Ishtar é a ligação entre Medeia e o santuário. Além disso, se falamos na adolescência dele, temos de falar da vida amorosa, não é? Para o meu Saguinha, nada abaixo da Deusa do Amor e da Beleza. Fico à espera das vossas ferozes críticas!
1 Latim para «árbitro das elegâncias» , ou seja, trend setter, alguém que dita as modas.
