PERSOCONTO Nº 2

Por Alexander Lancaster

''Enquanto em outros países ninguém pensaria em contratar um profissional para detonar uma relação, os japoneses jovens acham que basta pagar para se livrar dos problemas''

(Yasuyuki Takase, presidente da Daiko Research Office)

- Sente-se, Senhor Akutagawa.

- Obrigado.

- O Senhor esteve neste escritório há uma semana. Peço que nos perdoe - é esse o tempo que levamos usualmente para decidirmos se aceitaremos um caso ou não.

- Eu compreendo. Os senhores me avisaram que esse é o protocolo.

- É claro. Pedimos mais uma vez que nos confirme, por favor, o que foi dito na primeira entrevista.

- Sim. Pergunte o que for necessário, Senhor Domon.

- O senhor disse que sua idade era...

- 58 anos.

- Isso. Poderia traçar novamente o histórico de sua vida matrimonial?

- Bom, não há muito o que dizer. Conheci Megumi na universidade. É aquela história: tememos tanto as mulheres independentes que procuramos aquelas mais simples e quietas sem imaginar que elas nos apunhalarão quando não estamos olhando. Eu nunca fui bonito. Megumi não tinha uma aparência de modelo, mas era agradável e nunca me negou companhia. Em busca de segurança, um homem pode acabar sendo iludido, e foi este meu caso.

- Quanto tempo levou para que ela deixasse de ser agradável?

- Dois anos após o casamento, mais ou menos. Foi gradual.

- Não pensou em divórcio?

- Não.

- Porque não?

- Porque naquele momento eu estava ascendendo no trabalho. Um divórcio poderia depôr contra mim, ao menos naquele ponto da minha carreira. Socialmente não é uma boa recomendação.

- Como conseguiu aguentar quase meio século ao lado dela?

- Porque eu não passei esse meio século ao lado dela.

- Explique-se mais uma vez, por favor. Temos que nos certificar antes de aceitar um cliente.

- O senhor sabe muito bem que o dever numa empresa como a em que eu trabalhei exigia que eu me ausentasse por largos períodos, ou que trabalhasse horas a fio. Mal via minha esposa e filhos. Mas o afeto já não existia quando isso aconteceu. Eu era o provedor. Minha mulher se tornou o bolso da casa, a organizadora, que passou a ditar todas as regras. Eu virei apenas a conta no banco. Mas não tinha tempo para pensar nisso.

- Sua esposa tinha casos extraconjugais?

- As provas circunstanciais eram óbvias, mas...

- "Invisíveis", certo?

- Foi o que eu disse na minha primeira entrevista. É aquela história. Um homem num momento de defesa pode matar com uma tesoura de costura caso seja a única coisa a mão. Uma mulher pode tramar um assassinato com uma tesoura de costura. Mas um homem não usa tesoura de costura para matar premeditadamente. Há fundamento para algo estúpido como isso? Não. Mas é o que acontece, por mais... que não pareça. É o caso. Eu sabia, eu não estou sendo claro, mas...

O Senhor Akutagawa deu de ombros. Tentava se conter. Não queria que sua voz se embargasse. O Senhor Domon ouviu histórias como essas durante toda sua vida profissional como wakaresaseya - em miúdos, um agente especializado em provocar eventos para serem flagrados e assim desfazer relacionamentos. Geralmente os maridos não estavam errados. Afastados, acabavam sendo traídos discretamente pelas esposas. Quando retornavam, encontravam não uma mulher, mas uma administradora fria para quem o marido era apenas um detalhe necessário. O convívio usualmente piorava, e como socialmente a bebedeira sempre foi estimulada entre amigos, era melhor passar a noite com eles no bar enquanto a esposa passava a noite com um amante. Não se pensava em acabar com esse inferno. A maioria das pessoas em tal situação teme o escândalo que fatalmente se segue nesses casos.

Quando chegava a época da aposentadoria, se tornavam estranhos em seus próprios lares. Um incômodo, à parte da vida normal da casa, que foi organizada sem sua presença ao longo de décadas. Muitos deles, sem rumo, não demoravam muito a morrer, desapegados à vida desperdiçada.

- Eu não aguento mais a minha esposa - desabafou finalmente. "Quero viver os últimos anos da minha vida, não esperar minha morte. Trabalhei muito para isso."

O Sr. Domon olhou o Sr. Akutagawa da cabeça aos pés, de forma pensativa. Respirou fundo. Puxou um documento na gaveta. "Assine aqui, Sr. Akutagawa. Nós aceitamos o seu caso."


Naquela mesma tarde o Sr. Akutagawa apareceu em casa com um persocom de modelo masculino ao lado. Ao vê-lo pela primeira vez naquele dia, a Sra. Akutagawa perguntou, com a delicadeza de uma velha máquina de escrever numa redação de jornal antiga perto do fechamento do prazo final: "Que raios é isso?"

- É um persocom, Megumi.

- Eu sei que é um persocom! De onde você tirou dinheiro para isso?

- De nenhum lugar. Um dos meus amigos de pescaria, o Mishida, usava esse persocom para ajudá-lo a tocar a loja de doces. Achava bom ter modelos de sexos diferentes. Mas agora sua filha vem visitá-lo e ele pediu para que eu cuidasse dele por três semanas.

- Ah, a Kogal. Já sei do que ele tem medo - disse, com um risinho discreto de sarcasmo. "Ele sabe ajudar nos trabalhos da casa?"

- Ele é programado para fazer isso e mais um pouco. Vou usá-lo inclusive para consertar umas rachaduras do telhado. Ele não achava bom que os clientes vissem uma persocom feminina fazendo alguns serviços mais duros, ele pode até fazer uns consertos mais avançados.

- Besteira, robô é robô. Bom, leve ele para dentro. Estraga se ele ficar de pé dentro do armário?

- Acho que não...


A primeira semana foi de adaptação. Dentro de casa, usualmente cada um ia para seu lado - ele para ficar prostrado em frente a televisão, ela para fingir que limpava a casa, o mais rápido possível para que pudesse sair e fofocar com outras amigas da mesma faixa de idade. Quando se falavam, era só para que ela invadisse e o acuasse no pouco espaço que ele tinha. "Você não precisa mais desse escritório, você é um peso morto, e eu preciso desafogar a tralha que você trouxe para essa casa durante todos esses anos!"

Nesse ínterim, o robô efetuou os reparos necessários na casa como um todo em quatro dias. No quinto dia, passou a fazer os serviços de casa. A Sra. Akutagawa começou a gostar dos resultados.

No sexto, os dois já estavam conversando. O persocom em questão era muito educado, e se lembrava de pequenas coisas, como servir a mesa, dizer por favor e obrigado. Ele cozinhava muito bem e era dado a gentilezas. Tudo para fazer aqueles com quem interagia felizes - no caso, a Sra. Akutagawa. Persocons são interativos pela natureza de sua própria programação, e quanto mais respostas positivas um persocom recebe, mais educação, gentileza e atenção ele dá ao seu interlocutor. Vencido o estranhamento inicial, a Sra. Akutagawa estava se encantando com ele.

No sétimo dia, a Sra. Akutagawa o tratava pelo nome - Masato.

E começou a segunda semana.


- Muito obrigada, Masato. Você é um doce de pessoa.

- Eu não sou uma pessoa, Sra. Akutagawa.

- Difícil dizer isso. Onde está aquele imprestável do meu marido?

- Ele foi pescar, Sra. Akutagawa. Quer que eu entre em contato com ele? Eu posso rastreá-lo com...

- O que ele faz fora de casa não me interessa, desde que não traga problemas com os vizinhos. Mas eu estou velha. As pessoas não se interessam pelo que dois velhos fazem a menos que seja escandaloso demais.

- A senhora ainda não tem cinquenta anos, Sra. Akutagawa. Não é velha.

- Bondade sua, Masato.

Ela o olhou e se deu conta dos impulsos que cresciam dentro de si. Era compreensível: Masato parecia um rapaz de colégio, do tipo que a excitava quando era ainda uma adolescente. Jamais fora inocente na sua juventude, e gostava de se pavonear por ter agarrado um namorado universitário enquanto ainda era uma mera colegial. Como de costume, a partir do momento em que chegou à casa dos vinte anos, começou a se sentir neuroticamente mais e mais velha numa sociedade em que beleza e adolescência culturalmente são associadas. Olhar para ele era como fazer uma viagem virtual a aquela época áurea. Se esquecia da própria idade, que contrariamente às palavras do seu interlocutor, deixava sinais claros de sua passagem. Jamais foi muito bonita, e o tempo apenas piorou a situação. Em dez anos ela não poderia ter a mesma oportunidade.

- Pode me ajudar a levantar?

Ele sorriu e estendeu-lhe a mão para que ela se levantasse. O impulso os aproximou e ele a amparou pela cintura. Aquela era a varanda de casa.

- Obrigada... Masato.

- Se eu fizer a senhora feliz, então eu estarei feliz.

Ela perdeu a respiração por um segundo. Perguntou:

- Tudo mesmo, Masato?

Quando a terceira semana passou tranquila e silenciosamente dentro de casa, o Sr. Akutagawa entendeu que era hora de chamar a empresa novamente. Uma confirmação de Masato foi o suficiente.


- Como pode ver, a Senhora não tem escolha, Sra. Akutagawa. O Persocom que a senhora conheceu como "Masato" deu seu testemunho, mas ele poderia mentir caso assim lhe ordenássemos. Então, ele instalou câmeras de diferentes ângulos, além de seus próprios registros visuais e auditivos terem sido instalados em sua memória. Isso corrobora seu depoimento verbal.

- Isso é um absurdo!

- Gostaria de assistir a cena de novo por um novo ângulo? A senhora já viu as câmeras por quatro ângulos diferentes, mostrando que não estamos manipulando imagem nenhuma. Com todo o respeito, após o choque a senhora pareceu gostar do que viu.

- Eu irei processar os senhores por...

- A senhora iria perder. Observe:

O Senhor Domon puxou um pequeno transmissor e acionou um botão que fez com que uma janela de vidro se revelasse. Por trás dele estava Masato, e vários fios saíam de suas "orelhas", conectados a um computador comum, ligado a um telão.

De repente, a tela mostrava o mundo pelos olhos de Masato. Pôde ver a ela mesma quando disse: "Tudo mesmo, Masato"?

- Sim.

- Pode me acompanhar?

Masato sorriu gentilmente.

- É claro, Senhora Akutagawa...

- Posso pedir uma coisa?

- Peça o quanto quiser, Senhora...

Os dois pararam na porta do quarto dela.

- Primeiro, quando estivermos sozinhos, não me chame de Sra. Akutagawa. Entre nós, o meu nome é Megumi-Chan.

- Sim... Megumi-Chan.

- Agora me abrace. Forte.

- Assim?

- Iiiissoooo... agora me beije...

Enquanto ele o fazia, ela apertava suas nádegas com força de acordo com a tela reduzida do espectofotômetro, que exibia as áreas de pressão exercida sobre o corpo, usada para a exibição visual do registro dos eventos não-captáveis pelo ângulo de visão de um persocom. Suas mãos deslizavam para a frente e começavam a puxar seu cinto para abri-lo. As imagens desfilavam e quando um Masato seminu se deixou levar pela Senhora Akutagawa à medida em que ela se despia, o Sr. Domon desligou a tela.

- A senhora sabe que se processar alguém terá que apresentar isso como evidência de nossa vigilância. Pode a senhora lidar com o escândalo, Sra. Akutagawa?

Ela ficou em silêncio.

- Sim, a senhora pode tentar impôr condições para faturar uma pensão gorda de seu marido. Com cenas como esta em exibição, a senhora iria perder. Claro, a senhora ainda tem seus filhos para ampará-la nesse momento difícil. Mas pense no escândalo. Mesmo que um dos seus filhos tenha compaixão suficiente para suportar a raiva, acha que suas esposas permitirão que a senhora venha morar sob o seu teto, onde elas criam os seus filhos, e traga consigo a marca dessa infâmia? O que os vizinhos irão falar afinal?

A Senhora Akutagawa encarava o Sr. Domon com um olhar vidrado, como se não soubesse o que dizer.

- Eu estou dando à senhora a oportunidade de escolher entre não ter nada e preservar ao menos o respeito de seus filhos nesse momento tão difícil.

Ela abaixou a cabeça.

- Diga a meu marido que eu lhe darei o divórcio.

- Não é necessário.

Um homem de seus trinta e seis anos, com entradas de calvície, surgiu na sala ao ouvir essas palavras. "Boa tarde, Sra. Akutagawa. Eu sou representante da firma de advocacia que cuida dos interesses de seu esposo. Poderia assinar estes papéis, por favor?"


- Como prometemos, Sr. Akutagawa, ela lhe deu o divórcio, de acordo com os termos que o senhor e seu advogado pediram. Tenha a certeza de que ela não envenenará os seus filhos contra o senhor, mesmo morando com um deles agora. Sabe o que acontecerá caso venha a fazer isso. Afinal de contas, as provas ainda estão conosco e o senhor sempre poderá usá-las de acordo com os termos do contrato.

- Sim... eu tenho que agradecer à competência dos seus serviços, Senhor Domon.

- Não agradeça - é simplesmente previsível. Já reparou nas orelhas dos Persocons? Elas não estão ali à toa. Apesar dos persocons não serem humanos, as "orelhas" são um mero tranquilizador segundo estudos. Você passa a acreditar que acredita na não-humanidade deles. Mas no cotidiano você passa a abstrair tal fato, da mesma forma que um rapaz se acostuma quando sua namorada decide pôr um brinco de argola no nariz e não fica bem, mas ainda é sua namorada. Tendemos a retribuir o que nos dão. A sua esposa só lhe deu desprezo por tantos anos. O senhor deu a resposta. Nós só fomos o instrumento. Lembra quando o senhor disse que em busca de segurança, se acaba sendo iludido com facilidade?

- É claro.

- Persocons são máquinas de ilusão, Sr. Akutagawa. Assim como sua esposa o foi até arranjar um marido. Assim como nossos agentes também eram antes de substituírmos a maior parte deles por persocons. Os clientes têm diminuído, mas posso dizer que nos adaptamos muito bem aos novos tempos.

Fez-se silêncio por alguns segundos. Ambos se levantaram, dirigindo-se à porta.

- Ainda que seja uma impertinência da minha parte perguntar, como o senhor passará os últimos anos de sua vida agora que tem tempo livre, Sr. Akutagawa?

- Eu não sou mais moço. Mas irei prolongar meu tempo como puder. Fazer exercícios, quem sabe. As escolhas são muitas. Mas não perderei meu tempo vendo televisão. E tenho que reconhecer, a casa sem ela pode estar até melhor, mas se tornou grande demais para que eu cuide sozinho.

- Ah... então pretende arrumar outra esposa?

- Eu posso ser um velho tolo, mas aprendi com meus erros, Sr. Domon. Não os cometerei de novo.

- Então o senhor...

- Prefiro escolher ilusões seguras. Já tive o suficiente de realidade. Penso em chamar minha futura Persocom de Yukari, o que o senhor acha? Eu olhei para o modelo 2787Y e gostei, ela tem cara de Yukari...