PERSOCONTO Nº 3
Ishizaki Kentaro bateu com a cabeça no balcão do boteco mais uma vez. Não havia encontrado nada nos classificados. Desde que perdeu o emprego, passou a se tornar um leitor mais assíduo das notícias: para não perder o dinheiro que gastara em cada um dos cinco ou seis jornais que ele comprava diariamente, lia tudo. Não que adiantasse muita coisa. Podia falar de política externa ou de religião, de imprensa cultural e de economia, de esportes ou de comportamento feminino, mas não conseguia um emprego. Sua esposa nunca fora muito apegada a ele, como é de costume acontecer em casamentos arranjados, e certamente iria embora, levando a sua filha junto. O desespero tem diferentes efeitos nos homens, e nele tal sentimento se convertia numa atitude fria, glacial, calma. De quem não tem nada o que perder e poderia fazer qualquer coisa.
O barman que o serviu era um persocom. Jovem e bonito, como de costume em um persocom. Ele lhe ofereceu um sorriso. "Está com problemas, senhor? Eu estou acostumado a ouvir." Naturalmente ele estaria. Era uma máquina seguindo uma programação. Nada mais, nada menos.
Naquele momento, algo se partiu dentro de Kentaro, como uma geleira gigantesca quebrando à beira do mar.
Isso foi há três anos e oito meses atrás.
Maria Mei Long foi acordada às três da manhã por um toque intermitente de telefone. Nada de errado com isso: seu trabalho lhe garantia muito tempo livre em troca de disponibilidade total quando fosse chamada. Não se deu ao trabalho de acordar os dois persocons ao seu lado na cama de casal. Sabia que eram máquinas e portanto não teriam crises de ciúmes e choradeira no dia seguinte por largá-las em casa um pouco. Escovou os dentes, deu uma penteada rápida, uma lavada na cara, apanhou os caramelos de café e creme nos quais era viciada e saiu, com um tubo de café expresso que aqueceria no microondas do carro. Não era dada a vaidades: década e meia de convivência com persocons a eximiram da necessidade de agradar o parceiro, e se tornou básica na forma de vestir, de andar, de falar. Não tinha mais nenhum glamour, como quando era uma adolescente em Macau. Havia ganhado gordurinhas e culotes com as quais não se importava mais. Andava como um orangotango. Nada muito problemático. Bastava ser apresentável quando tivesse que falar com pessoas importantes. E esse deveria ser o caso.
Puxou o celular. "Senhorita Mei Long?", perguntou a voz do outro lado da linha.
– Fala, Yutaka. O que foi dessa vez?
– É sério. Usaram um persocom para um assalto a banco. Em horário comercial.
– Não pode ser. Um persocom não pode fazer mal para os outros.
– Esse não precisou.
– Se for hacker bancário o problema não é mais com a gente, é com a polícia!
– Esse problema é com a gente sim. Esse problema é com a gente mesmo.
– Ô merda... dá o endereço que meu carro me leva para lá.
– As coordenadas já foram programadas. Acabo de receber também uma mensagem aqui no meu terminal, outro agente da assistência de imagem está esperando por lá.
– Pegaram o Persocom?
– Acho que é melhor conversar sobre isso offline.
– Putz! Já já chego aí...
Não era mais necessário ir muito além disso por celular. Sua função era abafar eventos que pudessem comprometer a imagem de segurança que um Persocom traz. Ao contrário do que possa parecer, não é uma profissão emocionante. Nunca teve que investigar persocons assassinos ou similares – coisa que aliás, ela nunca ouviu falar que tivesse acontecido. Por outro lado, se isso fosse possível, ela não teria ouvido falar mesmo – um bom agente abafaria isso de tal forma que ninguém pudesse conceber a própria possibliidade da existência dessa possibilidade em si.
"Vai ser uma merda", pensou. Estava acostumada a meros maus empregos do persocom pelo usuário – e Persocoms não precisam de dildos, vibradores e similares, bastava encomendar um que já viesse com "duplo equipamento" de fábrica. Nesses casos o procedimento era simples: A companhia teria que calar a boca do comprador com um monte de dinheiro e um contrato de silêncio. Se por acaso um defeito interno – um desgaste na área do útero que desencapasse algum fio condutor de energia, por exemplo – acontecesse dentro do período de garantia e não fosse provocado por algum objeto não-natural, o mais importante era torcer para o cliente não ter sido danificado permanentemente, caso contrário, nem todo o dinheiro do mundo poderia calá-lo.
"Como é que conseguiram fazer um persocom assaltar um banco", pensava ela?
Ueno Takezawa a esperava pacientemente quando ela apareceu. Ueno tinha o perfil dos agentes jovens: educado, bem-arrumado, sem ter aprendido a ligar e desligar mentalmente uma forma polida de se lidar com os outros. Com o tempo, eles acabam todos perdendo a inibição e revelando suas verdadeiras naturezas. Era deprimente, mas funcional, levando-se em conta o dia-a-dia em um emprego como aquele. Mei Long deu uma olhadinha no traseiro do rapaz. "Hm, nada mau", pensou. Mas agora era hora de trabalho.
– Srta. Long?
– Me chama só de Maria. O que aconteceu realmente?
– É melhor que você veja por si só.
– Caramelo? É de café com creme.
– Não, obrigado.
– É melhor você arrumar seu vício logo, vai por mim. Melhor caramelo do que cigarro.
Os dois entraram prédio adentro e voltaram para a sala de segurança, onde estava o vídeo. Segurando a fita, estava o gerente, ainda visivelmente desnorteado.
– Srta. Mei Long, esse é o senhor Shiki Takeshi. Ele foi o gerente que lidou com o Persocom durante o assalto. Temos um vídeo e o Sr. Shiki pôde gravar a voz do criminoso.
– Aí é que está, Persocom não é criminoso.
– Como? – Perguntou o incrédulo Sr. Shiki.
– Persocom não tem responsabilidade legal por nada. Ninguém prende o dono da Smith & Wesson porque alguém deu um tiro no vizinho com a arma que eles fabricaram. É difícil a gente pensar nisso porque está acostumado a olhar para o Persocom como se fosse gente. Tem um persocom em casa, Sr. Shiki?
– Na verdade eu já tive, mas não tenho mais.
– Cansou do modelo?
– Na verdade meu filho era muito solitário e precisava de companhia. Então comprei um persocom para ser seu irmão mais velho, digamos assim.
– O que aconteceu?
– Meses depois, peguei meu filho e o tal persocom transando. Tentei esmagar a cabeça daquele robô com uma marreta, mas minha mulher me pôs para fora de casa antes que eu pudesse fazer qualquer coisa. Ela também trepava com ele. Hoje os três vivem juntos na casa que eu comprei e hoje vivo sozinho.
– Não se sente incomodado em trabalhar com tantos persocons ao redor? É só olhar para os caixas do seu banco.
O gerente começou a perder a paciência. "É sim, eu sinto. Mas você quer que eu faça o que? Olha para a janela. Para todo lado temos alguém passeando com persocons, namorando persocons, pondo seus persocons para trabalhar. Veja bem, trabalhar! Sabe porque o governo permite, na verdade até estimula isso? É para evitar a catástrofe que seria se as grandes empresas substituíssem seu quadro de operários por persocons. De nada adianta economizar na produção se não houver pessoas que comprem os produtos que se fabricam, mesmo com preços mais baixos e competitivos do que nunca. E não estou falando só de persocons. Deixaram o monstro crescer e agora não podem matá-lo porque a aldeia está nas costas do dragão. Agora me diga: eu vou fazer o quê? Viver como um eremita, em algum lugar onde não hajam máquinas de nenhum tipo, para que eu não tenha que olhar computadores com pernas e braços fingindo ser gente? Me juntar a alguma dessas organizações de neo-luditas e tomar porrada da polícia para não incomodar a ordem social? Me diz, o que acha que eu vou fazer?"
– Que tal procurar um wakarasaseya para constranger sua esposa e filho e reaver sua casa? Seria uma solução ao menos...
– Srta. Long – interrompeu Ueno – "até onde sei o Sr. Shiki não é o suspeito, e sim a vítima mais imediata do crime. Não quer ver o vídeo antes de interrogá-lo?"
– Okay, captei a mensagem. Bota a fita pra rodar.
Assim foi feito: Segundo o registro visual, um jovem vestido de terno entrou no banco às duas e meia da tarde daquele dia, ao lado de uma pequenina e bela persocom de aparência adolescente. As câmeras mostraram o casal trocando algumas palavras e se separando. Ela se dirigiu para a fila mais longa, que caminhava a passo de tartaruga, enquanto o rapaz se encaminhou para a mesa do gerente.
Quando o rapaz se sentou, o Sr. Shiki entrou no seu modus operandi de gerente de banco: "Bom dia, em que posso ajudá-lo?"
– Bom dia. Eu vim abrir uma conta.
– É claro. Sente-se, senhor...
– Keiji. Não tenho sobrenome.
O gerente estranhou. "É um tanto incomum alguém não ter sobrenome..."
– Persocons não tem sobrenomes. Seu nome é Shiki Takeshi – disse, apontando para a tabuletinha com o nome impresso na mesa. "Se o senhor tiver um cão, o chamará de Shiki Totó?"
O Sr. Shiki congelou, desnorteado. Nada indicava que Keiji fosse um persocom – suas orelhas eram humanas, perfeitamente humanas. "Sinto muito, mas não posso abrir uma conta. Seu dono deveria fazer isso ao invés de enviá-lo como representante."
– Entendo. Eu gostaria que o senhor observasse isso, por favor. Não tomará um minuto do seu tempo.
Com um sorriso frio, discreto e educado, o Persocom pegou o abridor de cartas que repousava em um porta-lápis na mesa. Puxou o colarinho do seu terno e discretamente começou a cortar a própria pele do seu pulso. Persocons são idênticos aos seres humanos, e a cena era enervante. Foi revelado um pequeno relógio cuja contagem estava parada em dez segundos. Como as câmeras eram de alta definição, foi possível para Mei Long e Ueno enxergar os detalhes através do zoom da aparelhagem de segurança, mesmo que com um mínimo de pixelação.
– Perceba que a contagem está marcada em dez... nove... oito... quer que eu pare?
A expressão sorridente e educada do persocom não saía de seu rosto. Explodiria a todos ali, quem sabe o prédio todo, com o sorriso de um atendente do McDonalds.
– Eu preciso que o senhor abra uma conta no banco rapidamente em meu nome, e deixe que eu preencha a quantia que tal conta guardará. Eu sou um persocom, o senhor poderá criá-la acessando o sistema da mesma forma que um terminal qualquer. Minha acompanhante está na fila, e a distância dela até o seu objetivo perfaz 36 da extensão total que ela deve percorrer até chegar ao caixa do banco. Quando ela sair da fila com o dinheiro, peço que o senhor, através de mim, desfaça a conta e apague os registros.
E assim foi feito. Quando o persocom partiu, ele deixou uma pequena peça branca muito similar ao peão de uma peça de xadrez. E recomendou que ele não tocasse a peça, se levantasse ou mandasse os guardas atrás deles, para seu próprio bem. E foi assim que o falso humano e a pequena persocom de roupa de empregadinha saíram de braços dados, sem ninguém para incomodá-los.
Para o azar do Sr. Shiki, a peça em questão não passava realmente de uma peça de xadrez comum.
Ueno e Mei Long saíram do prédio tranquilamente. Ela respirou fundo, puxou um caramelo do bolso, desembalou-o e olhou para o céu de boca aberta. Jogou a guloseima para cima e encaçapou-a com a língua estendida. Não era algo agradável de se ver. Ueno não ligava. Ela deixou o caramelo na boca e quebrou o silêncio: "Esse imbecil tirou a sorte grande..."
– Eu não entendo. Como poderia alguém que se deixou enganar por uma peça de plástico tirar a sorte grande?
– Tem alguém aí, Ueno? – disse de forma agressivamente irônica, batendo as mãos em duas palmas. "Acorda: Não podemos deixar vir a público uma história dessas! Sabe porque os persocons vem todos com walkman de fábrica?"
– Para deixar claro que persocons são persocons e humanos são humanos.
– Isso aí, como o instrutor da empresa diria. As orelhas das persocoms tem ficado menores com o tempo, a tendência é elas ficarem menores ainda, mas nunca vão desaparecer. Ninguém vai fazer um persocom com aparência mais humana do que já está. O fato é que se sua namorada enchesse o corpo de tatuagens tribais você iria estranhar, mas depois você não iria nem ligar, sabe? Não vem me dizer que iria, porque todo homem acredita nisso até que a gente dá um chá de pernas nele. Com Persocom é o mesmo, nenhuma mulher resiste a um persocom gatinho se ele tiver um corpo legal, e não tem persocom sem corpo legal. Orelha é o de menos. Eu sei. Tenho os meus em casa. Agora, eu também tenho a cabeça no lugar. Imagine que a maioria das pessoas não sabe separar o que é gente e o que é uma máquina de substituir gente no cotidiano – e não sabe, todo dia a gente tem uma prova disso. Já pensou o que vai acontecer se tirarmos a única margem de segurança na cabeça do povão, a mostra do que eles sabem que separa um homem de um persocom, a única coisa que os deixa com sensação de controle da situação?
Ueno a escutava com atenção. Ela continuou:
– Esse trabalho vai ser resolvido de forma "amigável". Com certeza o banco vai receber uma grande injeção de capital e retirar a queixa. E esse panaca aí vai ter que ser silenciado com uma bela promoção recomendada pela gente. Se quiser continuar subindo depois de um gostinho de ascensão, melhor esquecer que persocons podem ser perigosos.
– Isso não resolve o problema do assaltante.
– Não, não resolve. O filho da puta foi inteligente, nos deixou de mãos amarradas! Se ele continuar com esses assaltos, estaremos em desvantagem tendo que cobrir continuamente seus rastros. Se ele for pego e isso for a público, criará uma paranóia generalizada que será péssima para os negócios! E se o encontrarmos, ou a gente faz um serviço sujo qualquer que pode complicar as coisas para a gente caso venha a tona, ou coopta o sujeito pelo bolso, e assim ele sai por cima da jogada! E eu vou ter uma mancha no caderninho da chefia, por não ter resolvido o caso sem que a empresa tivesse prejuízo. Você não tem esse problema, você cheira a leite e o pessoal só implica com o erro dos novatos quando eles começam a errar demais. Mas eu já tô quase com quinze anos nesse ramo e na minha idade os erros do currículo não se apagam...
– O que faremos?
– Primeiro, nada de imprensa ou de polícia. Vou ter que contar com todo o apoio da empresa e dos figurões, que podem ter que acionar os lobbys do ramo no congresso caso isso vaze. Nesse último caso vou precisar de você, que tem uma aparência mais respeitável do que eu, e dos caras lá de cima. O segundo é um trabalho de investigação, quem diria. Qual foi seu último caso de problema de imagem?
– Um praticante de sexo com asfixia. Ele quase morreu nas mãos de sua persocom. A família do cliente tentou entrar com um processo.
– Casinho espinhoso. Como conseguiu resolver?
– Estávamos apostando que o persocom fosse customizado. Se assim fosse, poderíamos alegar que é mais seguro comprar produtos de fábrica e regular as customizações na pré-compra. Infelizmente o produto era legítimo e recente – a atividade em questão envolvia riscos e ele foi vítima deles, mas em tese ao vendermos um persocom, vendemos segurança física e emocional. Terminamos por comprar o persocom. Fizemos um acordo financeiro com a família.
– Sorte que persocom vende pra caramba. Senão os processos e acordos já teriam falido tudo que é empresa do ramo...
– Levamos meses para sermos chamados, as vezes até mais de um ano. Persocons são produtos bons.
– Falou como um publicitário.
– Por onde começaremos?
– Bom, eu tenho um palpite. Mas não quero meter os pés pelas mãos – e nisso Mei Long brincava com o pequeno peão de xadrez em seus dedos.
– Sabe de onde vem o termo Neo-Ludita? – perguntou Mei Long a Ueno.
– Vem do nome Ludd. Foi o sobrenome do primeiro líder operário surgido do seio da revolução industrial do século dezenove, quando os operários viam as máquinas como uma ameaça aos seus empregos e as quebravam.
– Você devia ser um sabe-tudo insuportavelmente chato na escola, sabia? – disse Mei sorrindo, usando o terminal de seu apartamento, devidamente turbinado por seus dois persocons. "Bom, o fato é que o que aquele gerente falou por lá está certo. Tem um monte de leis dificultando as grandes empresas no sentido de comprar montes de persocons e substituir os operários. Eles só entram abertamente em serviços que são perigosos ou insalubres mesmo. Ninguém quer correr o risco de uma alta taxa de desemprego. Desempregados não compram supérfluos. Mas qualquer mercadinho de esquina tem uma caixa persocom, esse banco mesmo tem caixas persocons a rodo, e provavelmente foram os seus donos que conseguiram para a maior parte deles esses empregos, que pagam menos do que pagariam a um humano comum, mas compensam justamente pelo fato do Persocom estar economizando o tempo de outra pessoa, que vai estar em outra atividade nesse momento, ganhando dinheiro ou não. É o chamado "assalariamento de aluguel" em economês.
– A base econômica da pirâmide social.
– Isso. É porque ninguém quer falência generalizada. E realmente um persocom melhora a qualidade de vida nas classes mais baixas, você tem alguém que trabalha para você, traz mais dinheiro para casa, e não gasta mais do que a manutenção. O problema é que socialmente ele tá criando muita dor de cabeça. O ludita de hoje é social, não econômico. Você viu o comentário do gerente. Se prestasse atenção, o gerente me deu mais detalhes do que você imagina, antes que você me interrompesse.
– Porque você acha que estamos lidando com um Neo-Ludita?
– Olha aqui na fita.
Ela retornou o arquivo .mov do computador e o deixou tocar até que o assaltante persocom disse: "Persocons não tem sobrenomes. Seu nome é Shiki Takeshi. Se o senhor tiver um cão, o chamará de Shiki Totó?"
– Viu só? Isso diz muito sobre o dono do sujeito. Persocom que se preza tem uma coisa chamada inteligência interativa. Ele reage a forma com que o tratamos, sua função é agradar ao dono. Se o persocom entender que um abraço faz seu dono se sentir melhor, ele irá abraçá-lo, esse tipo de senso de iniciativa é parte de sua programação. Isso indica que seu dono o trata abertamente como um ser inferior. Nenhum persocom seria capaz de raciocinar nesses termos.
– Poderia ser uma personalidade dorei?
– O que é isso?
– O submisso no sadomasoquismo artístico – o shibari.
– Cruzes, como você sabe dessas coisas? Você aí, todo educadinho, quietinho... eu tô começando a ficar com medo – Riu-se ela. "Bem, o outro ponto que me faz pensar que deve ser um Neo-Ludita é justamente essa peça aqui. O peão. Veja bem, um jogo de xadrez é antes de mais nada uma representação de uma batalha medieval. Todas as peças do jogo remetem a isso. Os senhores feudais usavam seu povão para lutar no exército e defender seu terreno a pé. Eles iam na frente e tomavam teco direto enquanto Reis, Rainhas e Bispos estavam bem protegidos. Até hoje a figura do peão é a representação simbólica do bucha, do sujeito que vai na frente para se ferrar redondo em nome do interesse alheio. Pode representar aqui tanto o operário que perdeu o emprego quanto a raiz 'povo' do servo feudal. Uau, você não é o único sabe tudo aqui. Eu pensava que o que aprendi no colégio não ia me servir de muita coisa no trabalho."
– Acha que foi consciente?
– Pode ser que sim, pode ser que não. Objetos falam bem sobre o que somos, às vezes nem pensamos nisso. Se foi consciente, com certeza o assalto beneficiou um ativista político. É a melhor pista que temos – e nisso, ela se voltou para o persocom ao lado. "Yuu, conseguiu identificar os Persocons?"
– O Persocom masculino foi montado de acordo com os padrões encontrados em qualquer banco de rostos.
– E o Persocom feminino?
– Aproximação com 38 de chances de acerto: Modelo provável número 478338-RYRB2K. Popularmente conhecido como Akari. Obsoleto mas tinha um shape popular caracterizado por mulheres de estatura baixa mais voltadas ao fator graciosidade, reaproveitado posteriormente em inúmeras variações. Se tornou uma favorita dos customizadores após sair de fabricação.
– Ou seja, o popular "baixinha e engraçadinha". Pode localizar o customizador mais provável a partir de uma visualização geral?
– Há uma interferência.
– Como é que é?
– Parece que nos rastrearam. Parece haver algum tipo de lag no meu sistema Ethernet.
– Vai demorar para resolver?
– Umas quatro horas pelo menos.
– Puta que pariu...
Ishizaki havia sido deixado por esposa e filha, enquanto ele estava na cadeia por dano de propriedade – o barman persocon que o atendera. Previsível. Ele entendera qual era a raiz do problema, a causa de tudo o que estava acontecendo. Sempre soube, mas nunca dera importância até o momento em que o problema passou a ser com ele também.
Decidira aprender quem era seu inimigo. E mergulhava em tratados imensos sobre inteligência artificial e interatividade. Da moda já esquecida dos "Anjos" em campeonatos de combate, que mostraram os potenciais mais extremos da robótica à humanidade. Ele pensou em Heron. Na Grécia Antiga, Heron havia feito uma das mais poderosas descobertas já feitas: a propulsão a vapor. E no entanto não soube aproveitar seu potencial, usando-o em brinquedos. Ishizaki via nos seus conterrâneos/contemporâneos muito em comum com os gregos, tão maravilháveis com brinquedinhos que jamais se dariam conta se máquinas a vapor esmagassem a península do Peloponeso e mudassem a face da história.
Mas os japoneses se mostraram mais inteligentes do que os gregos, e sua inteligência se mostrou sua ruína. Incapazes de lidar com suas frustrações pessoais, eles ofereceram algo que a humanidade não apenas jamais poderia oferecer – e para o qual ela não estava preparada. A perfeição. Tão grande que começou a corroer primeiro o próprio país, depois os países adjacentes como a Coréia unificada, e por fim o ocidente.
A humanidade estava sendo substituída gradualmente. E os próprios humanos em troca de uma felicidade terrena que duraria o restante de suas vidas, sacrificariam a vida das gerações posteriores. É da natureza do ser humano procurar antes de mais nada seu interesse. Uma pessoa que se sacrifica por quem ama não se sacrifica realmente por outra pessoa – ela é quem não poderia suportar a idéia de ver essa pessoa amada sofrendo. Portanto apenas mitiga a própria dor.
Talvez Heron tenha sido sábio em ter se limitado apenas a brinquedos.
As portas da cadeia se abriram. Ishizaki se sentia tranquilo. Escapara do pior da prisão e lá dentro não se preocupava em contar o tempo – apenas sabia que um dia seria libertado. E foi. E estava pronto para o seu objetivo. Ele aproveitou bastante o tempo que tinha em mãos.
Isso foi há um ano e meio atrás.
Ueno repousava de forma quieta e serena no sofá de Mei Long. Ela havia dormido. Olhou para o colega de trabalho. "Nada mau. Se eu fosse mais novinha ia ficar tentada." Mas ela sabia que humanos não compensam no fator durabilidade, e todo relacionamento com eles exige um mínimo de cessão mútua, diálogo e compreensão que ela não tinha a menor paciência de encarar. Ela sempre foi muito objetiva e realista. "Esse rostinho bonitinho aí não vai durar nem duas décadas antes de ficar parecendo com uma ameixa passa..."
Ele abriu um olho e deu um sorriso amistoso.
– Você estava acordado! – disse ela com um sorriso.
– Há algum problema?
– Não. Pra falar a verdade é até bom ver você sem aquela pose de senhor certinho um pouco. Aquilo me dá calafrios.
– Calafrios?
– É... fico imaginando você com sua persocom em casa. Deve ser um porre, porque Persocom reage, não toma iniciativa. Eu não consigo te ver mandando a persocom tirar a roupa.
– Eu não tenho persocom – disse Ueno, se sentando.
– Mesmo? Bom, você é novato e trabalha pra empresa, quando você tiver algum mais em caixa pode conseguir um financiamento no trabalho mesmo. De repente eu te dou umas dicas, ele quebra um galhão aqui em casa.
– Há quanto tempo você tem dois persocons?
– Nunca foram os mesmos. Quando comprei o primeiro era ainda um daqueles modelos usados. Mas era bonitinho. Comprei ainda adolescente.
– Eles eram mais caros do que hoje nessa época.
– É, eram. Mas naquela época tinham mais kogals do que hoje, e as meninas de família andavam dando pelos cantos para comprar posses de luxo para impressionar as amigas. Eu era atraente...
– Ainda é.
– ...e podia ter feito uma bela grana, mas para que? Era mais prático chantagear as minhas colegas. Eu sempre tive jeito pra detetive. E metade do trabalho de detetive é pegar provas de adultério para processos de divórcio. Preferi trabalhar aqui quando terminei o colegial. Não queria passar mais tempo da minha vida estudando. E eu ouvi você dizer o que disse?
– Se perguntou é porque ouviu.
– Obrigada – disse com um sorriso. "Só não repete isso de novo senão eu acabo acreditando."
– Devia acreditar.
– Aaaaaaaaaaaahhhhhhhhhhhhh... – E aquele nervo escondido da vaidade que ela havia deixado para lá anos atrás começou a vibrar de novo. "Olha, nem vem. Não é que eu não goste de ouvir um homem dizendo isso pra mim de vez em quando, ainda mais um garoto que nem você, faz bem ao ego mas parte do meu trabalho é pôr a cabeça no lugar o tempo todo para não fazer nenhuma cagada. Porra, a gente trabalha junto. Não dá, nem por um decreto.
– Se você gosta tanto de si mesma do jeito que está, porque não acredita quando alguém diz a você que está bem do jeito que está?
Ela olhou seria e fixamente para os olhos de Ueno. Só tinha duas opções na sua cabeça. Uma era enxotar Ueno e mandar aquele doido tomar tenência na vida.
O instinto a levou violentamente para a outra opção. O beijo foi seco mas voraz, conduzido primordialmente por ela, que gostava de ser dominante com seus homens e puxou a cabeça de Ueno em direção a seu rosto. Ueno se deixou levar e foi puxado por Mei Long para a cama, que era enorme – e que já estava ocupada. Os dois persocons domésticos que ela tinha abriram os olhos, saindo do seu modo de repouso.
– Maria-Chan? Vai precisar de nós?
Ela sorriu maliciosamente para Ueno.
– Desta vez, só se o Ueno quiser...
Ueno despertou aproximadamente às cinco da manhã, como um relógio. Se levantou, nu, afastou o corpo do persocom ao lado, que não despertou de seu módulo de repouso, e se dirigiu para a sala. Ele sentou em frente ao terminal e começou a teclar quando ouviu uma voz dizendo "nem pense nisso, Ueno. Levante a mão."
Era Mei Long, com uma arma apontada na direção de Ueno.
– Não tenta me enganar, Ueno. Já saquei que você é um persocom.
Ueno não se alterou, como era de se esperar.
– Na verdade você estava me enganando muito bem. Muito bem mesmo. Você apenas exagerou no seu papel. Primeiro lugar, você é bem bonitinho e um sabe-tudo chato de galochas. Duas coisas que usualmente não combinam, mas isso pode acontecer e eu não iria parar para pensar nisso. Nerdice usualmente vem acompanhada de gordura acumulada nos flancos, e você está bem em forma. Mas não foi isso o que o denunciou.
– E?
– Depois foi que você me achou bonita. Ora, eu lembro como era ser bonita, e eu era, e posso te dizer que é um porre! Exercícios, cabeleireiro, lavar sempre os cabelos com água fria quando você está doida para pular na banheira quentinha... Porque acha que com persocom é mais fácil de se viver? Não que eu não goste de escutar isso, mas convenhamos, você pode encontrar restos de cada bala de caramelo que eu comi na vida em meu corpo. Pra dizer a verdade, eu não entendi isso como uma cantada, pelo menos não de primeira. Você poderia estar apenas sendo gentil, e isso também é humano. E seria a sua cara, senhor certinho. Mas novamente não foi isso que o denunciou.
– E?
– E aí pintou aquele clima entre a gente. Por incrível que pareça, a idéia passou na minha cabeça por alguns segundos, mas, tudo bem novamente. Eu sei que não sou nenhuma modelo, mas pô, eu não chego a ser feia, essas coisas acontecem e persocons tem a vantagem de não ficar com ciúme da gente se brincarmos com outro sujeito de vez em quando. Homem ainda tem hormônios e mesmo com uns quilos a mais eu não tenho que tirar a roupa e besuntar o corpo de manteiga para poder passar pela porta do quarto. Eu ainda não tenho trinta e cinco anos, pombas!
– E?
– E aí fomos para a cama, e meus dois persocons estavam lá. Não foi exatamente isso que o denunciou, mas me deu a chave para entender tudo.
– Poderia ser um pouco mais clara, por favor?
– Você topou de tudo esta noite. De tudo. De forma fácil demais, você nem disse um "epa", nem ficou tenso, nem mesmo se surpreendeu! Novamente eu poderia ter caído porque você, muito inteligentemente aliás, citou o sadomasoquismo lá pelas tantas da investigação. Você podia ser chegado mesmo a uma perversãozinha, e já que tinham outros dois marmanjos-robôs por ali, você deixou rolar, e como eu gosto de ver mesmo enquanto tomo fôlego pra próxima rodada, meus hormônios iriam nublar meu raciocínio e eu nem ia me dar conta disso. Seria coerente. Tudo aliás é coerente.
– Então qual seria o problema?
– Quieto, educado e bonitinho, tudo bem. Que diga o que a gente gosta de ouvir, que é o que todo persocom faz, tudo bem. Que tenha deixado pintar um clima comigo tudo bem, eu gostei. Que seja chegado a uma baixaria tudo bem. Mas tudo isso junto é o difícil dentro do raro...
Ela engatilhou a arma.
– ...e você transa bem demais. Tem humanos que fazem isso. Mas com tudo isso que eu falei, e ainda por cima ter esse desempenho como bônus, nem ator pornô, meu filho! A partir daí, tudo fica fácil. Você não se conectou ao fio do meu computador, mas não duvido que tenha se valido de ethernet via satélite, como o dos nossos sistemas de comunicação. Uma placa airport, um comando sem fio... tem muitas maneiras para se fazer isso, bastava o portal reconhecer você. E convenhamos, você está aqui tempo o suficiente para saber. E ficou bagunçando minhas transmissões.
– Boa explanação.
– Agora vai me dizer, Ueno, quem é o teu dono?
– Não perca seu tempo – disse o robô, que rapidamente puxou uma chave de fenda que estava no porta-lápis da mesa. Ele rasgou a pele com força, abrindo uma brecha em seu pulso. O corte revelou um display cheio de números.
– Sete. Seis. Cinco...
Ela instintivamente disparou. A contagem não foi interrompida. Dois. Um.
Ueno entrou em convulsões.
Em poucos segundos, ele tombou e de suas juntas emanava uma fumaça escura. Líquido prateado escorria para o chão de todos os orifícios do seu corpo, e se ressecava durante o prolongamento de seu contato com o ar. Ueno se moveu em últimos estertores para em seguida se retorcer.
Como um cadáver.
– Porra, você estragou o meu tapete! – rosnou uma Maria Mei Long enfurecida.
Gabinete do chefe de manutenção de imagem pública, oito meses depois. Mei Long entrou sala adentro e bateu na mesa com uma imensa resma de documentos impressos e fotos mal anexadas com clipes.
– O nome dele é Ishizaki Kentaro.
– Quem?
– Um suspeito tão óbvio que aquela zona toda nos desviou de seu rastro. Persocons disfarçados... pistas que levam a pistas... o sujeito nos deixou correndo atrás do próprio rabo o tempo todo, e quem tomou um cilindro na circunferência aqui acabou sendo eu!
– Sente-se...e comporte-se, Srta. Mei Long...
Ela não tinha o ar de uma vencedora. "Recapitulando: depois que eu acertei aquele Persocom, usamos as informações de sua I.A.... digo, o que restou dela... para tentar investigar o seu dono."
– E?
– As coisas não foram muito animadoras. O sujeito calibrou o sistema auditivo do Persocom para que ele não pudesse ser um identificador confiável de voz. Ele sempre usava máscara quando estava perto dele. Máscara! Uma tática velha de sequestradores! Quando eles aparecem mascarados, como o senhor bem sabe, é porque querem manter a vítima viva. Se você vê o rosto dos seus captores, é melhor rezar por um milagre.
– Qual o seu ponto, Srta. Mei Long?
– O filho da puta queria que nós capturássemos aquele persocom! Fizemos o jogo dele o tempo todo! Ele fez o sistema de rastreio ficar lento no meu terminal pessoal, e não faria diferente se eu tivesse usado o da empresa, talvez fosse até pior. E quanto a isso, você não pode falar nada. Ele enganou todo mundo. Pensa bem, eu sou uma profissional! Eu entendo de persocons! Olhe bem: o Yutaka recebeu a mensagem dizendo que eu não trabalharia sozinha. Ele checa tudo que é credencial, e a culpa não foi dele. Eu verifiquei o histórico de Ueno. Cada informação foi realmente postada nas datas registradas. O que quer dizer que ele planejou tudo isso desde que saiu da cadeia.
– Como você chegou a esse nome?
– Eu estou explicando, vai acompanhando. Bom, depois de muito fuçar, afinal aquele robô virou um monte de metal fundido e só os registros visuais recentes podiam ser acessados, conseguimos localizar o endereço onde o sujeito mexia no Persocom. E aí tivemos a surpresa: Encontramos o Persocom que roubou o banco.
– Quem era?
– O próprio Ueno! Ishizaka simplesmente trocava as faces do persocom! Enquanto procurávamos o robô o tempo todo, eu estava com ele no meu quarto!
– No seu...?
– Ei, foi lá que eu tirei a prova... Lê meu relatório! De qualquer forma, o lugar era um galpão abandonado e não tinha verdadeiramente dono. Então ficamos procurando um homem com uma persocom, a gente não esqueceu da persocomzinha que foi cúmplice do sujeito. E procuramos tudo que é customizador atrás de uma Akari! E é difícil, porque as Akaris são parecidas mas como toda boa persocom customizada, ela tem uma estatura pre-definida mas pode ter qualquer rosto, vai saber se esse era o rosto verdadeiro dela! E ficamos nestes últimos meses tentando seguir o rastro de qualquer homem com qualquer tipo de graduação em computação, que tivesse uma Akari custom, porque esse trabalho não foi feito por qualquer um, que tivesse se mandado da cidade durante esse período com uma persocom ao lado. E convenhamos, todas as Akaris que encontramos estavam limpas. Chegamos a investigar alguns caras com ficha de baderna em manifestações neo-luditas, mas todos eles estavam sem culpa no cartório.
– Tudo bem, você me disse que essa era uma verdadeira agulha num palheiro. Não me disse como chegou a esse nome.
Mei Long parecia transbordar na poltrona como se fosse um monstro de lodo se desmanchando. "Acabamos por desistir de procurar. Quer dizer, o cara fez tudo direito! Então o Yutaka parou para pensar: e se a gente estivesse seguindo o raciocínio errado? Quer dizer, se era um neo-ludita, porque os roubos não continuaram, beneficiando a causa? Ou seja, o peão era novamente uma pista falsa. Uma coisinha bem discreta, para a gente não perceber de cara que estavam querendo nos induzir a isso. É aquela coisa: na primeira história do Sherlock Holmes, escreveram 'Vingança' em alemão para acusar os anarquistas, em caracteres góticos bem grandes. A polícia caiu direitinho e Sherlock notou que era uma manobra fajuta para fazer a polícia pensar isso mesmo, porque se fosse um anarquista não seria tão descarado. O nosso homem foi mais esperto. Fez algo tão discreto que nos fez forçar o cucuruto para chegar a conclusão que era um neo-ludita. simulou o próprio, hum, 'erro'... e o erro no fim foi da gente.
"E decidimos mudar a abordagem. E se procurássemos alguém que já tivesse algum motivo para querer encrencar com o banco? E bastou verificar rapidamente os suspeitos para verificarmos esse sujeito. Não sei ainda se é ele, mas por eliminação..."
– O que tem o homem?
– Foi demitido. E trocado por persocons alugados por seus donos. O resto foi consequência... desintegração familiar... prisão... Aliás, foi preso por destruir um Persocom. Sua mulher e filha o largaram. Ele ficou pouco mais de um ano preso por destruição de propriedade. Agora está sumido, completamente sumido.
– Procurou as duas, falou com elas?
– Só com a ex-mulher dele. A filha havia se mandado de casa. Era de se esperar, a tal mulher agora está vivendo com uma persocom. Pai presidiário e mãe sapata. Eu também me mandaria. E para beeeem longe.
– É tudo o que você tem? Um culpado circunstancial? Menos que isso, um mero suspeito? Para começo de conversa o perfil dele é de quem tem ojeriza a persocons!
– Tem que ser ele! Eu fiz a listagem das suas leituras na biblioteca da prisão. Para quem tem ojeriza ele se mostrou bem interessado em inteligência artificial. Infelizmente não há nenhum registro ou documento dele ter comprado uma Akari, mas...
– Mei Long – interrompeu o chefe – "você tem algum dado concreto, veja bem, concreto?"
Ela fez silêncio.
– Some daqui, Mei Long.
– Pô, chefe...
– Deixe essa papelada com a senhora Kikuchi! No que eu entendo, esse caso já foi abafado!
– Mas...
– Algo mais a declarar?
Ela bem que tinha vontade de dar um murro na mesa e mandar o chefe para o inferno. Mas ela já estava naquele emprego há mais de quinze anos. Não se joga década e meia no lixo em um momento de raiva.
– Não, senhor.
E saiu da sala, com um péssimo humor. Yutaka esperava Mei-Long na porta.
– Dia ruim, Maria?
– Ô.
– Fica assim não. Qualquer um pode ser enganado. Quer dizer... que diferença prática tem um persocom de um ser humano se a gente tirar aquelas orelhas?
– Muda de assunto, pelamordedeus. Se eu parar para pensar nisso eu vou acabar do lado dos neo-luditas. Não me tenta.
– Você só está precisando de um café.
– Não, o pior é que não. Eu tô precisando é de sexo. Só que eu não tô com a mínima vontade de olhar para orelha de persocom hoje. Nem por um decreto! Nem por...
De repente, uma idéia bizarra lhe passou pela cabeça. "Orelhas." Ela por um momento se voltou, e por pouco não correu em direção ao gabinete do chefe.
Mas por outro lado, estava com muita raiva de tudo.
"Que se dane", pensou.
Virou-se para a frente. Yutaka estava saindo discretamente. "Ô, Yutaka! Não precisa ir fugindo assim, eu falei de qualquer um que não fosse um persocom, não precisa ser você não! Volta aqui!"
Takegawa Asaemon, ou melhor, Ishizaki Kentaro nunca se sentiu tão seguro. Repousava sob o sol de Acapulco, em uma espreguiçadeira de praia. Nunca se sentiu tão bem, exceto quanto a estonteante morena que o servia. Uma persocom. "Mais alguma coisa, señor?"
"Não, obrigado" – disse antes dela se retirar.
– Eiiiii, em que posso ajudá-lo, senhor Takegawa?
Uma bela persocom adolescente, de estatura baixa, que vestia um exíguo biquíni, sorria de forma submissa e discreta para Ishizaki.
– Filha, quer tirar essas porcarias das orelhas? As pessoas vão pensar que você é uma persocom...
– Tá, pai, entendi o recado – disse a moça, com uma gargalhada, e despindo-se do seu modo discreto com um expansivo arremesso de orelhas de plástico em uma lata de lixo. Ela correu para o mar. O pai procurou não ligar para os olhares masculinos que se dirigiam a ela. No fundo tinha algum orgulho. Afinal, ela era um ser humano.
E sua aparência não devia nada a nenhum persocom. Era cada vez mais difícil se pensar nesses termos a respeito de uma mulher hoje em dia.
