PERSOCONTO Nº 4

– Quanto é onze vezes...

– Onze?

– É, onze. São quantas unidades aqui?

– Deixa eu contar. Um, dois, três...

– Vai demorar muito. Vai ter que contar um a um? Eu tenho que voltar pra casa.

– Dá para você esperar o técnico? A nossa caixa está com defeito, mas não vamos deixar de atender um cliente por causa disso – disse ela para o cliente, sem tirar os olhos do Persocom defeituoso. Ô, menino – disse ela para o rapaz que se matava tentando fazer um cálculo no papel. "Não é você quem vai fazer vestibular? Como é que sua matemática pode ser tão ruim?

– Deixam usar calculadora na prova.

– No meu tempo não tinha disso.

– No seu tempo não tinha persocom fazendo todos os cálculos e deveres de casa. Já parou para pensar porque é que trabalho feito fora de sala de aula não vale mais nota hoje em dia? A melhor aluna da nossa classe não sabe contar dois mais dois sem a calculadora e ninguém liga para isso. E ela é a representante!

A Gerente olhou para seu filho. Olhou para o cliente. Olhou para a jovem e bonita persocom que repousava, fitando o vazio, sentada no caixa. E sentiu vontade de chorar.


Os Matsuoka são uma família de dekasseguis – descendentes de japoneses que nasceram em outros países e retornam à terra de seus ancestrais em busca de trabalho – que há vários anos atrás se instalaram em Akihabara, bairro de Tóquio, e passaram a tocar um negócio sólido desde então. Na verdade, o primeiro a vir foi Marcelo Minami Matsuoka(Matsuoka Minami no Japão), que montou uma das inúmeras pequenas lojas de aparelhos eletrônicos no bairro e assim que começou a prosperar, trouxe do Brasil sua noiva Helena Hiromi Hoshino. "Tanta aliteração não pode dar certo", brincavam alguns amigos. Deu, e redundou em um par de garotos – o mais velho com o nome brasileiro de Marcelo Minami Matsuoka Junior (os pais acharam por bem tentar preservar os benefícios da dupla nacionalidade), hoje estudando para o vestibular, e o mais novo, com dez anos, Edilson Eichiro Matsuoka, que diz que quer ser mangaka quando crescer e já mostra sinais de algum talento.

Déia, sua persocom, é a "caçula da família", por assim dizer. Em Akihabara, há uma concentração muito grande de lojas do tipo, e todas procuram chamar atenção para si, inclusive as pequenas lojinhas que sobrevivem graças a uma clientela fiel. Comprar seu próprio persocom, preferivelmente customizado, e pô-lo às vistas de todos, é parte dessa estratégia de sobrevivência. Primeiro foi a novidade. Depois que persocons se banalizaram, sua presença se tornou um tipo de status – não ter um deles passou a ser, grosso modo, sinal de pobreza, principalmente quando robôs e eletrônicos em geral se tratavam de produtos tão relacionados entre si. Por fim, se tornou algo natural, e os Matsuoka resistiram o quanto puderam à compra do seu modelo, por mais que os outros perguntassem.

O motivo primordial dessa demora era o medo de Helena de ser trocada por uma Persocom.

Não era um motivo incompreensível. Os casos se sucediam ao redor de todos. A maioria esmagadora dos casamentos no Japão pareciam, aos seus olhos, uma espécie de arranjo de conveniência que alimentava carências emocionais monstruosas – e os Persocons abriram uma torrente de desejos reprimidos que estavam desmoronando esses arranjos como castelos de cartas. Se isso estivesse acontecendo apenas na sua nova pátria, ela se sentiria segura. Os Matsuoka não apresentavam padrões muito japoneses de comportamento. Eram emotivos e falantes, mesmo fora de casa. Mas a tendência parecia ser mundial, apenas exposta com mais crueza no Japão e na Coréia, em grande parte pelo fato de ambos os povos se sentirem extremamente confortáveis com a tecnologia em suas vidas cotidianas. "Primeiro, o sossego da família", dizia.

Mas os negócios começaram a declinar em meio a tanta competição. E após duras negociações familiares, os Matsuoka decidiram trazer um persocom às suas vidas. Foi assim que veio a pequenina e charmosa Andréa, que viria a ganhar o apelido "Déia" de um Edilson ainda muito garoto. Os anos se passaram.

Ao contrário das expectativas, o casamento se fortaleceu. Helena decidiu se exercitar em uma academia de ginástica do bairro – e suas razões eram óbvias para todos. Marcelo gostou da idéia. Déia definitivamente era muito bonitinha, mas refletia os padrões locais de beleza, que não eram tão sedutores para ele. Se ele comprasse um modelo mais ocidentalizado, com curvas e volumes mais exuberantes – assim como sua esposa, que tinha um alto grau de mestiçagem – talvez o casamento de tantos anos entrasse em risco no momento em que a robozinha fosse retirada da embalagem de plástico de bolhas. Mas já que Helena não se dava conta do fato e procurava se manter na frente nessa suposta competição, para que reclamar?

Alguns anos se passaram, e Déia foi sendo gradualmente upgradeada para que seus padrões nunca corressem o risco de se perder. Suas atualizações eram regulares, apenas com uma ou outra mudança(a mais radical em termos cosméticos foi uma substituição de suas orelhas por um modelo relativamente menor), e com um aumento visível em suas capacidades. Quanto mais capacidade ela tinha, mais lhe delegavam tarefas. E gradualmente ela foi entrando mais e mais na vida de todos, tanto no trabalho, do qual o casal Matsuoka dependia, quanto na vida dos filhos: Empregada, secretária, co-administradora, balconista, professora particular e sabe-se lá mais o que mais. Os Matsuoka não podiam reclamar dos resultados. E Helena, no seu papel de gerente, já estava seriamente pensando em comprar um segundo persocom quando o pequeno Edilson, nos seus dez anos de idade, entrou no escritório aonde sua mãe assinava os papéis que a perscom havia preparado, com um grito:

MÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃEEEEEEEEEEEEEEEE!!!!!!!!!!!!!!!! A Déia deu problema!

– O que? Onde ela está?

– No caixa!

– E você deixou ela sozinha, ô criatura? E se aparecer um cliente?

– Na verdade o cliente tá lá esperando o troco.

O QUÊ?

Helena não demorou a descer. Ao chegar no andar térreo, deu de cara com o cliente de pé ao lado do caixa, batendo o pé, com as mãos na cintura. Ele estava realmente impaciente. A persocom estava sentada, vestindo um traje de empregadinha, com os olhos fechados.

O Cliente tentava disfarçar sua impaciência. "Boa tarde..."

– Boa tarde... desculpe o incômodo. Vamos resolver isso rapidamente.

– Não, não há muito problema. Eu só paguei uma nota de 10000 Ienes e estou esperando o troco...

– Ah, tudo bem! E quanto é que custa o que você comprou?

– Na verdade eu não sei.

– O senhor não sabe?

– Essas coisas não são caras e o scanner lê tudo. Porque eu iria me preocupar?

– O problema é que ela é nosso scanner.

– Sua persocom?

– Isso mesmo. Ela tem armazenada todos esses códigos.

– Mas e se houver uma emergência?

– É fácil – disse ela, que em seguida voltou a cabeça para dentro, abriu a porta do depósito e gritou: Filho!!!!

De dentro, ouviu-se uma aborrecida resposta: "Tô ocupado!!!"

– Venha cá logo, seu infeliz, a Déia deu defeito!

O QUÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊ??????????!!!!!!!!!!

– Agora ele vai aparecer rapidinho – disse Helena, com um sorriso sarcástico.

Os passos se ouviam em alta velocidade, enquanto a mãe se aproximava de volta para o caixa. Falou "Edilson, pega lápis e papel." em português claro para seu filho e indecifrável para cidadãos nipônicos – não queria que o cliente percebesse que eles estavam tão tontos quanto ele.

– Tem um bloquinho não?

– Vai saber, aqui se imprime tudo, na hora de escrever fica essa dor de cabeça sempre... Ninguém sabe mais onde andam as canetas em casa.

O menino saiu correndo e passou pelo seu irmão mais velho, que descia apreensivo. "Fala, mãe, como a Déia está?"

– Não muito diferente do modo de repouso. A gente sempre deu upgrade, sempre deu revisão e volta e meia faz backup, então pode ter certeza que os dados não vão se perder. Deixa de choro e vai buscar o técnico, depois liga para seu pai. E enquanto isso, vamos resolver tudo agora mesmo!

"Agora mesmo" havia tomado mais de cinquenta minutos de cabeça quebrada, com direito a várias folhas de papel cheias de cálculos incertos amassados.


O técnico levaria uma meia hora para chegar. Conseguiram convencer o cliente a não procurar outra loja por mera sorte: como ele tinha outros tipos de produtos a comprar, ele deixaria as compras separadas e faria o que tinha que fazer pelas redondezas, para mais tarde retornar. Ofereceriam um desconto de vinte por cento em compensação pelo tempo perdido. O problema é que sem Déia, como é que calculariam vinte por cento de qualquer coisa?

– É fácil – disse Junior. "Basta a gente dividir por cem, e multiplicar por vinte..."

– Uma pergunta só... você consegue dividir algo por cem?

– hm... se me lembro... acho que isso aprendi no primário... acho que você põe uma vírgula a partir do último número, para trás. Mas não lembro se são três do número inteiro ou se são só os zeros...

– Vírgula? Uma coisa, quanto dá cem dividido por cem?

– Agora você me pegou, não sei se é zero ou é um.

– Mas não diz que um número não pode ser dividido por zero?

Junior permaneceu parado, pensativo. Contou nos dedos. Respirou fundo. E se voltou para sua mãe com a resposta definitiva para qualquer questão: "Vamos esperar o técnico."

– Ô droga... – disse ela, frustrada. "Eu não sei porque concordei em comprar essa coisa inútil!"

– Ah, mãe, agora é coisa inútil?

AGORA NÃO SABEMOS O QUE FAZER!

– Ora, deixa de histeria e vamos ser honestos – ela poupou o seu dinheiro e evitou muita dor de cabeça!

– Como assim?

– Ora, vamos aos cálculos: Imagine que eu decidisse arrumar uma namorada na escola. A candidata mais provável quando eu tinha uns quatorze era a Akane, ela era bonitinha e cheguei a fazer várias vezes uns trabalhos de escola com ela em sua casa. Pois bem. Uns vinte yens para ida e volta de trem, porque ela não morava tão perto. Contando que eu provavelmente teria que encontrá-la e levá-la de volta para a casa, portanto fazendo mais uma viagem extra, eu teria uns sessenta yens no mínimo. O cinema é caro, uns 1800 yens, dá 3600 para nós dois e ai de mim se eu não escolher um filme que ela goste, porque todo esse investimento iria para o lixo. Tem sempre uma voltinha em algum lugar, e o boliche, por exemplo, tá na faixa de uns 500 yenes por jogo e, novamente, ai de mim se a garota se empolgar... Depois, sempre tem um lanchezinho. Um Mac Trio no McDonalds dá uns 367 yenes... e por aí vai. Em média, dá uns cinquenta mil por baixo e acredite, na maioria das vezes é pouco. Em três semanas, a gente consegue convencer a menina para ir para a cama e como as paredes são finas e você não quer que os vizinhos se incomodem, o motel custa uns trinta e sete mil... Portanto, para eu transar com uma menina, paguei quase cento e noventa ienes durante todo esse tempo, com um custo de manutenção semanal de oitenta e sete mil por transa! Ora, você sabe que no trabalho a Déia é sua empregada mas fora dele ela é minha e de mais ninguém. Todo mundo concorda com isso. Não vamos ser hipócritas, você sabe que ela não fica no meu quarto após as dez para a gente jogar truco antes de dormir, e isso te dá um pouco mais de segurança quanto ao que meu pai possa achar de uma persocom circulando livre, leve e solta aqui dentro de casa. Ele não ia comer a nora.

Qualquer cliente tipicamente japonês e amante da discrição ouviria aquela lavagem de roupa suja com um rosto atônito. Helena se exasperou, irritada. "Mais respeito, moleque! Maneira a linguagem ou te dou uma coça!"

– Tudo bem, tudo bem... Mas voltando: Um persocom custa mais ou menos o que custa um carro mais barato, cerca de um milhão de ienes. Portanto, na décima segunda vez que eu fui para a cama com a Déia, já na metade do ato ela pagou o seu investimento e passou a economizar oitenta e sete mil por semana. Sem falar que com ela eu não tenho pais de namorada para encher o saco, você sabe onde e com quem o seu filho mais velho anda, e convenhamos, você confia nela mais do que poderia confiar numa dessas menininhas sem cérebro, com bronzeamento artificial e cabelo oxigenado que pipocam na rua; e não me meto em encrencas no fim de semana. Portanto, te poupo muita dor de cabeça e preocupação. Investimento bom, sim senhora!

Helena ficou pasma com esse raciocínio. Era lógico. Era perfeito. De repente, algo lhe passou pela cabeça e sua postura se tornou agressiva. "Ei, com essa matemática toda você pode muito bem pagar o troco ao cliente!"

Junior ficou desnorteado. Sorriu amarelo. Suas mãos pareciam não saber onde segurar. Titubeou um pouco antes de falar.

– Bem... não fui eu que fiz esses cálculos. Foi a Déia e eu imprimi tudinho, está aqui... – e nisso ele tirou um papel do bolso. "Eu gosto de jogar isso na cara dos babacas que não tem dinheiro para comprar uma persocom e ficam me esculhambando, por isso decorei esse discurso..."

Helena puxou o papel da mão de seu filho, irritada. Ele voltou os olhos para fora da loja e disse, com um misto de animação e alívio:

– Ah, o Técnico chegou! – e nisso este entrou no estabelecimento, em passos largos, dizendo: "Suponho que este seja o presunto", apontando para Déia.

– Ela vai ficar bem, doutor? – disse Junior, visivelmente perturbado.

– Sempre que ouço essa frase sinto vontade de largar o emprego. Seja paciente, rapaz, é só uma máquina! Toda máquina tem conserto!

O técnico não perdeu tempo: abriu as "orelhas" de Déia e puxou a fiação ali mesmo e a prendeu a um pequeno laptop de bolso. Leu tudo rapidamente. "Más novas. Sua persocom estourou sua capacidade."

– Mas como? Fazemos upgrade no sistema sempre que podemos!

– É verdade, vocês são bem regulares. Mas de quando é esse modelo? Cinco, seis anos atrás?

– Meu caçula tinha uns quatro ou cinco quando ela chegou.

– Hm... olha, vou ter que levar para examinar, mas eu desconfio que vocês, se quiserem preservar a sua persocom, vão ter que apelar para a customização de algum modelo novo.

– Customização?

– É. Muitos clientes não gostam de ver o processo, porque tendem a enxergar seu persocom como uma pessoa. Mas essencialmente eu encomendaria um modelo novo e de maior capacidade, do mesmo fabricante e com a versão mais recente do sistema operacional básico. O que eu faria é encomendar as medidas mais do que exatas do modelo, tem como eu averiguar isso sem margem de erro na oficina, e enviar o rosto antigo para a fábrica junto com o pedido, o que torna o produto mais caro. Isso tem que ser feito por um técnico porque envolve um certo nível de desmonte. Chegando o produto, é só transferir os dados para a nova Persocom, e quando ela retornar, será exatamente a mesmíssima... Déa, é esse o nome? Bem, será mais ou menos como se seu filho voltasse curado do hospital, como se fosse o mesmo persocom... na verdade É o mesmo persocom, apenas trocou de pele, por assim dizer – e nisso ele puxou um bloquinho. "Eu vou adicionar vinte por cento do custo do modelo com a fábrica, mais o custo por hora dos dias em que ele ficar na minha oficina..."

– Peraí, mas ela vai ficar QUANTOS dias na sua oficina?

– A fábrica leva uns dias para responder.

Junior só faltou entrar em choque. "Não podemos ficar DIAS sem a Déia!" O técnico entendeu tudo ao bater os olhos no moço. Respondeu de forma seca: "Se você quebrasse as pernas em um acidente, não teria que ficar uns dias no hospital?"

O rapaz baixou a cabeça.

– O problema é que ele está certo. Ela não é só uma funcionária-robô e uma parte da família. Ela toca toda a nossa parte financeira...

– Deixa eu adivinhar – cortou o técnico – "Todo o dinheiro transita pela mão dela, liberando você dessa função dentro de casa, certo, Sra. Matsuoka?"

– Bem... certo.

– Cuida da parte burocrática, verifica documentações...

– Sim...

– Ela também faz o serviço de casa, certo?

– Perfeitamente... ela limpa a loja também...

– Até me arrisco a dizer que ela ordena os horários de vocês como um relógio, como a senhora deve ter programado um dia...

– Não tenho o que reclamar dela, essa é que é a verdade...

– Eu também já entendi que seu filho a usa muito, a julgar pela ansiedade dele.

– O senhor já está abusando!

– Desculpe, não quis insinuar nada. Na verdade eu estava apenas adivinhando. O que aconteceu com vocês hoje acontece mais do que se pensa. Todos os dias – disse ele, anotando os cálculos. "Olha, eu posso a partir da memória dela compilar as diretrizes básicas para programar um substituto. Eu vou usar um modelo mais velhinho, mas é apenas para vocês não ficarem sem persocom durante uma semana ou mais. Mas vou cobrar o aluguel dele por dia, ele estará registrando... Bom, essa é a conta da consulta, mais o custo do sinal. Eu sei que é tudo muito caro, mas convenhamos, o prejuízo de vocês sem um persocom será muito maior.

– Não será preciso alugar persocom nenhum – disse uma voz da porta da loja.

Era Marcelo, saindo de uma caminhonete. E dela, saíram dois carregadores, trazendo uma caixa de papelão tão grande quanto uma geladeira. Era uma persocom novinha em folha, comprada em uma loja de departamentos.


Déia foi para o conserto, apesar da compra de um persocom ter saído mais em conta do que o próprio conserto. Ela era parte da família. A loja fechou para balanço no dia seguinte, o tempo para definir uma programação básica para o novo persocom até que Déia retornasse. Seria necessário redefinir a rotina de trabalho, mas definitivamente, Déia não seria mais sobrecarregada.

À noite, após a janta, Junior procurou sua mãe na sala, onde ela lia um pequeno livrinho de poucas páginas, com atenção.

– Mãe?

– O que foi?

– Bom, é que eu estava pensando... depois do que aconteceu hoje...

– O que tem?

– Eu devo começar a trabalhar assim que estiver na faculdade. Estou pensando em comprar um persocom também.

– Ué, cansou da Déia? – disse ela com um sorriso malicioso.

– Não, eu quero levar a Déia. O novo persocom ficaria com vocês.

O sorriso sumiu do rosto dela. "Aconteceu o que eu temia", pensou. Levantou-se e pôs a mão no ombro do rapaz.

– Você é quase um adulto, Junior. Se você fizer isso, não vou impedir. Mas eu e seu pai conversamos e conversamos muito hoje, depois de tudo isso...

– E?

– Assim que Déia voltar, vamos substituir a nova persocom, a que veio hoje, por um bando de notepersocons.

O quê?

– Isso mesmo. Pequenininhas, bonitinhas, encantadoras, educadas. Fizemos um orçamento. Minha idéia é que com o tempo tenhamos vinte e cinco notepersocons atendendo os caixas, lendo os preços, atendendo os clientes, que nem pequenos ajudantes de papai noel circulando o tempo todo dentro da loja. Todas com vestidinhos bonitinhos. Vamos fazer sucesso, as pessoas vão achar uma gracinha e entrar. Se alguém quiser meter uma de nossas notepersocons no bolso, as outras todas vão gritar "LADRÃOLADRÃOLADRÃO" até encher o saco da vizinhança – dizia ela, gesticulando, animada com sua idéia. "E uma delas pode muito bem ajudar o Edilson nos estudos, então não vai fazer falta."

– M-mas quem vai ajudar a arrumar a casa?

– Ainda teremos a Déia enquanto você não for cuidar da vida. E chegou a hora de ensinar algo sobre responsabilidade ao seu irmão mais novo, ele não vai morrer se arrumar o próprio quarto e lavar os próprios pratos. Quanto a você, não tem muito mais jeito, então acho melhor levar a Déia mesmo. Não que eu não goste dela. É difícil diferenciar um persocom de gente de verdade, a gente acaba se apegando mesmo. Eu não te culpo. Como você bem definiu hoje de tarde, ela acabou virando minha nora – e realmente você poderia ter me arranjado uma nora pior, mas se fosse assim, seria uma dessas coisas que acontecem na vida. Então vou pôr a cabeça no lugar, agir como adulta e dar minha benção para a menina. Se é que eu posso chamar de menina.

– Mas...

Escuta, Junior. Sua persocom pode ter me salvado muito dinheiro no bolso, mas o preço que paguei foi muito mais alto do que isso. Eu quero ter netos. Você sabe, seres andantes, pulantes e gritantes de tamanho médio, maiores que um notepersocom. Aqueles que estão ficando mais e mais raros a cada dia. Crianças, você já viu uma?

Ele ficou silencioso. Ela prosseguiu: "Eu não engulo o discurso de alguns, que a felicidade não é igual para todos. Só sei que eu e seu pai somos imperfeitos, estamos ficando velhos e gordos, não importa o quanto eu malhe. Mas somos um casal. Isso inclui saber ceder, inclui saber reconhecer a pessoa do lado, alguém que tem suas vontades, gostos e manias assim como você tem as suas. Todo mundo passava por isso, mas você encontrou uma pessoa só para você, que vai gostar de tudo o que você gosta, e concordar com tudo o que você diz. Sem esforço. E sinceramente... bem, a comodidade é boa mas falta de esforço faz muito mal. Pode ser que se isso existisse quando eu tivesse quinze anos, talvez eu caísse nessa, e não sei se dá para culpar ninguém por isso. Não sei mesmo. Só sei que há felicidades que são muito egoístas e se eu não ensinei isso a você, quero que o Edilson aprenda antes que seja tarde demais.

Houve um momento de silêncio. Ela se levantou e fechou o livrinho.

– Ah, o cliente voltou. O novo persocom fez a operação em segundos, foi uma coisa muito básica. Ele nos trouxe isso de presente, juro que eu fiquei com vergonha. Fique com ela, caso Déia tenha problemas de novo – e após essas palavras, Helena deixou a sala para assistir televisão ao lado do marido. Ela queria ficar bem juntinha dele naquela noite.

Junior pegou o pequeno livro de sua mãe. Começou a folheá-lo.

Era uma apostila de tabuada.