PERSOCONTO Nº 5
Akamori Naoko era uma menina comum de quatorze anos, e como de costume nessa idade, ela se apaixonou perdidamente. Claro, ela teve paixonites devastadoras desde pouco antes da sua primeira menstruação, lá pelos doze anos mais ou menos, como se sua psique soubesse que estava próxima demais a data em que seus hormônios entrariam em polvorosa, acionando os neurotransmissores químicos do cérebro para injetar no sangue todas aquelas sensações esquisitas: coração batendo com facilidade; suor frio; palpitações; tremedeira; enfim, o de praxe. A ciência tem nomes para isso e se chamam dopamina, feniletilamina e ocitocina; mas para uma moça de sua idade, palavras como "amor" e "paixão" eram mais sintéticas e não lembravam a ela aulas que a faziam dormir.
Para os fins desta história, vamos chamar o que ela sentia de "amor" e "paixão", então; e em termos práticos, sua, hm, paixão se manifestava através de escritos açucarados em uma agenda cheia de adesivos brilhantes ou fotos coladas, recortadas de revistas. Que ela escondia da forma mais discreta possível, dentro da fronha do seu travesseiro – não era a toa que ela preferia fazer sua cama ela mesma. Não era a toa também que qualquer pessoa que deitasse a cabeça no seu travesseiro podia sentir algo duro, e rapidamente acharia o livrinho, lacrado a chave. E esta também não era muito difícil de se achar, escondida na primeira gaveta, nas páginas de um livro de endereços que ninguém abriria – mas qualquer visão lateral revelava o volume entre as páginas, impedindo o livro de se fechar completamente. Naoko não era uma menina tão perspicaz assim.
Foi assim que Suzuki Hiromi, sua melhor amiga, descobriu que Naoko estava apaixonada por Narayama Kenichi(ou melhor, Narayama-sempai), quando ambas foram fazer o planejamento de um trabalho escolar a ser executado em sala de aula. Aluno mais velho(daí o sempai), do time de natação, atlético, relativamente atraente... sim, apenas relativamente. Ele não era realmente um galã – na verdade os persocons jogaram os padrões estéticos tão para o alto que mesmo as pessoas mais lindas, de ambos os sexos, acabaram descendo na escala de classificação para "ah, tá bom, são bonitas". Dessa forma, Narayama-sempai era classificado pelas meninas como "bonitinho". E para Naoko isso parecia ser suficiente, como atestava o nome "Kenichi" escrito ad nauseum com canetinhas cor-de-rosa nos cantos vazios da agenda.
Hiromi não podia negar que estava se divertindo. Claro, agendas de adolescentes apaixonadas são uma leitura assustadoramente tediosa, mas a graça aqui era simplesmente o flagra naquilo que sua amiga não gostaria que viesse a público. E Naoko realmente não gostou nada:
– HIROMI!
Naoko estava prestes a atirar uma bandeja de salgadinhos na cabeça de Hiromi. Esta não perdeu a cabeça e deu um sorriso.
– Ah, Naoko... acha mesmo que todo mundo já não sabe que você está apaixonada pelo Narayama-Sempai?
Naoko ficou tão vermelha com essa frase que esqueceu a raiva. Hiromi sabia como lidar com a amiga. Ela era previsível. Pôs a bandeja na escrivaninha.
– S-s-sabem mesmo?
– Já é artigo de fofocas há muito tempo. É que nem aquela frase... o marido traído é o último a saber. Na verdade toda vítima de fofoca é sempre a última a saber, o marido traído não é exceção. É um clichê.
– Ah nããããããããooooo... disse a moça, sentando no chão, cobrindo o rosto de vergonha.
– Olha, amiga...
– Não fala "amiiiiiga" com esse tom... fico com a impressão de que tem alguma coisa errada vindo por aí...
– ...melhor partir para outra. Porque você não compra um persocom bonitinho?
– Acha que eu não tenho chance?
Hiromi sabia ser paciente. Respirou fundo e se preparou para o que poderia ser uma longa conversa.
– Naoko, você não tem chance.
– Porque não? Eu por acaso sou tão feia assim?
– Bem... não. Você não é, e estou falando a verdade. Claro, poderia melhorar um pouco o potencial de sua aparência, mas feia, mesmo, você não é. E você é gentil, e os homens gostam de moças gentis, que eles sintam que não irão dizer a eles o que fazer. Claro que eu banco a gentil o tempo todo, até que eles fiquem doidinhos por mim e façam o que eu disser – disse, com um sorriso sardônico de orelha a orelha que era sua marca registrada. "Olha, eu fiz esse lanche só para você..." disse ela com uma voz fininha.
– Então porque eu não tenho chance? – perguntou, deprimida. Hiromi sabia a resposta, mas uma vez que ela poderia ser contestada...
– Escuta, você quer me acompanhar amanhã após a escola? Eu quero te mostrar uma coisa.
Na hora da saída, usualmente as duas costumavam bater perna nas calçadas do bairro de Shinjuku para olhar as vitrines das lojas. Elas adoravam vitrines. Mas abriram uma exceção em sua rotina para esperar na porta da escola. Foi quando viram Narayama-sempai, ainda com a pele úmida da chuveirada que tomou assim que saiu da piscina, devidamente penteado, perfumado e arrumado.
Não é necessário dizer que Naoko o olhava como se seus olhos fossem de manteiga e suas pernas, de gelatina. E uma vez que gelatina fora da geladeira perde a consistência e se liquefaz, Hiromi esperava que aparecesse, logo, aquilo que ela pretendia mostrar – antes que ela testemunhasse alguma cena da qual Naoko iria se envergonhar muito em seguida. Narayama-sempai esperava como de costume, olhando para o céu. Para qualquer ser humano, algo comum, para Naoko, era uma cena pictórica. E então um Toyota de último tipo parou na calçada. Hiromi deu um puxão na manga da camisa de Naoko.
– Agora olhe só, Naoko-Chan.
Após estacionar, uma moça linda, de longos cabelos acastanhados, não muito mais alta do que Naoko mas com um corpo desenvolvido, com um ar adolescente e um sorriso cristalino, desceu do carro para andar, com a elegância de uma princesa, para a calçada. À distância, os pontos brancos nas laterais de sua cabeça eram difíceis de se ver por serem relativamente pequenos, ocultos por sua sedosa cabeleira – não eram muito maiores do que um par comum de orelhas. Mas não restavam dúvidas.
Era uma persocom.
Narayama-sempai se aproximou dela. Não iria beijar os seus lábios em público, mas tocou em seu rosto e a olhou como se ela fosse uma revelação divina. Ela respondia ao olhar com a mesma intensidade apaixonada, afinal, persocons são inteligências interativas e respondem de acordo com as situações apresentadas como se espera que se reaja a elas. Assim, se criava a ilusão de que ela era capaz de sentimentos. Era a chave do sucesso do produto: como um programa de computador não tem como distinguir se está rodando em uma máquina real ou em um computador, ou melhor, se seu ambiente é real ou ilusório, poderíamos chamar a eles de "emuladores de gente" – com a diferença que lhes foi incutida sua condição de "emulação", ou melhor, sua natureza de máquina como elemento consciente. Não que isso faça tanta diferença. A cada modelo os persocons pareciam mais eficientes nesse sentido, e com certeza a modelo com que as duas jovens se deparavam era um topo de linha. Assim, Naoko poderia se permitir ficar completamente arrasada.
Hiromi colocou a mão no ombro de sua amiga. "Quer vir à sorveteria comigo? Desta vez eu pago."
Passada a ressaca de sorvete que a aprisionou no banheiro na manhã seguinte de sábado, Naoko decidiu matar o tempo lendo revistas teen. Boy Bands. Clones de cantoras americanas. Matérias sobre a primeira vez. Testes do tipo "se seu namorado se apaixonar por outra menina". Enfim, o de praxe. Mas uma coisa que chamava a sua atenção é que todas as meninas, por mais bonitas que fossem – e elas, há menos de uma década atrás, despertariam inveja de muitas das leitoras – não chegavam a representar competição real para as persocons mais bonitas. Não era à toa que as agências de modelos evitavam usar a elas em suas campanhas: surgiu um corporativismo muito forte da parte dos casts das agências, quando se ensaiou a absorção das robôs a esse campo de trabalho também. E o dinheiro dos que tinham a carreira a perder era grande o suficiente para que modelos se tornassem um grupo de pressão como poucos. Ninguém queria dor de cabeça nas indústrias audiovisuais e editoriais que tanto dependem delas.
"Mas um persocom não pode ser tão superior a um ser humano assim", questionou a moça. Foi olhar no espelho. E não se achou grande coisa. Não tinha muitas curvas, achava seus seios pequenos, a bunda inexistente. Na verdade, mesmo perto das modelos, ela não tinha muita comparação. Talvez ela fosse atraente para algum pedófilo enrustido, com essa ausência generalizada de atributos. Mas a julgar pela Persocom de Narayama-Sempai... bom, ele era normal. Ela era muito mais bonita, pura e simplesmente. Não havia o que discutir.
Mas algo cruzou sua mente: essas moças também não eram muito naturais. Desde a cor dos cabelos até a quantidade indecente de botox e maquiagem, elas também davam seus passos largos à artificialidade para parecerem mais bonitas. E quanto mais velhas elas ficavam, mais elas tinham que se customizar para se manterem no ramo.
Na frente daquele espelho, ela pôs sua coluna ereta. Caminhou como uma modelo. Sentiu-se insegura, mas repetiu os passos até sentir que podia fazer aquilo. Juntou as mãos e se curvou para a frente. "Bom-dia, Narayama-sem..."
Não concluiu. Não era assim que ela queria se dirigir a ele.
– Bom-dia, Kenichi-Kun. Em que posso fazer você feliz?
A primeira coisa a ser pensada era o que ela podia fazer para melhorar sua aparência. E o passo óbvio era remover as gordurinhas mais renitentes de seu corpo. Não, ela não era gorda – mas todo mundo sabe que não adianta se dizer isso para uma mulher quando ela acredita no contrário. A maioria das pessoas, no entanto, não se preocupam em ir ao médico para perguntar se é o caso de se fazer uma dieta – preferem as dietas da moda, ou as recomendadas por revistas pouco confiáveis, ou por livros que só são solução para a conta bancária dos autores. Perder é até fácil; mas como essas dietas em geral não são muito balanceadas, o organismo acaba sentindo falta de alguma coisa importante também – e só se sente essa importância mais tarde do que se gostaria.
Mas isso não era um incômodo imediato para Naoko. O mais importante era parecer bonita, enquanto os resultados a longo prazo não chegaram. Isso envolvia roupas novas, dessa vez calculadas para melhorar o que ela tinha de atraente e minimizar aquilo que deveria ser escondido.
Não deu para comprar tudo o que ela queria, embora os primeiros resultados fossem animadores. Os meninos começaram a dar discretas olhadas nela. Era pouco, mas era um começo. No entanto, começar não adianta nada sem uma real intenção de concluir tudo de forma bem-sucedida. Não restavam dúvidas: Para se ser bonita, precisa-se de dinheiro – e este não viria por acaso. Haviam se passado uns dois meses após o início do processo, e ela se aplicava no estudo de todo um modo persocom de ser. Isso caiu bem para a sua imagem, porque a sociedade japonesa sempre prezou a polidez. Essa atitude a fazia parecer muito feminina. Não era a toa que tantos homens se apaixonavam perdidamente por suas persocons. Poucas pessoas podem ser mais polidas e atenciosas do que um robô.
Mas Naoko tinha uma tendência a desanimar ante as contrariedades. O seu objetivo primário ainda era o seu tão desejado Narayama-Sempai, e apesar dos olhares dos rapazes começarem a se avolumar mais do que ela esperava, ela não sentia grandes avanços no interesse do moço. Tentara puxar conversa uma ou duas vezes, mas nada muito relevante aconteceu. E isso a deprimia. Após sair da escola, começou a vagar um tanto sem rumo e acabou sentando em uma praça qualquer, onde volta e meia algumas persocons solitárias passavam. Talvez se houvesse um pouco mais de tempo, ela considerasse a idéia de prestar atenção nos rapazes que a observavam.
Mas é claro que não houve. Um senhor de meia idade sentou-se ao seu lado sem que ela se desse conta.
– Deprimida?
A surpresa a fez se endireitar a coluna. Juntou as mãos. Havia acostumado a ligar seu "modo persocom" na presença dos outros.
– Não, senhor, eu estava apenas cansada.
– Entendo... é raro ver uma moça por aqui hoje em dia. Está vendo as persocons?
– É mesmo... o que elas fazem aqui, sozinhas?
O homem ficou sem jeito.
– Gostaria de me acompanhar pelo quarteirão? Se você quiser, é claro...
O homem em si era alguém que só precisava falar. Casado, com uma filha pouca coisa mais nova do que Naoko e uma esposa com a qual mal falava. Trabalhava demais e tinha medo que a mulher tivesse um amante. Ela sentia pena, mas não podia fazer muita coisa, e se limitava a ser uma boa ouvinte e consolar a ele como podia. Caminharam com calma, e quando ela se deu conta, já estava anoitecendo.
Haviam voltado ao ponto de partida, o banco da praça.
Estava ficando escuro, e por isso ela não percebeu que ele tirou a carteira do bolso e colocou algumas notas em sua mão. Parecia constrangido. Se virou e saiu, deixando uma Naoko surpresa demais com o que havia acontecido. Ela viu o homem se afastar. Não conseguiu largar o dinheiro que ele havia deixado em sua mão.
Só naquele momento ela se deu conta do que havia feito.
Ao contrário do que as pessoas costumam pensar, o enjo kosai – o serviço de acompanhante que colegiais prestam a homens mais velhos – não consiste necessariamente em prostituição. Não num primeiro momento. Muitas vezes o ato de acompanhar se dá no sentido literal da palavra: a maioria dos "clientes" não passam de homens velhos ou de meia-idade muito solitários em sua vida matrimonial, que só precisam de alguém que os ouça enquanto passeiam e falam – assim como o homem que acompanhou Naoko. Boa parte das kyogaru – a subcultura das patricinhas de onde saem muitas dessas acompanhantes, a ponto do kosai ser identificado com elas – não conseguem ter estômago para passar desse estágio. Por isso, em muitos casos elas decidem mudar de abordagem, usando suas persocons para fazer a parte "nojenta" do serviço. Se tornam suas cafetinas, por assim dizer, o que rareou o número de acompanhantes humanas – e tornou o preço destas bem mais alto. No entanto, sempre há alguém disposto a pagar mais caro, e como fatalmente a primeira proposta acaba vindo, não se pode dizer que ela vem "quando menos se espera".
No caso de Naoko, ela veio de forma simples. Ela já havia conseguido, em poucos meses, três clientes regulares e com dinheiro – dinheiro que estava bancando seus primeiros grandes tratos na aparência. E fazia o que se esperava: escutava e os estimulava a falar, o que até então não lhe parecera nada realmente aviltante. Ela treinava em casa toda aquele gestual tipicamente persocom e estava aprendendo muito bem. Isso se refletia no seu trabalho: eles se sentiam confiantes, porque ela mantinha a discrição de uma dama. E sua aparência, gradativamente, mais e mais evocava isso.
Foi quando o cliente que chamaremos, por conveniência(leia-se, não queremos ser processados), de Sr. K., levou Naoko para a porta de um hotel cinco estrelas nas imediações de um bairro não tão movimentado. Por um instante, ela suou frio.
– Vamos? – perguntou ele.
Ela ficou em silêncio.
– Posso ordenar ao motorista que dê meia volta.
Há momentos em que a menos focada das pessoas tem que organizar a cabeça e pôr um mínimo de lucidez na mente. Esse era um desses momentos. Naoko não era tão estúpida a ponto de não saber que, uma vez que o carro entrasse na garagem do motel, não haveria volta. Bem dizem os dekassegui que quem ajoelha, tem que rezar.
No entanto, tudo o que ela conseguia pensar era na pele de pêssego da persocom último-tipo de Narayama-sempai, no Toyota cromado que reluzia ao sol, em Hiromi dizendo "você não tem chance."
– Se isto o fizer feliz, eu estarei feliz – disse ela, com um tom de voz polido, doce, frio e educado, exatamente como uma Persocom o faria.
Duas semanas depois, ela fez a sua primeira cirurgia plástica.
Três meses se passaram. Naoko e Hiromi não se falavam mais tanto quanto antes – Naoko gradualmente perdia interesse pelo que a cercava à medida em que ficava mais e mais bonita, apesar de ser sempre gentil e atenciosa. Talvez gentil e atenciosa demais. Mas Hiromi ainda a via como parte do seu cotidiano escolar, embora já tivesse arrumado um novo grupo de amigas para sair por aí olhando vitrines de lojas, e decidiu tentar restabelecer o contato. Ligou para Naoko. Ela não estava.
No dia seguinte as duas se encontraram na escola. Na saída, Hiromi convidou a velha amiga para tomar um sorvete no lugar de costume. "Eu pago", retrucou Naoko com um sorriso.
Naoko não lhe parecia como antes. Parecia preocupada com o peso. Hiromi desconfiava que ela estivesse interessada em se tornar modelo ou algo assim, o que não seria tão estranho e até explicaria muita coisa, mas havia algo de errado que ela não conseguia entender. Até mesmo as modelos relaxam. Foi quando uma Persocom se aproximou da mesa onde elas estavam, trajando um vestido de garçonete.
– Boa Tarde. Podem me chamar de Mei. Desejam alguma coisa?
Ela não carregava nenhum tipo de aparelho para tomar notas. Não precisava.
– Apenas uma taça de sorvete de morango diet para mim, por favor. Com chantilly, também diet. Hiromi?
– Ahn... um sundae de cappuccino, por favor.
A garçonete persocom sorriu. "Muito obrigado, os seus pedidos já foram encaminhados. Aguardem um pouco, por favor." E realmente eles já haviam sido encaminhados – naquele momento, a mensagem havia sido transmitida a uma impressora localizada na cozinha. A persocom não chegava a ser o mais belo modelo já feito – persocons bonitas demais costumam melindrar clientes do sexo feminino – mas ainda assim era muito bonitinha, e os olhares masculinos se cravaram em suas pernas muito lisas e visivelmente macias.
– Bonitinha, ela, não? – disse Naoko, sem conseguir esconder o desprezo por trás de um tom friamente casual.
– Como?
– Olhe para todos esses garotos. Todos eles, sem tirar os olhos dela... ela é muito bonitinha, não?
– Naoko... acorda. Ela é só uma atendente persocom.
Ela voltou a si. Deu um sorriso contido. "É mesmo, que bobagem a minha. Você pediu um sundae de cappuccino, mas eu me lembrei que eles agora tem um novo sundae com cobertura quente... Acho que em uma próxima ocasião eu devo experimentar."
Não houve "próxima ocasião". Naoko parecia estar sempre ocupada, e com o tempo Hiromi deixou de reconhecer sua amiga na multidão cotidiana da escola, por mais que outras conhecidas em comum dissessem que ela estava ali ou acolá. Desencontro após desencontro, as duas não voltariam a sair juntas outra vez.
Naoko estava meio fraca após as cirurgias de encurtamento lateral e abdomoplastia. Ela se sentia muito "tábua" antes, e a nova sinuosidade que seu corpo ganhou a fazia sentir mais segura para seguir em frente. Tentava seguir as dietas da moda. Havia dias em que não conseguia. Já passou uma semana inteira vomitando o café da manhã e não sentia seu corpo aguentar-se muito bem.
O mais importante é que seus pais não haviam percebido nada. As transições foram graduais. Uma cirurgia de nariz aqui, um aumento nos seios ali... ela tinha que reunir dinheiro entre uma mudança e outra, e como seus pais trabalhavam o dia todo, mal notavam realmente as alterações. Às vezes seu pai, quando a via, dizia que "tem algo diferente em você que eu não sei o que é...", para ouvir uma resposta como "Ah, eu fui ao cabeleireiro. Você notou! O Oshima disse que com esse corte de cabelo meu rosto pareceria mais fino..."
E ele engolia. Sua mãe, por outro lado, estava sempre ocupada demais no trabalho. Seu casamento havia atingido aquele estágio onde o marido só existia na hora de pagar as contas. Naoko ainda procurava manter o foco romântico em sua cabeça. Pensava em Narayama-Sempai, e em como ele largaria de sua persocom assim que os dois vivessem o seu primeiro momento de amor. Jamais deixaria o seu futuro com seu objeto de desejo chegar a esse ponto, ou ao menos ela repetia isso para si mesma – como todas as adolescentes que não querem ter um casamento como o das suas mães, e acabam destinadas a repetir os mesmos erros destas. Mas nem mesmo Naoko percebia que o seu "Narayama-sempai" ocupava um lugar cada vez mais reduzido em seus pensamentos, como se fosse um mero pretexto para o que estava se tornando um fim em si. Ela não estava percebendo que tudo parecia desimportante – nada parecia estar afetando-a mais. Os trabalhos de acompanhante, as notas da escola, nada.
E vieram os primeiros olheiros de agências de moda, convidando-a para testes.
Os gestos de Naoko lembravam a pose pausada de uma Persocom. Seu treinamento auto-didata acabou dando resultados e ela acabara assimilando um tanto da fria elegância que uma persocom tem ao se mover e andar, mesmo quando é programada com uma falsa espontaneidade. E ela estava a cada dia mais bonita do que antes, muito mais bonita, quase tanto quanto uma persocom. Quando lhe diziam isso, ela se sentia exultante. Mas não demonstrava com efusividade. Uma persocom tem que se manter bela, educada, mesmo sua felicidade é contida, embora fosse visível. Uma persocom é doce e apaixonante. Ela precisava ser assim, para alcançar seu objetivo. E mesmo entre tantos profissionais do ramo, que estavam acostumados a ver moças bonitas passarem pelos estúdios o tempo todo, era possível ouvir os suspiros reprimidos. Ela podia sentir um laivo de vaidade crescendo dentro de si, mas apenas sorria de forma gentil e inocente.
Algo então desviou sua mente do objetivo por um instante: ela se deu conta que tinha que se livrar de uma ameaça potencial: os seus serviços como acompanhante. Sabia quem eram seus clientes. O que pudesse ser usado como chantagem contra eles poderia ser usado no futuro contra ela também, tanto pelo crime organizado como, eventualmente, pelos wakarasaseya.
A melhor solução seria fazer bom uso do dinheiro de seus primeiros trabalhos. O primeiro passo era fácil: uma lipoescultura no corpo inteiro, uma pequena cirurgia nos ossos da face do crânio para deixar suas maçãs do rosto mais salientes... essas coisas. Chegou a perguntar ao médico se era recomendável remover um par de costelas para deixar sua cintura mais fina ainda, mas ela foi desaconselhada a isso: costelas regeneram em geral; qualquer esforço nesse sentido seria transitório, e a operação deixa cicatrizes visíveis, que levariam tempo até que pudessem ser removidas por cirurgia plástica. Fixadores metálicos nos ossos das pernas para alongamento dos mesmos estavam igualmente descartados; tomariam muito tempo, seriam fatalmente notados por seus pais e exigiriam de sua parte um recolhimento das atividades de modelo que se iniciariam – e ela gostava de repetir em sua mente essa palavra"modelo", que tanto preenchia sua mente com fantasias. Ela, bela modelo, passando na frente de seu Narayama-Sempai, que larga sua persocom na sua frente, como se fosse uma cena em um anúncio de desodorante. Não poderia parecer arrogante, claro... teria que parecer doce e meiga, como uma persocom. Não, melhor do que a própria persocom que ele tem. Naoko a superaria a qualquer custo. Em seguida, com a imagem completamente distanciada do que ela era – e o processo estava se dando numa velocidade tão natural que dificilmente pareceria aberrativa, na sua opinião, a aqueles que a cercam – bastaria só cuidar da imagem enquanto wakarasaseya contratados removessem esse entrave do seu caminho. "O dinheiro compra todas as soluções" pensou ela. Estava comprando até a invencibilidade em qualquer disputa amorosa que poderia ter com qualquer pessoa, pensava.
Mas por mais que Naoko – com a injeção de auto-estima que se avolumava em si e que estava se encaminhando para a arrogância – pensasse o contrário, ela continuava sendo uma menina não muito perspicaz. E ninguém é menos perspicaz do que alguém que começa a confiar na sua perspicácia mais do que devia. Sua aparência melhorava a olhos vistos sim, e tanto os garotos quanto as amigas percebiam as mudanças, não só físicas, mas de atitude da antes tão destrambelhada mas simpática Naoko. Ela era sempre sorridente e gentil, mas parecia ter a polidez de uma atendente de loja.
Quase como uma persocom.
Quando Narayama-Sempai, ao passar por ela, mandou um rápido "oi" e um sorriso, ela não perdeu a pose e sorriu da forma que havia se educado a sorrir, ao invés de ficar vermelha e agitar as mãos como ela faria antes. Sentia-se mais perto de seu objetivo do que nunca.
Começou a tomar pílulas de emagrecer para não perder o controle do seu corpo quando a vitória parecia estar tão próxima.
Claro que ela não poderia esconder de seus pais a profissão de modelo para sempre. Ela conseguiu garantir sua presença em uma campanha que apareceria em revistas. As provas de prelo já haviam sido enviadas. E com isso, e um gordo contracheque, ela convenceria seus pais, cujas assinaturas haviam sido falseadas nas permissões de trabalho para menores de idade. Simples assim. Conquanto que ela continuasse ganhando dinheiro, eles não se oporiam.
Ela já estava comendo menos, e se preparava para a próxima lipoaspiração – mas ainda tinha algumas fotos a tirar na sua agenda de trabalho. Foi quando ela entrou no seu quarto e viu sua agenda sendo lida por sua mãe.
– Hm.
– Mãe, essa é minha agenda – disse, com a severidade neutra de quem não quer levantar a voz mesmo em momentos de raiva. Havia se adestrado bem.
– Agora que advogados entraram na jogada, ficou um tanto tarde para você querer respeito a privacidade, não?
Naoko estancou.
– Advogados?
– Sente-se, Naoko.
Naoko se sentou na cadeira, sem apoiar os braços na escrivaninha. A pose da sua coluna era ereta, ela juntava as mãos à sua frente, e olhava de forma atenta para sua mãe. Seu pescoço estava esticado e ela transmitia uma fria dignidade.
– Eu não quero saber como você gasta o que ganha ou até mesmo como você ganha, contanto que não traga problemas nem escândalos para dentro de casa. Eu não sabia que você pretendia ser modelo, mas eu deveria ter percebido. Por mim, tudo bem. Você escolheu uma carreira que dá dinheiro e onde se tem que começar cedo, antes que se fique velha demais para isso. Se eu tivesse aparência para tanto, eu teria feito a mesma coisa na sua idade.
Naoko respirou fundo. "Por favor, vá direto ao ponto, mãe."
– Olhe isso. Soa familiar?
Era uma imagem mandada por fax, mostrando um modelo exatamente igual ao de Narayama-sempai.
– Alguém viu suas fotos e reparou que você era... muito parecida com ela.
De repente a ficha caiu.
Naoko encontrou na sua rival um patamar que deveria ser superado. Ela dirigiu todos os esforços nesse sentido. As cirurgias, todas elas. O peso ideal. O tônus físico. O corte de cabelo. Ela não podia ser igual, ela tinha que ser melhor. E tal processo estava, virtualmente, tornando-a idêntica a ela. A semelhança já era óbvia há muito tempo. Ainda haviam diferenças, mas era só uma questão de tempo até que elas se evolassem.
Isso por algum motivo a fez vibrar por dentro. A única coisa que separava sua beleza da de uma persocom era o fato de ser humana.
– Os advogados dos fabricantes dessa persocom ligaram, e estão dispostos a processar você e a agência de modelos por apropriação indébita de imagem.
O mundo de Naoko desmoronou neste instante.
– Entenda, Senhorita Akamori – disse o advogado em seu terno negro – nossas persocons tem um número infindável de variações, mas sempre a partir de um molde comum. Temos um conjunto de faces que não pode ser imitado. Convenhamos, não é interessante para nós que a concorrência possa fazer persocons com rostos iguais aos nossos, não é? Além do mais, qualquer empresa fabricante de persocons pode customizar os seus produtos ao gosto do cliente. Muitos gostam de sentir que têm produtos únicos na sua vida, e por isso pedem mudanças a partir do molde básico...
– Mas eu não sou uma persocom! – Gritou ela, com o mesmo tom alto e derramado de voz que sempre a acompanhou durante toda sua vida pregressa, como se a máscara que construíra para si mesma estivesse ruindo.
– É verdade. Mas está usando um dos nossos rostos. Não seria um problema se a senhorita fizesse mero uso cotidiano do mesmo. Seria como uma customização. É normal que os clientes prefiram fazer uso de apenas um sistema operacional, mas prefiram os shapes básicos de outras empresas. Nesse caso, apenas é uma questão de contratar um técnico especializado para montar um persocom customizado para o cliente. Não é crime. Alguém pagou pelas peças em separado. No entanto, a senhorita pretende usar um dos nossos rostos para se tornar uma figura pública. Ganhar dinheiro em cima do trabalho de nossos designers. Isso é motivo sufiicente para um processo.
– Quer dizer que a única forma de escapar a um processo seria renunciar à minha carreira?
– Os seus contratantes já suspenderam a campanha e podem contratar outra modelo a qualquer momento.
Ela pareceu desmontar na cadeira.
– Eu disse "podem."
Seus olhos, antes focados no chão, se voltaram para o advogado.
– Nós temos uma solução interessante para ambos os lados. Os seus pais já deram a permissão por escrito. A senhorita poderá continuar como modelo. E acredite, será uma grande garota-propaganda. Basta que assine aqui – disse ele, atirando um maço de papéis na mesa. Ela pegou a papelada e começou a ler. Não era muita coisa, mas ela não tinha cabeça para assimilar nada.
Acabou desistindo de ler e foi direto à linha pontilhada. Não se sentia com muita opção.
Talvez humanos não sejam tão diferentes de persocons, no sentido, e apenas nesse sentido, de que tudo em nosso corpo funciona como uma máquina. Inclusive as emoções, transmitidas pelos neurotransmissores do cérebro. E se a ciência tem nomes para o amor e a paixão e se chamam dopamina, feniletilamina, ocitocina e tantos outros, a depressão tem na sua raiz na baixa da produção da Noradrenalina que nos faz ter interesse para o mundo; da Serotonina que nos faz ter auto-estima; e da citada Dopamina que nos faz termos iniciativa para alcançar nossos interesses.
Sem isso, um ser humano se sente caído, inerte, incapaz de fazer a menor diferença no mundo.
Naoko se sentia incapaz, como um liquidificador velho jogado em um canto de garagem. Não se sentia especial, não se sentia mais uma pessoa única no mundo. Talvez nunca tivesse sido. Já se sentia debilitada antes, mas sua autoconfiança sempre a manteve de pé. Agora, não mais. Mas o contrato já estava assinado e ela tinha uma útlima lipoaspiração a fazer em poucos dias, já agendada com boa antecedência. Havia salvo sua carreira. Tentava racionalizar isso, mas não parecia ter resultado.
Não era uma boa idéia fazer a lipoaspiração na debilitação em que ela estava, mas a data das fotos já estava marcada. E ela repetiu isso em sua mente: nesse dia, ela estaria irretocável. Absolutamente irretocável.
Quando ela entrou na clínica, dias depois, ela se movia com tanta graça, falava de uma forma tão pausada e educada, e se deitou na mesa de operação com uma quase-coreografia tão suave em sua rigidez estudada, que as pessoas tendiam a procurar nelas as orelhas de persocom ao bater os olhos em sua figura. Nunca encontravam.
No dia do velório de Naoko, toda a escola foi em massa ao evento. Poucos estudantes se lembravam dela – por uma razão simples. Ela não era mais como algumas pessoas, e só algumas pessoas, se lembravam. Mas quando a viram, tiveram uma visão da qual jamais se esqueceriam por toda a vida.
Jamais haviam visto uma mulher de verdade tão linda quanto ela até aquele momento, em carne e osso – não um persocom – em frente aos seus olhos. E poucos veriam, em vida, algo que chegasse meramente perto do que viam. Pelo menos nascida de mãe humana. Era como uma visão mágica. Retroativamente, começaram a surgir amigas que ela nunca soube que teve no pátio de seu colégio. E Narayama-Sempai, ao olhar para o corpo estendido da moça no caixão, sentiu um aperto no peito, de forma dramática.
Akamori Naoko era a imagem de uma persocom. Linda, perfeita em todos os sentidos. Dona de uma beleza que nenhum ser humano poderia alcançar em vida.
Quando voltou para casa, Narayama estava perturbado pela idéia absurda de sua própria persocom morta, como se uma máquina pudesse ser ridiculamente enfiada em um caixão. Apertou o passo. Quando sua persocom abriu a porta, ele a abraçou desesperadamente, repetindo mentalmente que ela não iria envelhecer, não iria adoecer, não iria morrer se ele cuidasse religiosamente de sua manutenção.
Ele fez amor com sua máquina sem parar durante aquela noite, como se o mundo fosse acabar no dia seguinte, só parando quando ele ficou esgotado, a bateria da persocom precisou de recarga e o sol já havia raiado.
No fim da tarde, quando foram passear, eles andavam de mãos dadas. Ela repousava a cabeça no seu ombro, porque era isso que sua programação a induzia a fazer. E ele tentou não olhar para a vitrine, onde os primeiros modelos de persocons licenciados com a imagem de Naoko foram postos à venda um tanto às pressas, ostentando uma suave expressão de repouso, com sua beleza agora preservada por toda a eternidade.
Ao virar o rosto, ele não notou a jovem Hiromi, parada em frente à vidraça, como ela sempre costumou fazer ao lado de Naoko enquanto ela era apenas Naoko. Olhar para as "Naokos" dava a Hiromi algo no que pensar. E ela nunca gostou de parar para pensar. Era incômodo e só a deixaria triste. Respirou fundo e decidiu procurar outro lugar para passar o tempo, quem sabe o shopping center.
Cedo ou tarde ela encontraria alguma diversão para desligar o cérebro pelo resto do dia. Queria tirar de sua mente a impressão de ver a alma da finada amiga naqueles robôs tão frios. Não que isso fizesse diferença.
A beleza que Naoko alcançara parecia não ter alma, mesmo.
