"Cubra seu rosto
Você não pode disputar a corrida
O ritmo é muito rápido
Você não agüentará..."

Parte II

"Isso é uma fuga, você sabe disso..."

Um par de olhos verdes brilhou com o último vestígio de emoção. Harry teve muita vontade de fechar a porta na cara de seu antigo amigo, mas faltou-lhe coragem. Suspirou pesadamente. Cerrou suas pestanas e murmurou contrariado. Impaciente.

"O que você quer que eu faça, Ron?"

O ruivo, alto, magro e ainda sardento também suspirou, pronunciando aquelas palavras cuidadosamente escolhidas com uma certa dificuldade.

"Quero meu amigo de volta, Harry. Quero você de volta. Não param de perguntar de você... todos estamos preocupados..." ele começou a balbuciar, as mãos se contorcendo. "Você tem de ser forte, Harry... não é como se a vida não continuasse..."

Harry ficou repentinamente arisco, parecia até que uma fagulha de ira se acendera em seus olhos, brilhando como uma chama num mar verde-esmeralda.

"Como... como você tem coragem de me dizer isso? Ela está morta, Ron! Ela era minha amiga, era sua amiga. Aliás, era mais que sua amiga... você a... você a..." mas a palavra fugiu de seus lábios e ele se calou por um segundo, xingando a si mesmo. Xingando Ron. "Como simplesmente pode fingir que nada aconteceu?"

Os olhos azuis do ruivo encheram-se d'água, mas após uma fungada que pareceu doer-lhe até as entranhas ele reprimiu o choro. Suas mãos compridas fecharam-se em punho e ele também parecia repentinamente tentado a fazer algo, como esmurrar Harry por exemplo, embora não tivesse coragem para tanto.

"Pára de ficar dizendo 'ela' e 'ela' como se não conseguisse pronunciar um bendito nome! É Hermione, Harry! HERMIONE!" a voz de Ron ganhou força, ficando mais alta até que ele começasse a gritar. "E ela morreu para que VOCÊ pudesse estar aqui hoje! Mas em retribuição... o que é que VOCÊ faz? Se isola! Se esconde! É assim que você agradece, Harry? A Hermione? A Sirius? A Lupin! Todos eles tornaram nossa vitória possível e você não tem coragem sequer de pronunciar o nome deles!"

Ron se calou, os dedos ainda enterrados nas palmas de suas próprias mãos, as maçãs do rosto tão vermelhas quanto os fios de seus cabelos. Porém, a fúria repentina do amigo causou em Harry uma curiosa sensação de alívio.

"É bom... não é? Dizer aquilo que está entalado aqui..." Harry fez um gesto brusco, indicando seu pescoço. "Aqui... bem no fundo da garganta. Fazer com que os outros se sintam mal com suas palavras..."

O ruivo encarou para Harry com atenção. Calado.

Arrependido.

"Hermione sabia de tudo isso, Ron. Sabia no que estava se metendo. Melhor do que nós dois ela sabia o que fazia... sabia porquê fazia. Hermione não é nenhum mártir... nem ela, nem Sirius, Lupin... nenhum deles quer que nós fiquemos eternamente chorando em cima de suas covas! Como você mesmo disse... todo o esforço dela, deles... não foi por nada. Foi para que gente como eu e você ficássemos vivos... para que pudéssemos fazer as nossas próprias escolhas daqui para frente..."

Ron afrouxara o aperto em suas mãos e mirava Harry com repentina aflição. Uma sensação de urgência tomando conta de suas faculdades tal como um veneno fatal, que penetra no fluxo sanguíneo até chegar ao coração.

Ele sabia que se não fizesse... se não dissesse alguma coisa, qualquer coisa bem rápido... algo ali se perderia...

Para sempre.

Mas ele não soube o que dizer. Novamente, faltou-lhe a coragem.

A expressão no rosto de Harry era tranqüila.

"E quanto a minha escolha..."

Quando Harry Potter finalmente trancou-se no apartamento, Ronald Weasley ficou durante muito tempo parado, sozinho, fitando a porta em sua frente, com suas palavras ecoando de uma forma ensurdecedora em seus ouvidos.

"... eu quero esquecer de tudo".

(...)

Harry não voltara para casa àquela manhã. Não sentia sono, muito pelo contrário. Fazia meses que não dormira tão bem quanto a última noite.

Fingia, ou melhor, tentava afastar a idéia de que Draco Malfoy tivesse algo a ver com aquela estranha sensação de bem estar. Tentava inclusive, não acalentar o desejo quase impulsivo de vê-lo novamente. Aquilo não daria certo... era tão óbvio. À quem Harry Potter achava que estava enganando?

A ele mesmo, talvez?

Malfoy era seu inimigo declarado. Harry se deixara levar pela beleza pungente do loiro, pelo clima pesado e sedutor daquele lugar... tinha sido atraído como um rato pelo cheiro de queijo fresco... para uma armadilha de lençóis macios e lábios doces.

Harry estancou no lugar e suspirou.

Por que as coisas tinham de ser assim? Por que ele não podia simplesmente admitir para si mesmo que gostara daquilo? Que gostara... que realmente apreciara passar a noite com alguém que em outra situação... numa outra época... alguém ele sequer poderia cogitar olhar nos olhos, sem sentir um embrulho involuntário no estômago?

Olhou ao redor. Era uma rua bastante movimentada e Harry mirou o outra lado da calçada suja, apinhada de transeuntes. Os muros altos e brancos se destacando do restante do lugar.

Um cemitério.

Um belo e sórdido cemitério de trouxas.

Podia ver algumas das estátuas envelhecidas por cima do muro encardido, etéreo e distante.

Sim.

Distante.

Enterrado.

Tudo finalmente passara. Ele não precisava se lembrar, nem conviver com aquela constante sensação de aperto no coração.

Eu não vou ser derrotado por uma memória... – disse ele, com uma raiva crescente dentro de si, comprimindo os lábios de uma maneira que lembrava muito sua falecida tia, caso alguém que a tivesse conhecido o visse naquele instante.

Mas é claro que isso não aconteceu. Ninguém naquele lugar conhecia Harry Potter. Não sabiam o que significava aquela cicatriz em forma de raio, que sua sempre rebelde franja tentava ocultar. Não tinham idéia de tudo que aquele rapaz passara em tão pouco tempo, do número de vezes que aquele par de olhos verdes viu a morte bem de perto...

Não havia nada que você pudesse fazer... – repetiu para si, tentando manter-se calmo.

Aquele era seu mantra, as palavras mágicas usadas para continuar em frente sem cair num redemoinho de culpa... sem enlouquecer.

Harry desviou os olhos dos muros e voltou a caminhar, tentando se distrair com as vitrines das lojas. Passou por uma em especial que vendia jóias. Deteve-se por um segundo frente a vitrine, examinando um mostruário cuja corrente de prata carregava um delicado pingente em forma de estrela.

Suspirou, enfiando as mãos no bolso do casaco e continuando seu caminho, tentando não se abalar à toa.

Mas era difícil.

Tudo que via, tudo que ouvia... podia ser a maneira de falar de uma pequena e sorridente garçonete, o modo sisudo como um homem discutia política na cafeteria para uma pequena platéia... podia ser o filme de terror numa noite fria, o reclame engraçado na televisão, os livros acumulados sobre a mesa de cabeceira... eram as pequenas palavras, os gestos, os sorrisos espectrais que pareciam segui-lo onde quer que ele tentasse esconder- se...

Em vão.

Tirou os óculos com impaciência e limpou-os rapidamente no casaco, devolvendo-os ao rosto logo em seguida. Sentou-se num banco de praça e relaxou os músculos das pernas, então com gestos rápidos tirou um cigarro do maço amassado que tinha no bolso. Acendeu-o com o isqueiro e já estava quase terminando-o quando percebeu uma pessoa sentada ao seu lado, lendo um livro despreocupadamente.

Tratava-se de uma mulher por volta dos seus 50 anos. Eramagra e pálida, com cabelos louros caprichosamente arrumados num penteado da moda. Um chapéu negro lhe assentava a cabeça com delicadeza e as unhas de sua mão estavam pintadas com uma discreta base. Os olhos fixos nas páginas do livro que segurava eram azuis e ao perceber que estava sendo analisada, a mulher voltou-se para Harry e sorriu.

Seus dentes brancos iluminaram um rosto já tão marcado pela idade.

"Teria horas, meu rapaz?" perguntou com simpatia.

Harry baixou os olhos para o pulso quando se lembrou que esquecera o relógio em casa, na noite anterior. Desculpou-se com um sorriso forçado, dizendo que andava com a cabeça na Lua...

"Não se preocupe." Sorriu a mulher loura, fechando o livro sobre o colo, como se naquele momento nem a leitura ou horas realmente importassem. "Se na sua idade não se pode andar distraído, que dirá na minha? Você é feliz, meu rapaz... mas creio que só se dará conta disto quando a felicidade fizer parte do seu passado, sabe?"

Harry arqueou as sobrancelhas escuras, se perguntando quem aquela mulher pensava que era para lhe dizer aquelas coisas... como se soubesse... como se fizesse idéia de tudo que ele passara... como se...

"Eu também não dei ouvidos e penso que deixei passar uma ou outra chance... às vezes nós hesitamos em estender a mão, em oferecer a outra face, em dar uma nova oportunidade e só descobrimos que erramos quando é tarde demais."

As palavras brotaram na boca de Harry antes que ele percebesse que as tinha dito.

"Por que está me dizendo essas coisas? A senhora nem me conhece..."

O sorriso voltou ao rosto da velha mulher.

"Você só pareceu triste demais para um jovem tão bonito. Fiquei me perguntando qual seria a razão desta sombra que tem na face e porque ninguém está fazendo nada para acabar com ela."

Harry arregalou os olhos e deixou a boca pender de leve, descrente. A mulher se levantou e dizendo um rápido "adeus" saiu caminhando calmamente, deixando Harry sozinho no banco da praça apinhada de pessoas que iam e vinham, alheias a sensação de vazio que o dominara por completo naquele exato instante.

Continua.


Nda: Primeiramente, eu gostaria de agradecer de coração por todas as reviews fofas! Vocês me deixaram muito, muito, muito contente... por favor não deixem de comentar! Agora: já vou avisando que (todos) os capítulos estão prontos ou semi-prontos, faltando poucos ajustes para ficarem como eu quero. Serão cinco no total, mais ou menos com o mesmo tamanho. Eu poderia postar tudo de uma vez, é claro... mas assim o texto não cozinharia até ficar no "ponto certo" – por isso o prazo de uma mais ou menos semana entre uma atualização e outra. Eu tinha esquecido de dizer isso no primeiro capítulo, mas eu pretendo atualizar Pontos de Autoridade todas às quintas-feiras (ou sexta-feira, no mais tardar). Inté!