Disclaimer: Os personagens originais de Saint Seiya são propriedade de Kurumada. O trabalho ficcional aqui apresentado não tem fins lucrativos.

Resumo: Shaka é um típico virginiano e quando provocado, muito arrogante. Ele gaba-se de não precisar de Mu, o independente e forte ariano com quem vive uma complicada estória de amor. Agora ele tem a chance de provar sua teoria.

Comentário Pessoal: gente, fiquei muito contente e surpresa com a recepção da fic. Algumas figurinhas conhecidas, que já me acompanham há algum tempo e muitos leitores novos. Tudo o que posso dizer, por agora, é que meus planos de três capítulos persistem, ou seja, esse é o penúltimo. Acompanhem por favor! Meus agradecimentos e comentários individuais estão no final.

Quando For Amanhã

Capítulo 2

Culpa

Deitado na cama, Shaka tentava se acostumar com a maciez do colchão. Dormiam pouco na cama, estavam acostumados ao chão e às esteiras de palha de bambu. Assim mesmo, puxou a manta. Sentia um estranho frio. Nunca sentia frio, o treinamento dos monges budistas era rigoroso, não raro dormia sobre pedras ao relento. Era concentrado e calmo. Contudo, o frio o perseguia. Colocou a mão atrás de si. Ah, sim... sentia falta de Mu. O corpo de Mu sempre junto ao seu... por isso, o frio. Rolou na cama por longas horas silenciosas. A cama cheirava a alecrim, os travesseiros tinham o cheiro do cabelo dele, chegava a perceber as marcas do corpo dele nos contornos do colchão. O cheiro dele era o seu cheiro! Era assustador pensar que aquele cheiro de Mu estaria sempre com ele.

Depois de muito insistir em dormir, e de perceber que seus olhos ardiam pela vigília forçada, teve um surto de criança mimada e começou chorar de angústia porque sabia que precisava apagar, mas não conseguia. Tentou fazer um chá, mas queimou os dedos. Não sabia usar o fogão comum que Saori havia mandado instalar, chorou outra vez porque queria o chá que agora estava derramado no chão. "Mal acostumado": era assim que Mu freqüentemente se referia a ele. Era uma criança divina e muito, muito mimada; depois, o Santuário cheio de luxos de Ares e, então, Mu, que cuidava dele com mais carinho que jamais alguém tinha lhe dado. Os monges o respeitavam, os do Santuário o temiam, mas Mu o amava.

Acendeu os incensos e as velas. Queria meditar, mas não tinha concentração. Pediu ajuda a Buda. Com o juzu entre os dedos entoou os mantras que sabia e os que inventava na sua mente enferma. Quanto mais pedia, mais se sentia só e abandonado. Ouviu passos na casa.

"É você, Mu?"

"Sou eu, Milo."

"Ah..."

Que pergunta idiota... Mu! Mu não ia mais vir. Precisava parar com isso ou os outros iam acabar acreditando que era louco.

"Camus me mandou perguntar se você precisava de alguma coisa."

"Preciso de Mu. Mas como ele não está mais aqui..."

"O que podemos fazer por você?"

"Seu terapeuta ainda te recomenda aqueles sossega-leões?"

"Meus anti-depressivos?"

"Sim, é como chamam, não é?"

"É, o doutor acha melhor eu tomar os remédios." ele baixou a cabeça timidamente. Nunca tinha feito confidências para Shaka. – "Eu não durmo bem sem eles... mesmo que o Camus seja maravilhoso... é a doença, sabe? Acho que vou passar a vida toda tomando Gardenal..."

"Você me arrumaria um ou dois compridos?"

Olhou incrédulo para Shaka. O indiano era um crítico furioso dos remédios tradicionais.

"Para quê, Shaka?" – emendou-se imediatamente. " Quero dizer... são medicamentos controlados, podem até te fazer mal, você não está acostumado..."

"Eu preciso, muito, dormir. E não vou conseguir sozinho. Tentei fazer um chá, mas não sei bem mexer no fogão."

Milo abriu a carteira grande, tirou dela um pequeno saquinho de veludo vermelho.

"Toma. Sempre deixo essas duas aí para emergências... se for dormir fora de casa..."

"Obrigada, Milo."

"Eu mostro a você como usar o fogão, vai... também demorei a me acostumar que as virgens não iam mais me servir!"

"Era mais cômodo... mas Mu não gostava..."

"Claro, ele era uma dona de casa perfeita! Não tinha nada que ele não soubesse fazer!"

"Meu Mu tinha muitos talentos... ouso dizer que todos..."

Milo percebeu que tinha feito uma coisa estúpida. Não devia ter falado daquilo! Bom, mas de qualquer maneira ia dar o tal chá para o homem e ele ia apagar completamente com o Gardenal... sorriu para si mesmo... santo Gardenal!

Viu o estado de petição de miséria em que Shaka deixou a cozinha. Obviamente não ia limpá-la, pois tanta generosidade não era do seu feitio. Mas esquentar a água para um outro chá não ia doer. Shaka não falava nada, mas Milo percebia que os olhos abertos vagavam sem brilho pelo cômodo, sempre se detendo em algum detalhe que só podia ser algo de Mu. Deu graças a Zeus quando a infusão de valeriana, camomila e erva doce ficou pronta e ele pode forçar Shaka a tomar tudo com os dois comprimidos de Gardenal. Dois comprimidos era muita coisa, mas Milo achava que Shaka realmente precisava dormir – dormir não, apagar de vez, blackout absoluto por algumas horas.

Levou-o para cama já trocando as pernas. O Gardenal fez efeito muito rápido nele, que não estava acostumado. Quando ele deitou na cama, ainda gemeu algumas palavras já sem nexo, mas entre uma e outra, sempre repetia-se o nome de Mu, e ele apagou.

Milo saiu de lá e não teve ânimo sequer para procurar Camus. Estava esgotado.

- X –

Os dias que se seguiram à tragédia foram desconfortáveis e estranhos. Todos queriam ajudar Shaka, mas não sabiam bem como, ele fechara-se ainda mais. Saori designou algumas empregadas para que limpassem a casa de Virgem e de Áries, e deixassem alguma coisa sempre pronta para Shaka comer, mas sem alguém que lhe disse expressamente que ele devia comer, ele raramente o fazia. Comia uma maçã ou uma banana, tomava leite e só. Não sentia fome e vagava durante o dia entre as pessoas como uma sombra. Usou todas as suas túnicas limpas e as de Mu, mas sem saber o que fazer com elas depois de sujas, amontoava-as no pequeno baú que Mu destinara a esse fim. Obviamente, quando vivo, Mu jamais tinha deixado as roupas se acumularem daquela maneira. Até que a moça da limpeza atentasse para o detalhe, ele já tinha usado todas, inclusive os sarongues das paredes e dos móveis.

Preocupada, Saori resolveu organizar um dos seus 'almoços' de cavaleiros. Fez questão de que todos os cavaleiros de bronze comparecessem. Normalmente os almoços eram uma fonte de stress – uma medição de forças entre a deusa mandona e seus cavaleiros acostumados à indisciplina do Santuário dos velhos tempos. Ela também costumava dispensar os cavaleiros de bronze do 'evento': eles todos, depois da guerra contra Ares, preferiram morar no Japão, Shiryu, na China. Juntá-los era caro e, mesmo com sua ilusão de ser uma grande deusa, Saori reconhecia que os almoços eram tudo, menos animados.

No entanto, desta feita fez questão de frisar que era por Shaka, o que fez com que o quorum crescesse consideravelmente. Todos fizeram questão de ir e Shura sugeriu que se deixasse uma cadeira vazia para Áries, o que ela rejeitou de imediato como uma idéia macabra. A presença de Mu já era opressiva demais sem essa simbologia hipócrita.

O almoço, apesar da razão nobre, não parecia diferente dos outros. Saori olhava, horrorizada, Milo, Camus, Saga e Aioria comerem com as mãos. Sempre os repreendia pela falta de modos à mesa, mas eles eram homens que foram criados lendo épicos gregos e sentiam-se tremendamente orgulhosos de comerem como Aquiles, Agamemnom e Ulisses comiam nos tempos mitológicos. Obviamente, este orgulho acentuado da rudeza dos gregos antigos estava reservado para a presença da deusa... os bufos furiosos de Saori eram a coroa de louros da 'performance'. Shura, um pouco mais condescendente com a deusa, comia com talheres normais. Aldebaran passeava confortavelmente entre a rudeza grega e o refino de Camus, mas preferia guardar seus belos modos para seduzir mulheres. Na mesa do 'almoço' usava pouco o garfo, e menos ainda a faca. Os cavaleiros de bronze, mesmo depois de serem treinados em localidades tão distintas, mantinham ainda ranços bem orientais e não importava o que lhes servissem, se saíam bem com pauzinhos.

De repente Saori lembrou-se que o almoço tinha como finalidade animar um pouco Shaka. Olhou para o virginiano ao fundo da mesa, e depois de ouvir o terceiro arroto de Seiya, concluiu que já três rodadas do almoço tinham sido servidas, mas o prato de Shaka continuava limpo, intacto. Ela tinha dispensando o serviço das empregadas, porque temia que se espalhasse pela cidade o boato ( verdadeiro ) de que os cavaleiros comiam como campônios da Idade Média; isso não os impedia de se servirem ( muito ) por conta própria. Só que Shaka não se servira. Muito pouco sagaz da parte da deusa: todos sabiam muito bem que Shaka nunca se servia sozinho, Mu sempre fazia isso. Mas todos estavam tão famintos que ninguém notara.

"Shaka, não vai comer nada?" – Saori inquiriu, olhando-o nos olhos sem disfarçar sua curiosidade pelas enormes esferas azuis que pouco puderam ser vistas antes da morte de Mu.

Ele olhou a mesa: pernis, carne de vitela, carne de carneiro, carne de vaca, carne de peru, carne de porco, carne de faisão.

"Sou vegetariano."

"Ah... eu não sabia."

"Claro que não sabia... você nunca se importou em nos conhecer mesmo...". Foi o que a maioria deles pensou. Era bem confortável aplicar a culpa à Saori, se nem eles mesmos tiveram a delicadeza de reparar que ele não tinha comido. A deusa replicou, então, no que pensava ser uma solução.

"Mando vir peixe?"

"Eu sou vegetariano, não como carne." – Shaka repetiu, calmo. Era impressionante como eles eram estúpidos. Zeus! Enquanto Mu era vivo nunca tinha reparado que eles eram tão idiotas...

Eles se entreolharam com estranheza. Os almoços eram normalmente ocasiões de muitas saias-justas, mas nunca daquele quilate. Ninguém sabia o que dizer ou fazer. Até que, finalmente, quebrando o constrangedor silêncio, Aldebaran se levantou, pegou o prato de Shaka e o encheu com os 'enfeites' da mesa: abacaxis, uvas, pêras, morangos, melancias. Pegou a jarra de água de coco – que quase não era notada pela presença do tonel de vinho perto da mesa – e despejou na caneca também vazia de Shaka.

"Pronto, agora come isso." – sentenciou Touro.

"Obrigado." – Shaka começou a comer e eles retornaram aos seus pratos, aliviados pelo grande e desajeitado Aldebaran ser o mais jeitoso de todos eles ali.

Quando o almoço acabou com a mousse de chocolate, todos estavam aliviados. Eles tinham vergonha e medo de Shaka. Temiam por mais bolas foras como a do lauto banquete de carnes para o vegetariano...

O almoço só serviu para deixá-los mais apreensivos e constrangidos – Shaka era uma criança que demandava cuidados que nenhum deles, exceto Mu, podia dar. Ele já não meditava e como Milo previra, o Gardenal deixou seqüelas estranhas: as mãos dele ficaram trêmulas e inseguras por algum tempo, seu sistema nervoso reagia de maneiras inusitadas aos estímulos mais comuns. Quase sempre eles o encontravam sentado nas escadas de Virgem, olhando para o nada. Comia pouco e se ninguém o chamasse para fazer alguma coisa, ele ficava lá. Não dormia. As olheiras eram evidentes na pele muito branca.

- X –

Quando o tempo começou a ficar realmente quente, eles perceberam que, a despeito do calor que fizesse, ele sempre mantinha os cabelos soltos sobre os ombros, ainda que com algum evidente desconforto. Antes ele o prendia em penteados bonitos, coques com pentes de osso, tranças. Ninguém precisou ficar muito esperto para adivinhar que era Mu, coitado, quem fazia as vezes de cabeleireiro e modista do indiano. Penalizados com a situação, o 'esquadrão resgate' resolveu entrar em ação outra vez. O escolhido, claro, foi Milo – ninguém tinha mais senso de moda e estilo do que o escorpiano sofisticado, jovem e bonito – acrescente-se aí que ele seria o único com cara de pau o bastante para fazer o 'approach ' sem medo de visitar outros mundos...

"Shaka... por que você não prende seu cabelo? Faz tanto calor aqui..."

"Não sei como fazer..." – o indiano admitiu. – "Tentei com isso, mas não ficou bom..." – ele mostrou para Milo um elástico sebento e indicou como ele teria feito um horroroso coque prendendo toda a massa dourada de cabelos no topo da cabeça.

Milo olhou desanimado. Que tarefa dura!

"É melhor eu tentar..."

Milo parou atrás dele. Acariciou o monte de cabelo loiro nas suas mãos.

"Você tem um cabelo muito bonito..."

"É, o Mu dizia isso sempre. Eu gostava mais do cabelo dele..."

"O Mu também tinha uns cabelos lindos... uma cor..."

"Um lavanda como o das flores do paraíso."

"Verdade... o corte era um pouco conservador demais... mas assim mesmo ficava bonito nele." – olhou para o rosto de Shaka refletido no espelho. Ele estava triste, mas era lindo. Nunca simpatizara com o virginiano, mas tinha que admitir que ele era um homem muito bonito, traços indianos em uma pele de leite de cabra. Um capricho dos deuses.

" Sabe, Shaka, acho que um coque meio chinesinha ia ficar legal... eu tenho uns pauzinhos e uns grampos dourados..."

"Sabe o que eu acho?"

"O que?"

"Tenho cabelo demais e habilidade de menos. Devia cortar."

"Cortar? O seu cabelo? Esse cabelo lindo, loiro? Você está maluco!"

"Não estou não." – ele abriu a gaveta da penteadeira e tirou uma enorme tesoura de lá. – "É o mais sensato a se fazer. Nunca fui vaidoso com esse tipo de detalhe. E está evidente que não sei cuidar do meu próprio cabelo. Vamos, faça isso, Milo. Corte-o como o de Aioria."

"O quê?"

"Isso que ouviu: quero bem curto."

"Mas, Shaka..."

"Vamos, Milo. O que é perder algumas mechas de cabelo?"

Milo estava tremendo. Era muita responsabilidade dar fim às mechas de ouro que sempre acompanharam Shaka. Se Mu estivesse vivo, era capaz de bater em quem atentasse contra as madeixas louras. E mesmo não estando mais vivo, Milo temia que ele aparecesse para puxar seu pé pelo sacrilégio!

"Não quer tentar algo menos radical? Um corte parecido com o do Camyu?"

"Milo, eu não saberia ter um cabelo daqueles... por favor, vamos."

Resignado, Milo cumpriu a tarefa inglória. Cortou as longas mechas até os ombros com a tesoura e desfiou-o curto com uma navalha. Olhou para Shaka. Ele alisava os cabelos e parava no ombro, como se sentisse falta dos fios que tinham sido cortados.

"Ficou bom." – admitiu o escorpiano. O indiano tinha um rosto lindo, olhos expressivos e grandes. Sem cabelos o rosto ficava em foco e o terceiro olho vermelhinho aparecia melhor, mesmo entre as mechas de franja que Milo sinceramente não teve coragem de atacar.

"É, mas é tão estranho... me sinto nu."

"Você vai se acostumar."

"Ficar sem cabelo é o menor dos meus problemas, Milo..."

- X –

Tinha razão. Shaka tinha um problema sério de sono. Não conseguia dormir de maneira alguma. Queixou-se com Milo que sentia falta de Mu o tempo todo, mas na hora de dormir era como se tivessem amputado-lhe várias partes do corpo – não podia dormir. E tinha também um problema de ordem prática: Saori havia lhe delegado a guarda de Kiki, mas a criança não o queria como mestre de modo algum. Vários cavaleiros voluntariaram-se para a tarefa, mas poucas pessoas conviveram tanto com Mu quanto Shaka e Kiki: eles tinham que continuar juntos.

Shaka pensava muito nisso, em especial pensava nisso naquele dia. Tinha descido até a cidade para levar suas túnicas finas para a loja do indiano que sabia como cuidar delas: a loja na frente da qual Mu fora assassinado. Milo desenhou um mapinha para ajudar Shaka a chegar lá e algumas expressões em grego, caso ele se perdesse. Descobriu que Shaka não falava bem o grego, mas tinha um belíssimo inglês britânico.

Shaka era esperto o bastante para não se perder, e até conseguia ler algumas mentes incautas. Tinha verdadeiro horror aos trajes ocidentais, mas não teve jeito: Milo o vestiu com uma pantalona xadrez da época em que ser hippie era moda e o enfiou em uma camiseta branca. Ele parecia uma outra pessoa, os cabelos curtos e molhados, sandálias de couro e até uma mochila de couro velho. Estava se sentindo ridículo.

Saiu da loja e olhou para a calçada. Tinha guardado recorte do jornal que mostrava reconstituição do crime, apontando o local onde as vítimas tinham caído. Segundo o jornal, Mu tinha saído da loja e estava parado exatamente onde ele estava parado naquele momento. Aí, atingido, caiu na calçada. Ficou parado ali, imaginando o que poderia ter acontecido. Mu era um cavaleiro. Deveria ter sentido com seu cosmo os movimentos hostis dos assaltantes. Perceber a confusão, o barulho. Os bandidos tinham assaltado uma loja de conveniência do outro lado da rua. Alguém reagiu. Houve tiros, eles escaparam. Tiroteio na rua. Claro que um cavaleiro sentiria isso. Deveria ter sentido, saído de lá, interrompido a trajetória das balas, salvado os inocentes e ajudado a capturar os bandidos.

Culpa, culpa, culpa... Buda, existe força mais destrutiva para um homem do que a culpa? Mu não percebeu nada porque devia estar de cabeça quente. Distraído demais e aborrecido demais pela discussão que tinham acabado de ter. Ele o infernizara tanto! Por isso ele não deve ter percebido nada... a não ser quando era tarde demais. Quanto tempo ele agonizou? Era uma pergunta mórbida, de fato, mas gostava de pensar nisso porque era dolorido demais. E a dor era o único indício de que ainda havia vida nele. Certificava-se de que mesmo depois da morte de Mu ele ainda vivia. Sabia disso porque ainda sentia dor – os mortos não sofrem. Mu era forte – deve ter suportado longos minutos de dor. No que ele deve ter pensado? Com certeza, não sentia pena de si por estar morrendo, nem raiva dos que o atingiram. Não... Mu era muito superior. Será que pensou nele? Talvez. O fato de Mu ser muito bom sempre o deixara com a desconfiança de que quem sabe ele não fosse tão bom quanto pensava. Se fosse ele, teria perdido preciosos minutos de agonia tendo raiva dos assaltantes e da briga com Mu. O rancor envenenaria o sangue em suas veias, amargando sua boca e enchendo-lhe de mágoas inúteis. O ariano não era assim. Shaka sorriu ao imaginar no que Mu pensara em seus últimos minutos de vida, esperando o socorro que não viria... se conhecia seu carneirinho adorável, ele pensara neles dois. E lamentara a última briga não ter sido uma noite de amor para poder morrer com o gosto do beijo do outro em seus lábios. E uma lágrima de felicidade imensa desceu dos olhos de Shaka nesse momento: "oh, Buda! Eu também teria pensado nisso! Como sou superior agora que ele está morto e não pode saber..."

Ficou parado na calçada pensando nisso. Na verdade, ficou olhando para os lados, esperando que uma bala o atingisse também. Procurou com olhos ansiosos se alguém no seu campo de visão estava armado. Se deu conta do ridículo que estava fazendo. Oras, imagine... esperar por uma bala! Como era infantil... não foi assim que Buda ensinou. Realmente a falta de meditação e sono o estavam transformando em um idiota...

Voltou para o Santuário com suas túnicas finas lavadas e bem passadas. Encontrou com alguns cavaleiros na entrada e os cumprimentou sem muito entusiasmo. Estava abatido e deprimido como de costume. Já estava habituando-se ao pouco comer e ao não meditar; era a falta de sono, contudo, que mais o perturbava. Os 'normais' ao menos tinham horas inconsciência em que suas mentes descansavam com seu corpo. O corpo e a mente de Shaka funcionavam o tempo todo. Eram uma máquina de auto-tortura perfeita, indesligável, impiedosa; e qualquer tentativa de desligá-la era respondida com ataques furiosos ao corpo já frágil do indiano. Tinha reações violentas aos remédios homeopáticos, às ervas, aos anti-depressivos, qualquer coisa que o tentasse tirar do cubículo gelado e mal que sua mente se tornara.

Aldebaran se aproximou dele, com aquele cosmo que sozinho já emanava docilidade. O taurino tinha um coração gigante e Shaka sempre o desprezara por achá-lo insignificante. No entanto, de todos os cavaleiros, era de Aldebaran que Shaka mais gostava de estar perto. Era o único que lhe votava amabilidade de amigo, sem o ar de imensa pena e compaixão que sentia nos outros.

"Como tem passado, Shaka?"

"Mal, claro, como vocês imaginam, só que um pouco pior."

"Não deve ser nada fácil viver sem alguém como Mu por perto. Ele tinha aquele jeito dele de estar em todo lugar e fazer tudo."

"É, isso é verdade, ele sempre queria se responsabilizar por tudo e por todo mundo."

"Por todo mundo não: por você. "

Shaka deu um sorriso melancólico.

"É, eu posso me gabar de ter tido essa sorte."

"Posso perguntar uma coisa estúpida?"

"Pode."

"É sobre o Mu..."

"Pergunte! Adoro falar sobre ele! Adoro lembrar dele, me ajuda a não... enlouquecer... mas parece que virou um pecado mortal tocar no nome dele aqui, as pessoas quando me vêem evitam de tocar no nome dele e tentam tirar de perto de mim todas as lembranças de Mu como se me fizessem sofrer..."

"Não fazem?"

"Claro que não! O que me faz sofrer é ele estar morto. Lembrar dele é um prazer para mim. É um refrigério para a minha alma repetir o nome dele... até meus lábios doerem."

Aldebaran ficou pensativo. É, fazia muito sentido. A paranóia de alguns deles era injustificável. Era como se quisessem extirpar as lembranças de Mu dos olhos do virginiano como se extirpa um câncer. E ninguém tinha se dado ao trabalho de perguntar ao Shaka se ele queria esquecer Mu.

"Você não ia me perguntar alguma coisa?"

"Ah, é."

"Pergunte, Touro, vamos."

"Você sonha com ele?"

Shaka parou imediatamente de andar.

"Desculpe, Virgem, se não quiser ignora, tá?"

"Não... estou pensando. Não sonho com ele. Eu queria tanto que ele aparecesse nos meus sonhos... nem que fosse para me amaldiçoar, me dizer que me odeia... mas ele não aparece... ele não aparece..."

"Estranho, não é?"

"Talvez não..." – Shaka suspirou e continuou andando. – "A casa de Virgem é cheia de selos que protegem de espíritos e demônios. Sou monge, lembra-se?"

"Como esquecer?"

"Talvez seja por isso. A casa de Virgem é muito protegida contra aparições."

"Pode ser. Mas pode ser que você também não esteja preparado para sonhar com Mu, ou esteja esperando demais... aí com tanta pressão a coisa não sai..."

"É, você pode estar certo."

"Sabe, Shaka, Mu gostava demais de você. E mesmo que as pessoas daqui falem sem saber do que falam, eu acredito que você também gostava demais dele. Acho que todo mundo tinha um pouco de inveja... vocês eram parecidos..."

"Eu não gostava dele. Eu o amava. Eu o amo. Mu era mais eu do que eu mesmo. Perdê-lo é como perder minha alma."

"Soube que vocês discutiram no dia... no dia em que tudo aconteceu."

"Brigamos. Eu disse coisas horríveis. Eu sempre digo coisas horríveis quando não sei bem o que dizer."

"É, eu sei como é. Seria perfeito se em todas as nossas discussões, a gente sempre tivesse em mente que podemos perder a pessoa que amamos e que aquelas podem ser as últimas palavras nossas que elas vão ouvir... então a gente ia ser sempre cuidadoso com as palavras e não ia perder tempo com bobagens. Mas quem conseguiria ser tão altruísta a esse ponto?"

Olhou para Shaka, que chorava.

"Mu conseguia! Ele era assim..."

"Shaka, eu..."

"Não me peça desculpas por isso. Foi bom eu lembrar disso também. Buda! Quanto mais me lembro dele, menos consigo entender o que aconteceu com a gente... se ele era tão perfeito, eu só posso concluir que eu era imperfeito demais!"

"Você é como todo mundo, Shaka. Só que um pouquinho mais concentrado..."

Shaka conseguiu esboçar um meio sorriso, o primeiro honesto depois da morte de Mu.

"Obrigado. Bom, parece que cheguei. Não o convido para entrar, porque francamente, só anteontem eu descobri onde as moças da limpeza guardaram a água e a comida e é feio receber alguém sem ter nada para oferecer..."

"Não se preocupe com isso, eu estava indo para Star Hill... parece que a deusa finalmente vai me dar os diazinhos de férias que eu vivo pedindo para voltar por Brasil!"

"Boa sorte, Touro."

"Boa sorte para você, Shaka."

Entrou na casa de Virgem e tirou todos os selos budistas que havia posto na casa durante os anos em que lá esteve. Era como se estivesse 'abrindo seu corpo' para tudo de ruim – ou de bom – no mundo. Estava desprotegido como um qualquer, um comum. Com tudo feito, imaginou que talvez pudesse sonhar com Mu. Só que, o seu maior problema não era esse... como sonhar com o Mu se ele não conseguia dormir? Frustrado, deitou na cama macia e pensou em como faria para dormir. Não podia mais pedir Gardenal pro Milo. Camus comentara discretamente que Milo andava tendo insônia. Claro... se ele tinha dado todo o seu Gardenal para Shaka... nem as tórridas noites de sexo entre ele e Aquário conseguiam pô-lo à nocaute. Pobre Milo... precisava de seu Gardenal para dormir porque estava doente. Mas ele não estava... tinha que pensar em alguma coisa. Desde que Mu morrera não dormira uma só noite sequer... tirava cochilos ruins, cansativos. Virava-se o tempo todo, acordava mais cansado do quando tinha se deitado.

Até que lhe ocorreu uma idéia a princípio bem idiota, mas que a cada minuto parecia ser a mais acertada. Ele só precisava se nocautear com um enorme porrete ou objeto similar e esperar para dormir o sono dos justos! Claro, ia doer quando acordasse. Mas o sacrifício ia ser válido: ia dormir e ia sonhar. Vasculhou a casa em busca de algo que pudesse servir ao seu intento, até vislumbrar uma linda estátua de Buda, toda de ouro maciço, que ficava sobre uma mesinha, perto da onde Mu tomava banho, naquela tina velha horrorosa que sempre deixava farpas no bumbumzinho de anjo de Áries. Apanhou o enorme Buda e em um golpe de força extraordinária acertou-o em sua cabeça. Não conseguiu apagar – era mais forte do que esperava... entretanto, o sangue imediatamente derramou-se sobre seus olhos, da fenda aberta em sua cabeça e ele podia nitidamente sentir a progressão de um enorme galo nascendo dolorido. Ficou zonzo com tanto sangue que descia e sentiu ânsia de vômito. Correu para o banheiro, mas lembrou-se de que não tinha comido nada em pelo menos umas 30 horas... assim mesmo a ânsia de vômito permaneceu, mas não havia nada o que expelir, o que custou a Shaka penosos minutos de espasmos, dobrado sob o sanitário. Estava passando cada vez mais mal. Por fim, tropeçou em suas próprias roupas sujas no chão do banheiro e bateu de cabeça na parede – sem querer, conseguira seu intento! A pancada foi tão forte que ele caiu desacordado.

- X –

Agradecimentos individuais & Comentários:

Nana: minha querida Nana! Você é muito importante no sucesso dessa fic, pois é minha beta e minha 'palpiteira' oficial. Eu só posso esperar que minha fic seja um sucesso como são todas as que você publica também!

Amy: Amyzinha, bebê fada, outra leitora vip das madrugadas e dos finais de semana! Pode deixar que minha mente suja bolará ainda uma fic onde eu farei muitas maldades com Shaka e 'enxertarei' você no enredo só para você poder consolar ele bem de pertinho, tá?

Lola Spixii: Minha sensei, que não perde a mania irritante de injuriar o bom nome e a moral do meu Shiryu. Impressionante como as pessoas adoram chutar a reputação do chinesinho! Ele não é o Michael Jackson do CDZ, viu?

Thaíssi: Ô, leitora triste! Não fique triste assim não! O Shakinha merece uma lição de humildade depois de fazer tantas crueldades com o Mu! E sim, eu vou pensar em dae uma chance ao bijuzinho loiro... Beijos!

Ma-Chan2: Oi! Olha aí, eu continuei! E espere que o próximo ( e último ) capítulo já está pronto! Fique por aí e verá! Beijocas!

Wisespell: Olá! Muito obrigado pelos elogios, é muito lisonjeiro saber que além do enredo ( que é parte realmente chamativa da estória! ) alguns leitores também prestam atenção aos detalhes de composição de falas e personagens, que dão mais trabalho! Obrigado mais uma vez e continue acompanhando!

Mo de Áries: Vocês é que estão arrasando! Eu reconheço que me deu um aperto no coração de matar Mu, mas era preciso para da ruma lição bem dada em Shaka! Confessemos: o Shaka é um malvado lindo, mas malvado!

Ia-Chan: Imagine! O Mu tinha que morrer mesmo... se ele ficasse vivo, nada ia impedir uma 'recaída' de ambos, por isso, para Shaka saber como a vida é dura, tive que rapar com o Muzinho de vez da vida dele... maldade, eu reconheço. Mas é uma lição de humildade válida ao virginiano tão soberbo!

Luly Amamiya: Não fique chocada, moça! Ainda tem mais um capítulo para seguirmos e muitas águas rolaram debaixo dessa ponte!

Mikage-sama: ai, eu esqueci de como meu bebezão é sensível! Não fique tristinha assim, eu só dou cabo dos personagens que eu gosto mesmo! E não fique tão chorosa assim pelo Shaka, ele merece aprender na marra que precisa do carneirinho... acompanhe a fic até o final ( seu coraçãozinho agüentará, afinal, só falta mais um! ). BEIJOCAS!

Gemini-sama: eu sei que sou má e cruel! Mas é um sonho meu fazer maldades com o Shaka em fics, pela a arrogância dele... ele merece! Ta que o Mu não merecia morrer, mas é por uma razão nobre, muito nobre! Não vá embora, afinal, só falta um capítulo agora!

Gizinha: Obrigado, querida! Nossa, as pessoa snão têm noção de quanto eu fico feliz quando elas se pegam mais aos detalhes de composição do texto do que propriamente à estória e os personagens ( que, afinal, nem me pertencem! ). Como eu faço Letras, esse tipo de comentário ´o que mais me envaidece! Obrigada e espero que você tenha coração forte para os próximos!

Para os leitores mais silenciosos e discretos: obrigado pelas leituras assim mesmo.