Disclaimer: Os personagens originais de Saint Seiya são propriedade de Kurumada. O trabalho ficcional aqui apresentado não tem fins lucrativos.

Resumo: Shaka é um típico virginiano e quando provocado, muito arrogante. Ele gaba-se de não precisar de Mu, o independente e forte ariano com quem vive uma complicada estória de amor. Agora ele tem a chance de provar sua teoria.


Quando For Amanhã

Capítulo 3

Eternidade

"Zeus Meu! Ele morreu, Camyu! Ele morreu! Olha esse sangue!"

"Fica quieto, Milo! Ele não está morto. Deve ter batido com a cabeça, esse banheiro está uma zona! Me ajuda aqui a levar ele para a cama."

"Ele está tão leve, né, Camyu?"

"Ele está magro, Milo... não come!"

"Tadinho... será que ele está mais alegrinho agora?"

Camus olhou para o lugar de onde saía o sangue.

"Pelo tamanho desse galo, quando o bicho começar a cantar..."

"Falei com o Deba, ele disse que o maluco do Shaka queria dormir... será que..."

"Ele mesmo se golpeou para ficar desacordado? É possível. E é até razoável... um galo é menos angustiante do que noites insones..."

"Sim, sim, sim... ele queria sonhar com Mu... não é lindo, Gelinho?"

"É, sim, lindo. E doentio! Vocês não se emendam, não é? Não vê que essa obsessão é péssima, Milo?"

"O Deba disse que chateamos o Shaka com nossa mania de não falarmos mais do Mu..."

"Sei que o Shaka não gosta, mas é o melhor."

"Se você morresse eu não ia querer parar de falar de você."

"Não é isso, Milo... é que Shaka não está bem..."

"E vai ficar pior com esse galo..."

"Deixa uma aspirina aí do lado e um bilhete para ele colocar gelo no lugar. Deixe ele se virar sozinho. Se Mu pudesse voltar do mundo dos mortos e ver como Shaka est�, ia se arrepender de tê-lo mimado tanto."

"Ah! Camyu! Ele já melhorou um bocado! Hoje ele foi sozinho até a tinturaria do Ravi."

"Ele foi l�? Justo l�, onde Mu morreu?"

"Para você ver como ele já está melhorando!"

"Para mim ele está é piorando... vamos, Milo. Não devemos estar aqui quando ele acordar..."

- X -

Não dava para saber quem tinha mais razão, entretanto, o pobre Shaka acordou com a cabeça latejando, com dois enormes galos. Olhou-se no espelho de moldura de latão que Mu deixava no criado mudo ao lado da cama e cuja única utilidade era enfeitar o ambiente, já que eles não gostavam de espelhos... Shaka lembrou-se que Mu costumava dizer que não havia melhor espelho do que os olhos azuis dele. Eram tempos bons, quando Mu ainda dizia o que lhe vinha à cabeça sem muita preocupação. Reconheceu, dolorido, que ele encarregara-se de matar essa confiança adolescente que o ariano tinha em suas palavras de amor.

Olhou o espelho sem muito entusiasmo. Seus olhos azuis estavam apagados, sem viço. Pareciam boiar tristonhos sob o bolsão negro das olheiras que ele acumulara. Estava ligeiramente mais magro, o rosto de expressões delicadas estava sulcado, manchado por algum sangue seco que Milo e Camus não tinham conseguido limpar. Os cabelos curtos eram uma tragédia à parte, mas ele sabia que não tinha como cuidar da cabeleira loura que Mu tão ciumentamente cultivara, como se os fios dourados fossem uma roseira rara que precisasse de muitos cuidados e muito amor. Sozinho não saberia – e nem queria. Estava feio. Não tinha sonhado com coisa alguma e agora uma dor estúpida latejava a sua cabeça.

Inconformado, rodou a casa toda até achar o bilhetinho de Milo com a aspirina do lado. Tomou o remédio com um copo d'água, mas como não comia e não estava costumado ao tipo de medicamento, passou mal do estômago. Vomitou o remédio e acabou ficando enjoado e com mais dor de cabeça. Não tinha certeza se era a justa punição dos deuses ou qualquer coisa que fosse, mas estava sofrendo. Sua vida transmutara-se num pesadelo interminável, um labirinto de espinhos.

Olhou para os lados, já ameaçando um ataque de pânico, quando vislumbrou a única foto de Mu que havia em Virgem – já que Mu tinha seriíssimas restrições às fotografias. Ele estava com a túnica mais bonita que tinha, cor de vinho, com um lenço bordado em dourado por cima dos ombros, todo enfeitado de ouro e jóias. Era um príncipe. Os olhos lilases-esverdeados pareciam uma cobrança, a voz delicada em seus ouvidos: "retire o que disse".

"Mu! Maldito! Não me olhe assim! – agarrou a moldura e estilhaçou-a contra um dos móveis. – "Seu miserável! Apareça em meus sonhos, apareça!"

Tomou a foto junto de si, os olhos de Mu o encaravam serenos. Lembrava-se do dia da foto. Ele ria feliz porque Shaka queria fotografá-lo, estavam na Índia, a passeio. Era um dia claro... feliz... que nunca mais se repetiria, porque os lindos olhos do ariano jamais tocariam os seus novamente.

"Eu te amaldiçôo! Nunca, você ouviu? Nunca você vai ficar em paz! Que você NUNCA descanse em paz enquanto eu viver! Nunca! Você está me olhando desse jeito, acha que eu sou o culpado? Acha? Então me assombre! Me assombre enquanto eu viver! Apareça nas minhas noites, puxe meu pé, me maltrate! Me faça mal! Mas não me ignore... não me deixe sozinho de vez! Me amaldiçoe também... me amaldiçoe com sua presença, me enlouqueça com suas aparições, mas não me deixe sozinho... não me deixe sozinho! Não é possível que você já esteja no paraíso! Que sua alma já esteja descansando, não pode! A minha dor não o perturba? Não? Fale algo! Fale!"

Atirou-se na cama com a foto agarrada ao ventre, chorando e soluçando. Ficou lá por horas, os dedos retesados sobre a foto, esperando que Mu surgisse de algum lugar no mundo dos mortos para humilhá-lo ou amaldiçoá-lo. Mu não apareceu, as lágrimas de Shaka não cessaram, até ele dormir vencido pela tremenda exaustão acumulada de dias e lavada pelo choro compulsivo.

Naquela noite, finalmente, dormiu. Longamente. Se Mu assombrara seus sonhos, ele, desgraçadamente, não se lembrava. Acordou sem lembranças e com a dor daquela saudade fustigando-o como um ferro em brasas. Chorou por horas durante a manhã, forçando-se a comer uma maçã. Já também não conseguia saber porque chorava, mas as lágrimas eram um mecanismo eficiente de descarga. A tensão que não era aliviada com o sono vazava de seus olhos. Andava em círculos na casa vazia, ela era um mundo em si – que já fora pleno. Não havia nada. O vazio engoliu sua vida.

- X -

Depois de algumas noites de sono leve intercaladas com madrugadas de horror insone, Shaka tomou uma sábia decisão. Não ia ficar chorando pelo que não podia mais ser mudado. Era inútil esperar Mu em seus sonhos e desejá-lo ardentemente durante o dia, esperando que seu amor o materializasse diante seus olhos. Devia conformar-se com o destino. Era seu destino vagar sem alma sobre a terra até o dia da sua morte. Mas já que não morrera de vez, era preciso continuar. Nunca tinha sido covarde e apavorava-o a idéia de tornar-se um, de modo que quando morresse fosse indigno de tornar a estar com Mu. Então, se era preciso, viveria. A dádiva da vida já não era bem aventurada, mas era uma dádiva. E era preciso viver.

Resolveu-se começar por tomar conta de Kiki, mesmo que o menino não o quisesse. Tinha muito a aprender com a criança – que dominava as técnicas lêmures que distinguiam Mu dos demais – e o menino também tinha a lucrar com os ensinamentos de Shaka. Depois, também ia arrumar sua casa e Áries. Era ridículo que mulheres desconhecidas tivessem o privilégio de manusear as coisas finas que pertenceram ao ariano, coisas tão queridas que tinham sido segredos só deles dois. Ele mesmo podia se encarregar disso. Pediria a Athena que permitisse que Kiki ocupasse a primeira casa. Era o certo, a casa não devia ficar vazia, para que o cheiro do desuso tomasse conta do lugar que ele tanto amou. E também não ia ficar mais absorto em sua dor quando tantos já haviam sofrido antes dele... isso era uma franca tolice. Sua dor e sua depressão não eram de valia para ninguém, além de constranger a vida dos outros cavaleiros. Reservaria seus momentos de desespero para as noites insones e solitárias em Virgem, que é como devia ser.

Custou lágrimas e dor o aprendizado de Kiki. Eles não se entendiam. O menino era um ariano muito mais ariano que Mu, voluntarioso e mandão – e sem o amor excessivo que Mu tinha por Shaka, claro. Batiam de frente sempre, o tempo todo. Não aceitavam fracasso ou frustrações. O mestre aborrecia-se com o pupilo rebelde e o menino irritava-se com a arrogância e a curta paciência de Shaka. Entretanto, sem intervenções externas ( leia-se: sem intervenções da deusa... ), eles desenvolveram uma tolerância mútua. Kiki reconhecia que Shaka era irritadiço e impaciente, mas era um mestre poderoso e muito sábio. Shaka, por sua vez, sabia que Kiki tinha dificuldades para obedecer e ficar quieto, mas aprendia muito rápido e não se importava de repetir um mesmo exercício mil vezes se fosse preciso para executar as tarefas com perfeição – e reconhecia que pouquíssimas pessoas se encaixavam nos seus padrões, era exigente em excesso.

- X -

Aconteceu de um dia, mesmo ainda sendo muito cedo, Shaka resolveu liberar o pequeno ariano de sua rotina de treinos. Kiki estava gripado e o tempo estava virando. Surpreendeu-se consigo mesmo por se preocupar com isso, normalmente ignoraria a doença do aprendiz, porque um aprendiz deve desenvolver resistência acima de tudo. No entanto, estava se sentindo cheio de benevolência e bondade. Dispensou o menino e quando ia saindo da arena, encontrou alguns cavaleiros – liderados por Milo, claro...

"Ora, não sabia que vocês estavam aí."

"Viemos trazer um presente. Para te ajudar a dormir."

"Já estou dormindo melhor."

"Sabemos. Mas mesmo assim, quisemos ajudar!" – Milo estendeu-lhe um pacote. Curioso, ao ver de longe o embrulho vermelho, Kiki se teletransportou para o lado do Mestre.

"Abre logo, Shaka." – Kiki nunca chamava Shaka de 'mestre'. No seu coração de criança, nunca haveria um outro mestre além de Mu.

Shaka, perplexo, abriu o pacote. Sua expressão ao ver o presente era de absoluta incredulidade.

"É para você dormir abraçado com ele!" – esclareceu Milo.

"É um carneiro? De pelúcia?"

Milo e os outros se entreolharam.

"O carneiro é o símbolo de Áries, Shaka..." – soprou Kiki do lado dele.

"Ok, foi uma péssima idéia. Levamos o carneiro de volta."

"Não!" – Shaka desviou as mãos de Milo. "Ele tem um cheiro esquisito..."

"Ah, estufamos ele com camomila... o meu terapeuta disse que ajuda a dormir... foi a mãe do Deba do que fez!"

"Aldebaran, sua mãe ainda é viva?"

"É, ela faz artesanato. Não nos vemos muito. Eu encomendei pelo telefone. Ela mandou pelo correio." – ele olhou orgulhoso para Shina. – "Foi a Shina que estufou ele."

"É, eu pus um pouco de erva-doce também. É calmante."

"Ele tem chifres enormes..."

Silêncio.

"Ele é lindo, Shaka." – o indiano virou-se para Kiki , que segurava o carneirinho, como toda criança, encantado com o brinquedo.

"Fique com você."

"Ah, mas é seu presente!"

"Mas eu estou dando para você. Pode ficar."

"Não gostou do presente, Shaka?" – Milo perguntou envergando um adorável biquinho.

"Adorei. Mas acho que ele ficará mais bem guardado com Kiki. Ele merece ter mais lembranças de Mu do que eu..." virou-se para o menino, deslumbrado com o brinquedo. "Vamos, Kiki. Leve seu carneirinho para casa."

"Quer escolher um nome para ele, Shaka?"

Shaka ficou pensativo.

"Shion?"

"O nome do antigo mestre de Mu?"

"Fica simpático, não acha?"

"Eu gosto! Mu também ia gostar!"

"Foi exatamente nisso que eu pensei."

Kiki olhou para Shaka. O indiano estava triste; ainda que Shaka não demonstrasse tristeza, o pequeno Kiki já havia aprendido a ler a alma dele em seus olhos, como antes sabia fazer com Mu. Estendeu para o loiro o carneirinho de pelúcia.

"Dorme com ele hoje. Amanhã eu venho buscar." – ele balançou a cabeça ruiva. – "Para os seus amigos não ficarem muito tristes por você nem ter usado o presente..."

"Bom, se é assim... acho que posso aceitar um empréstimo..."

Subiu até Virgem com o pequeno bichinho nas mãos. Fora realmente gentil da parte dos rapazes terem pensando em lhe dar um presente, ainda mais algo tão delicado quanto aquilo, uma lembrança de Mu. Deitou-se na esteira, porque já havia recuperado sua concentração. Abraçou o pequeno bichinho, mas sentia frio. Resignou-se.

"Esse frio é a minha saudade do Mu... e ela nunca vai passar..."

Cobriu-se com um sarongue e antes de fechar os olhos, pensou em como sua vida tinha mudado nos últimos tempos...

"Mu, se você puder me ouvir... onde estiver... saiba que eu estava certo: eu posso viver sem você. Acho mesmo que poderia viver os 200 anos de Shion, talvez mais. Só que você deve saber, como eu agora sei, que seriam anos vazios! Quantos anos eu poderia viver sem você não é a questão... a questão é quantos anos eu gostaria de viver sem você. Anos tristes, sem gosto, sem cor, sem viço. Nenhum deles verdadeiramente feliz, nenhuma única noite de sono bom, nenhuma refeição com sabor de verdade, nenhum pôr do sol realmente belo, nenhuma chuva capaz de regenerar ou lavar coisa alguma. Sem você a vida é infértil como uma terra coberta de cal. Não há bem-aventurança sem o amor. Eu queria poder retirar o que disse... não no dia da sua morte, mas tudo o que disse desde que nos conhecemos e eu continuamente o magôo com minha intransigência e essa minha inabilidade absoluta de lidar com meu amor e com meus ciúmes.

É uma pena que eu não possa retirar o que disse, mas no fundo da alma me consola imaginar que você não tenha nunca imaginado que eu desejei sua morte... acho que nunca deve ter passado pela sua cabeça que eu desejasse algo que não estar ao seu lado. Você era tão sensato que não se deixava enganar pelos meus jogos e pelo meu descontrole... você sempre soube coar a verdade por trás do que eu dizia para você... você é como Shiva: sempre tomou as minhas pancadas como oferendas ()... sábio, sábio, sábio... e assim mesmo, deixou todos esses tolos daqui acharem que o sábio era eu! Me desculpe por aquela noite e pelas minhas palavras loucas e sem sentido. É óbvio que eu não o amaldiçôo... por tudo que há de sagrado neste mundo e em todos os outros... vá em paz. Eu ficarei... minha existência será uma vela acesa em seu nome, para que quem me veja nunca se esqueça de você, meu querido... para que eu arda por você até o fim. Um dia eu serei puro, completamente puro. Estarei ao seu lado novamente... meu amor... meu doce amor... como é bom dizer estas palavras que enquanto você viveu eu não pude lhe dedicar... doce amor... amor..."

Dormiu muito e pesado com o carneirinho abraçado junto ao rosto, o cheiro suave de erva-doce e camomila que sempre o lembravam de Mu, que manipulava as ervas tão bem... lembrava-o das noites e dos dias com Mu, dos suspiros de Mu, dos olhos de Mu sobre si quando fingia dormir para o ariano namorá-lo horas a fio... a lembrança o fez sorrir. De olhos cerrados imaginou que de onde estivesse Mu velava por ele, como quando vivo velava seu sono, embevecido só de vê-lo dormir. Era tão suave a ilusão que seu sono sem sonhos foi doce e reconfortante.

Assim mesmo, acordou com a cabeça dolorida, o corpo moído, a boca com um gosto ruim. Tentou meditar, mas estava enjoado demais. Andou de um lado para outro e reparou que a casa estava muito bem arrumada, mas com a decoração um pouco diferente.

Resolveu descer um pouco para arejar. Ia descendo calmamente, quando viu Camus vindo em sua direção. O aquariano estava agitado. Ia dizer alguma coisa quando ele o interrompeu bruscamente:

"Shaka, você está bem?"

"Sim, estou."

"Sabe onde está Mu?"

Ficou intrigadíssimo com a pergunta. Será que Camus ficou maluco?

"Camus, Mu está morto."

"O que?"

"Por que esse espanto?"

"Como assim 'por que'? Como ele morreu?"

" Camus, se isso é uma brincadeira, é de péssimo gosto."

"Eu é que digo isso! Você está louco?"

Shaka passou as mãos contrariado pelos longos cabelos loiros.

"LONGOS CABELOS LOIROS!"

"Shaka, você não está sendo possuído por nenhum espírito maligno, est�?"

Shaka alisava freneticamente os longos cabelos, restituídos. Estava pasmo. Pasmo! Como podia ser! Seu cabelo cresceu em uma noite...

"Camus, você sabe que Mu morreu, foi você quem me contou..."

"Shaka! Estou começando a ficar realmente preocupado com você!"

"Eu não sou maluco! Eu provo que ele morreu!"

Segurou o braço de um assombrado Camus e foram descendo.

"O que vai fazer comigo?"

"Vou te levar para Áries. O que aconteceu com você, Camus? Não me diga que anda tomando o Gardenal do Milo!"

Camus ficou ainda mais assustado em perceber que Shaka sabia que Milo tomava Gardenal. O escorpiano era excessivamente discreto com a doença de nervos que não o deixava dormir sozinho e que o forçava às sessões de terapia e aos compridos de anti-depressivos. Seu adorado Milo tinha espasmos de horror só de imaginar que algum cavaleiro soubesse que ele precisava de cuidados daquela natureza, justo ele! Tão orgulhoso, tão bonito, tão bem humorado e de gênio forte...

Começou a desconfiar de alguma coisa estranha.

Enquanto arrastava Camus, Shaka recolocou sua loira cabeça para raciocinar: bem, Camus não se lembrava de ter dito nada. E, engraçado, também acordou sem o 'Shion', a ovelhinha de pelúcia que ganhara de presente. Também não se lembrava de estar vestindo a túnica azul que estava usando na hora de ir dormir. Não usava aquela túnica azul em ocasiões corriqueiras. Lembrava-se de ter ido dormir com a túnica crua do treinamento. A túnica azul era túnica de... era a túnica de almoço... a túnica do almoço mensal! Ele bem que se lembrava que Mu tinha morrido no dia do almoço mensal... é, e Camus o cercara daquela mesma maneira, e fizera a mesma pergunta: "se sente bem?".

Então! Então! Foi ficando eufórico. E se tudo não tivesse passado de um sonho mau, muito mau! Seria tão bom, mas tão bom... largou o braço de Camus e começou a correr até Áries. Nem chorava, nem ria. Estava tenso, com medo, muito medo. E se estivesse ficando maluco? E se Mu estivesse mesmo morto e Camus não soubesse? Estava com o coração tão inchado de esperança... se Mu estivesse mesmo morto, não ia suportar... seria como perdê-lo outra vez e não ia agüentar uma dor assim outra vez.

O coração aos pulos, a mão suava, ele estava tremendo. A casa de Áries estava à sua frente. Andou bem devagar, torturado, pé ante pé até a casa que conhecia tão bem. Segurava o juzu entre os dedos, pedindo a Buda que serenasse seu coração, porque seus músculos mal o obedeciam. Foi andando até dar a volta pela casa e chegar à entrada central do templo de Áries, pedindo, implorando a Buda que não visse Kiki ali... se visse o menino, tudo seria verdade.

Sentiu o corpo perder a firmeza. Era assustador que tivesse tão pouco controle sob si mesmo. Percebeu que era simplesmente tolo ficar se agoniando e andando devagar. Resolveu andar a passos largos e resolutos. Sentiu o baque surdo no peito como se seu coração tivesse parado de bater, os joelhos tocarem o chão involuntariamente... era ele! A sombra de Mu na pilastra da frente! Só podia ser ele, ninguém tinha aquele perfil tão bonito e tão delicado!

Ergueu-se e correu até ele, naquele estado de sublimidade que só os apaixonados compreendem, livre de qualquer censura e reprimenda, atirou-se com tanta violência sobre Mu que ambos caíram estatelados na entrada de Áries.

"Mu! Mu, meu querido, meu amor! Meu amado! Você está bem! Deixa eu te ver!" – apalpou o pescoço de Mu delicadamente ante a surpresa monumental do ariano, que se deixava apalpar, sem entender o fogo de súbita paixão de Shaka. Que bem se lembrasse, Shaka jamais referira-se a ele como 'meu amor'.

"Shaka, o que te deu?"

Shaka enxugou as lágrimas, levantou-se e ajudou Mu a levantar, prestando atenção para ver se ele não havia se machucado. Enlaçou-o em seus braços e cobriu-o de beijos.

"Perdoe-me, Mu! Por tudo quer já te disse na vida por crueldade de criança... eu sei que não sou uma pessoa fácil... mas eu não sei viver com meu amor e meus ciúmes... ainda assim... perdoe-me? Não amá-lo é o único crime que não cometi..."

"Shaka, você não..."

"Não, deixa eu terminar... você tem razão, eu sou mau com você sem razão! Mas não é isso... é que eu te amo tanto! Eu sei que não sou para você tudo o que você gostaria... eu tenho uma certeza que dói de que você via se cansar um dia de esperar por minhas vontades... e vai me deixar! E eu não vou agüentar se você fizer isso, Mu! Então... se eu te maltrato, e me maltrato também, é como se o amor morresse aos poucos, como se nos separássemos aos poucos... e quando você me deixar de vez, bom, eu não vou sofrer tanto..."

"Shaka... Shaka..". – Mu acariciava o rosto branco e molhado entre seus dedos. Zeus! Como podia ser? E ele nunca duvidara do amor de Shaka em momento algum da vida. Por todos os defeitos e ataques do virginiano, sempre a certeza do amor o reconfortou. Sentia-se triste por seu amado não ter essa mesma certeza. Sofreria imensamente se um dia viesse a imaginar que ele não o amasse mais.

"Mu... estou tão feliz de te ver aqui!"

"Ai, Brahma!" – abraçou o virginiano banhado em lágrimas. – "Meu anjo loiro... por que você tinha que ser tão bobo! Hein?" – levantou a cabeça do outro, soprando a franja querida. –" Como se eu pudesse tirar você de mim... nem deuses nem demônios conseguiriam..."

"Mu, me leva para cama? Faz dias que não durmo direito, estou tão cansado..."

" Como assim faz dias que não dorme?"

Shaka parou de chorar e se lembrou que Mu não podia entender o seu desespero. Mas se não podia confiar em Mu, em quem mais confiaria?

"Mu, vai me achar maluco, mas..."

"Mas?"

"Eu tive um sonho ruim, muito ruim... eu disse que viveria bem sem você e que queria que você morresse..."

"Psss! Foi uma bobagem, eu não acreditei!"

"Eu sei que não... mas assim mesmo os deuses me fizeram acordar sem você... você tinha morrido, baleado no centro de Atenas... e eu estava sozinho..."

"Shaka, foi um sonho ruim, você disse..."

"Foi um sonho bom! Foi um sonho bem-aventurado! Por causa dele eu me dei conta... de tudo...

"Vem, você está tremendo... eu te levo para dentro..."

Mu o despiu e despiu-se. Deitaram-se na banheira alongada e bonita que haviam instalado em Áries para fazer o banho de infusão juntos. Ficou abismado quando Shaka, já despido, apanhou as flores, as essências e preparou o banho sozinho – coisa que ele não fazia, porque Mu se encarregava disso.

Entraram juntos na banheira, como sempre. Mu gostava de deitar com as costas apoiadas no peito largo de Shaka, os cabelos loiros caindo junto dos seus, as pernas de Shaka estreitando seu corpo. Eram capazes de ficar assim por longas horas, dentro do banho, a água quente amornava, esfriava, mas eles ficavam l�, conversando, às vezes até cochilavam, claro, faziam 'amor' – se é que Mu ousava chamar de 'fazer amor' as tímidas e acanhadas brincadeirinhas que Shaka se permitia... ai, como era difícil conviver com um homem determinado a permanecer virgem!

Com todas as limitações impostas por essa condição ainda assim não impedia Mu de gostar de ficar na banheira com Shaka. Ouviu-o contar, entre lágrimas e sorrisos, como Mu teria morrido, a dor de todos eles, o almoço, o carneirinho... mas Mu deu graças à Brahma que, na posição em que estava, não se olhavam nos olhos, e ele pode segurar as mãos molhadas de Shaka enquanto ele lhe confessava a sua dor incomensurável, o atordoamento, a insônia, a fome, o desleixo, a imensa dependência que Shaka desenvolvera – não sabia fazer nada sozinho. Falou da maldição, de Kiki, do cabelo cortado, de novo da sua dor, do frio constante que sentia, das pancadas nas paredes para poder dormir e sonhar com ele... ele, Mu, malvado, que sequer se dignava a aparecer em seus sonhos!

Mu esperou alguns minutos em silêncio, recompondo-se. Não queria que Shaka sentisse sua voz muito embargada pela emoção, não queria emocionar mais o pobre e querido virginiano, que já tinha sofrido tanto, mesmo que em sonhos.

"Milo bonzinho, os cavaleiros te dando carneirinhos de pelúcia e você de cabelos curtos! Como não desconfiou que era um sonho? Esse não é Milo e esse também não era você!"

"Foi muito esquisito mesmo... parecia tão real ele cortar meu cabelo..."

Mu segurou as mechas longas. Tão formosas, tão queridas! Seria capaz de machucar alguém para protegê-las...

"Deixou ele cortar seu cabelo, Shaka..."

"Eu não sabia cuidar deles... você faz isso, não é?"

"É..."

"Você faz tudo por mim. Tudo. Você não é só um companheiro. Você é muito mais dedicado a mim do que eu a você... você me cercou de cuidados como seu eu fosse um bibelô, não por medo ou subserviência, mas por amor... ninguém nunca me amou, ninguém além de você."

Mu engoliu o seco; ah, sim, era verdade que fazia tudo por Shaka. Mas não era só o puro altruísmo do amor que o impelia a isso... claro que não.

Virou-se para os deliciosos olhos azuis.

"Não faço isso só por amor."

"E por que mais seria?"

"Você é tão forte e era tão auto-suficiente, Shaka... eu fui cercando você, tomando conta de tudo que você fazia... eu queria que você precisasse de mim... precisasse de mim para tudo... porque assim era um jeito de ter certeza de que você não me deixaria... você sempre me amou tão pouco... pelo menos desse jeito você ia ao menos precisar de mim... é um egoísmo grande o meu, eu sei..."

"Ah, meu querido... eu não preciso de você para viver. Eu só preciso de você para ser feliz..." – puxou o cabelo lavanda de Mu, até os olhos dele se encontrarem. – "Eu nunca amei você pouco. Você subjugou todas as minhas certezas e domou todos os meus preconceitos e dogmas e me obrigou a ficar de joelhos para aceitar a verdade. A verdade é que eu te amo, sabe disso, não é? Você é a minha fraqueza e a minha fortaleza. A maior e única inconsistência em todas as minhas certezas... e mesmo que eu não confesse sempre... essa é a única verdade em mim, que persiste nos meus sonhos e ilusões, acordado, dormindo, delirando, em luta: eu sei que amo você."

"Ah, Shaka..." – ele puxou os braços do virginiano e cercou-se deles. – "Como eu amo você..."

"Eu também... eu amo você. E juro que cuidarei de você melhor."

"Cuidará de mim?"

"Eu prometo...eu cuidarei de você. Velarei o teu sono, cuidarei de suas feridas... desde que você me permita fazer isso. E não me deixe só. Não suportaria...viver mais sem você."

"Não?" – Mu perguntou, chorando.

"Talvez eu suportasse a dor. Mas só se eu soubesse que você estaria ao meu lado de alguma maneira, mesmo não física..."

"Estaremos sempre juntos. Para sempre."

"Sempre?"

"E depois mais um pouco."

"Sempre juntos?"

"Sempre. Até a Roda de Samsara parar de girar, e nós voltarmos para a essência do Real em Brahma. Até sermos luz..."

"Até sermos luz..."

- X –

Comentário final: Acabou! Minha fic-filhote tão querida! Eu sempre quis escrever essa fic, porque já que no anime matam o Shaka na saga de Hades... eu sempre quis saber como seria se o Mu morresse e o Shaka tivesse que viver sem ele. O virginiano não é um romântico arrebatado, não cortaria os pulsos por amor. E por isso mesmo, seu sofrimento é mais íntimo. Queria também ver não apenas no sentido 'amoroso' da coisa, mas putz, eles são companheiros, um casal que compartilhava um dia a dia e as coisas corriqueiras e quando um deles morre, como fica essa rotina? Esse dia a dia sem o outro, as coisas mais práticas da vida mesmo, o mais prosaico do prosaico. Essa era a minha intenção. Um agradecimento mais que especial para Lola Spixii por ter betado ( junto com a Nana ) o texto, e por ter sugerido a mudança do título original que era 'Um Sonho Mal', além de ter me proibido de publicar como one-shot, que era a minha intenção. Lola, você salvou minha vida!

Agradecimentos individuais & Comentários:

Nana: minha beta e minha colaboradora diária, não há palavras para agradecer seu apoio e sua constante presença aqui. Você me trouxe ao mundo yaoi e aos casais meigos de

Lola Spixii: SENSEI! To triste sem sua presença! Aparece, viu?

Os Tradutores: Não precisava ficar tão triste, viu? O cavaleiro do seu signo está de volta, e lindo e com seu loiro a tira colo, que todo mundo merece um Shaka como carma, né? Beijocas!

Mo de Áries: Dor de pensar nas farpas do bumbum de Muzinho... eu também fiquei penalizada, mas... o Shaka devia se encarregar de tirar as farpas com tanto carinho que devia até valer a pena essas farpinhas!

Ia-Chan: Olha aí, o resultado da lição de Shaka... e nem precisou de ninguém além dele mesmo se tocar... e sim, Muzinho fazia tudo pelo Shaka, mas admitamos: ele tem uma carinha mimada de quem nunca precisou levantar um lenço!

Luly Amamiya: Pronto! Ultimo capítulo na atividade! Espero que tenha gostado do final e que ele tenha sido menos chocante...

Mikage-sama: BIRTHDAY PRESENT! Agora vê se não fica metida porque é leitora vip! Parabéns, feliz 15 aninhos e que os próximos consigam ser ainda melhores, cada vez melhores! Beijocas, pequena!

Lili Psiquê: Olha, eu não vou matar nenhum mushakista do coração, porque a verdade é que eu amo os dois juntinhos... ai, ai, ai! Eles são de longe meu casal preferido, o Shaka é meu cavaleiro mais querido há longos anos. Espero mesmo que eu tenha conseguido apreender o 'espírito' do virginiano. Ainda pretendo escrever algumas fics dele com o Mu...

Para os leitores mais silenciosos e discretos: obrigado pelas leituras assim mesmo. ( é, Verinha, você se encaixa aqui ! )