ATO 2:
NARCHE (PARTE 1)"Bom serviço, querido. E não se esqueça de seu lanche." Nafta entregou ao marido a marmita cuidadosamente enrolada numa toalha, beijando-lhe em seguida. "Tente não fazer muito barulho quando chegar pela manhã."
"Pode deixar, amor." Wedge colocou a marmita em sua bolsa, beijou a esposa, agachou-se um pouco e beijou-lhe a protuberante barriga. "Cuide bem do nosso Johnny!"
"Johnny?" Nafta franziu as sobrancelhas daquele jeito que só ela sabia fazer. "Como pode dar um nome de homem pro bebê? Já disse que vai ser menina."
"Ok, ok. Vamos fazer a ultra-sonografia na minha próxima folga e tiramos isso a limpo." Beijou a novamente e sai pela porta, colocando o capuz do casaco sobre a cabeça para se proteger do vento gelado que castigava Narche naquele inicio de noite.
Wedge fazia parte da milícia que vigiava os limites da cidade de Narche durante a noite. Era um trabalho geralmente tedioso, no qual ele passava grande parte de tempo conversando com seu parceiro Vicks ou fazendo palavras cruzadas, mas ele gostava dele, uma vez que era melhor do que ficar patrulhando o interior da cidade, como faziam outros guardas da milícia.
Narche era uma cidade de pequeno porte, mas a formação rochosa que se erguia imperiosamente atrás dela prometia um grande avanço para a economia. De fato, grande parte da população trabalhava para a Diggers & Diggers, empresa responsável pela extração de carvão do subsolo daquela rocha. Por isso, a cidade vivia envolta numa nuvem de fumaça e poeira que, junto com o clima frio, formava um nevoeiro perene que dava calafrios em Wedge desde seus tempos de guri.
Após andar por meia hora, Wedge ficou diante do muro de segurança da cidade. Tinha quase cinco metros de altura e abraçava a cidade toda, com exceção da parte das minas, onde a rocha era barreira natural; a cada 500 metros de muro uma pequena torre se erguia escorada nele, onde uma guarita fora construída, de modo que se tivesse o máximo de visibilidade possível.
Virou para a esquerda e seguiu o muro por mais dez minutos, até chegar em seu posto de guarda. Ao entrar, deparou-se com Vicks, uma figura franzina, quase ridícula em seu colete de proteção. Estava sentado na cadeira, encostado na parede, com os dois pés sob a pequena mesa (onde sabiamente haviam duas garrafas térmicas cheias do mais forte café que a esposa de Vicks sabia fazer) e fazia palavras cruzadas.
"Ave caribenha de penas verde e amarelas com oito letras, Wedge?" Disse, coçando as costa da orelha com a caneta.
"Poxa, Vicks, você ainda está empacado nesta?" Wedge colocou sua bolsa no armário, olhando apreensivo para as duas submetralhadoras que ali estavam guardadas. Esperava se aposentar sem ter que jamais usa-las. "Papagaio, garoto, a resposta é papagaio!"
"Diabos, Wedge, você é bom nisso!" Disse Vicks após constatar que a resposta de seu companheiro estava correta.
"E você poderia fazer seu trabalho corretamente uma vez na vida e ficar no seu posto, lá na guarita!"
"Não se preocupe, Wedge." Vicks não tirava os olhos das palavras cruzadas. "Douglas está lá em cima fazendo isso."
"Ora, e o que diabos ele está fazendo aqui?" Wedge resmungou, contrariado. Sabia muito bem que o posto de Douglas era no setor A-9, na guarita imediatamente adjacente à deles.
"Ele veio pra cá logo depois que eu cheguei. Disse alguma coisa sobre não agüentar o Velho Bob falando dos 'tempos em que ele era um soldado e foi pra guerra'. Você sabe como aquele velho gagá fica quando resolve falar sobre isso... Não tem café que te mantenha acordado."
Wedge nada disse. Sabia que Vicks tinha razão. Caminhou em direção a parede oposta e subiu a pequena escada nela cravada, abrindo a portinhola do teto.
"Ei, num me deixa aqui sozinho!" Vicks gritou, o corpo de Wedge já sumindo de vista. "Minério largamente usado como combustível com seis letras?"
"Carvão!" O outro vociferou, fechando a escotilha logo em seguida.
O outro cômodo possuía vitrines no lugar das paredes e um holofote na borda que dava para o lado de fora do muro. Ao lado deste estava uma figura jovem, de longos cabelos negros e de corpo bem trabalhado. Apreciava a paisagem desolada das estepes geladas enquanto saboreava o liquido de uma pequena garrafa que trazia consigo.
"Putz! Isso é porque ele mora ao lado da mina..." Douglas sorriu, cumprimentando o velho amigo e lhe oferecendo a garrafa.
"Não, obrigado, Douglas." Wedge o deteve com um gesto. "Agora que vou ser pai, tenho que tomar jeito."
"Meu irmão falava a mesma coisa." O irmão de Douglas, Perso, era conhecido por ser um beberrão de alto calibre, mesmo sendo pai de três lindas meninas.
Wedge riu, pequenas nuvens de vapor saindo desua boca e atravessando sua espessa barba.
"Então, o Velho Bob começou a contar suas historias de novo?"
"Oh, Deus, Wedge, aquele homem me dá nos nervos!" Douglas fez uma careta. "Só a Senhora Drugins pra agüentar aquele velho gagá."
"Ei, ano que vem eles vão fazer 30 anos de casados." Wedge se aproximou mais do vidro, perdendo suas esperanças de ver o vento diminuir sua fúria. "O próprio Bob se aposenta daqui a dois meses, se isso te deixa mais satisfeito..."
"Não, não deixa. Só diz que você e Vicks vão ter minha companhia por mais umas 60 noites."
"É, mas você sabe que não é inteligente deixar seu setor só aos cuidados de um guarda." Wedge o encarou cheio de vigor.
Douglas suspirou.
"Ok. Ok. Você venceu! Detesto quando você faz essa cara. Lembra um professor de primário meu que vivia me puxando a orelha" Pegou sua arma e abriu uma das portas do guarita, caminhando em através do muro até seu posto, sem saber que estava cometendo o maior erro de sua vida...
"Vicks, acorde!"
Vicks entreabriu os olhos, tonto, limpando a baba que escorria de sua boca. Estaria sonhando?
"Droga, Vicks, ACORDA!"
A face tensa de Wedge chacoalhando-lhe os ombros furiosamente terminou por acorda-lo.
"O que foi, Wedge?" Desvencilhou-se das mãos do companheiro. "Parece que viu um fantasma!"
"Tá acontecendo algo lá na guarita do Velho Bob." Disse, abrindo apressadamente o armário. "Eu acho que vi alguém lá."
"Claro que viu: o Douglas e o próprio Velho Bob!"
"Não. Tô dizendo que vi MAIS alguém alem deles."
"Tem certeza?" Vicks despertou ao notar um certo tom de alarme na voz do amigo. "Já passou um rádio pra eles?"
"Não. Por isso vou lá averiguar." Tirou a submetralhadora do armário, encaixou o cartucho e destravou a arma. "E ninguém responde no rádio."
"Vou com você." Vicks já ia se levantando, quando Wedge o deteve com um gesto.
"Não. Passe um rádio pra central e peça pra eles ficarem alerta. Eu volto em meia hora." Abriu a porta e saiu correndo, o vento uivando sobre sua cabeça e a neve começando a cair.
Na guarita do setor A-9, o corpo do Velho Bob jazia estirado sobre a mesa, morto. Um dardo cravado em seu pescoço escoava o restante de seu sangue. Logo ao lado dele, estava o cadáver do que outrora fora Douglas. Estava, contudo tremendamente envelhecido e desfigurado, a pele enrugada, deixando transparecer os ossos, como se em poucos minutos tivesse se passado um século. Seu rosto cadavérico, no entanto, estava sorrindo.
Além deles, havia mais dois indivíduos ali, duas mulheres. A mais alta aparentava estar entrando na casa dos trinta anos e possuía longos cabelos de um vermelho intenso, seu olho esquerdo coberto por um tapa-olho, o que só aumentava o ar duro e ameaçador que tinha. A outra, pouco mais baixa, tinha cabelos negros, cujo comprimento mal os fazia alcançar seus ombros. Ao contrario de sua capitã, não usava roupas contra o frio, tendo seu corpo coberto por uma camisola feita em tecido róseo, quase transparente, que pouco fazia para esconder sua estonteante beleza. Parecia uma ninfa, e era tão mortal quanto.
"IDIOTA!" Capitâ Mohnblume vociferou, as sobrancelhas vermelhas curvadas em sua expressão de ira. "Sua brincadeira pode nos custar à missão!"
"Sim, capitã!" Biene desviou o olhar. Tentava não demonstrar, mas estava irritada com a intromissão de sua superior. Detestava quando atrapalhavam seu "lanche". "Sinto muito, mas precisa armazenar energias, senhora."
Capitâ Mohnblume suspirou. "Que seja! Agora temos que nos apressar. Prepare-se para adotar medidas contra interceptação."
"Senhora..." Biene interrompeu, seus olhos apontando em direção a porta da rua. "Temos um intruso. Devo elimina-lo?"
"Desnecessário. ICE está montando guarda lá fora. Contate Seerose e certifique que seu perímetro está seguro."
"Recebido". Biene pegou seu rádio e cumpriu a ordem de sua capitã.
Wedge estava suando frio. Com muito esforço havia se esgueirado até a torre de vigia onde estavam Douglas e o Velho Bob e agora repassava em sua mente tudo que aprendera em seu treinamento militar, tentando encontrar algo que pudesse ajuda-lo a contornar a situação. Contudo, tudo o que vinha a sua mente era a imagem do Velho Bob, estirado sobre uma mesa, empapado de sangue. Arrependera-se até a alma por ter espiado pela janela, pois agora um arrepio percorria-lhe a espinha: não queria acabar como ele.
Sabia, contudo, que não podia ficar ali, esperando as coisas acontecerem.
"Vamos lá!" Respirou fundo, empunhou sua arma e abriu a porta da torre com um pontapé.
"Mãos na cabeça! Ninguém se mexe! Estão presas!"
Já sabendo da presença de Wedge, Mohnblume e Biene não demonstraram qualquer surpresa. Sequer se moveram. Biene, no entanto, soltou um sorriso maroto.
"Tão heróico... e tão tolo!"
Wedge, então, sentiu alguém atrás de si. Não conseguiu, contudo, se virar. O máximo que conseguiu foi ver uma lâmina feita de gelo brotar de seu peito, furando seu colete como se fosse papel, ao mesmo tempo em que uma mão fria tapava-lhe a boca, afogando-lhe o grito de dor e desespero.
"Bom trabalho, ICE! " Biene aplaudiu. "Sabia que alem de ser eficiente, você é uma G-R-A-C-I-N-H-A!"
ICE nada disse. Não sentia nenhum prazer em fazer este tipo de coisa. Quando percebeu que sua presa não mais lutava, carregou-a para dentro e a jogou em cima da carcaça de Douglas, a lâmina sumindo em sua mão como se nunca tivesse existido.
Mohnblume suspirou. Ia punir severamente Biene quando retornassem a base. Antes disso, contudo, precisava terminar aquela missão.
"Rosette." Chamou pelo rádio implantado em seu ouvido.
"Hai, Sir". Do outro lado da linha, uma garota de não mais de quatorze anos, feições orientais e cabelos negros amarrados num rabo de cavalo.
"Anulou as comunicações?"
"Sim, Sir." Diante dela, o corpo de Vicks empalado por sua katana estava debruçado sobre a mesa, ainda segurando o rádio, os lábios contraídos num "Socorro!" nunca dito.
"Ótimo. Nos encontre no portão do setor A-10."
"Recebido." Desencravou a espada do corpo inerte, limpou-a com um pano e a embainhou, sumindo nas sombras.
"Seerose." Mohnblume chamou por seu braço direito.
"Sim?" Do lado de fora dos muros de Narche, uma figura toda coberta por uma manto negro, ocultando até mesmo sua face, respondeu. Junto com ela, um pequeno grupo de agentes do NOAH aguardava ordens para iniciar o ataque.
"Inicie o ataque."
"Recebido."
NOTA: Só por curiosidade, as minas do NOAH que aparecem na história têm seus nomes escritos em alemão. "Mohnblume" é papoula; "Seerose" é lírio (e não, cirrose, seus desgraçados!); "Rosette" é rosa e "Biene" é abelha.
NOTA2: Não que isso seja interessante, mas consumi cerca de 3 litros de café só pra terminar este ato (OO). Neste ritmo, vou precisar que alguém termine esta história por mim...
