Capítulo 16: Eidolon


O baile continuou correndo normalmente, até que certa hora Enya e Cedric se aproximaram de Mitch. Enya então falou, esbaforida:

- Mitch, precisa vir comigo! Já!

- Agora? – disse Mitch, estranhando – Mas o que está acontecendo?

- Vamos. – disse Enya. – Helen, posso pegar o Mitch emprestado um pouquinho?

- Claro! – disse Helen, estranhando.

Enya tomou Mitch pela mão e levou-o até a Sala do Conselho. A mesma sala aonde, dois anos antes, Mitch encontrara a lendária Harpa de Brigitte, um Artefato de Magia muito poderoso que vinha sendo passado de geração em geração entre os Bardos Verdadeiros McGregor. E Enya era uma Barda Verdadeira: ela domava o poder das Três Canções Bárdicas (suantraí, geantraí e goltraí) e era gabaritada para usar a Harpa de Brigitte.

A Sala do Conselho continuava a mesma: doze cadeiras dispostas em um círculo perfeito, todas sempre em verde-esmeralda e laranja, as cores do Eire, a pátria-mãe dos McGregor. Enya sentou-se em uma das cadeiras e pediu para que os demais também se sentassem:

- Bem, Enya, já viemos. – disse Cedric – Agora, pode me contar por que cargas d'água você nos tirou da festa? Ainda mais agora que eu estava conseguindo ganhar a Anastasia no papo?

- Isso não é hora de se preocupar com isso! – disse Enya. – Mitch, tenho tido sonhos estranhos, você sabe disso...

- Sim... Desde sua menarca, não?

- Peraí! – disse Cedric – Enya, você teve sua menarca?

- Tive! – disse Enya – Por que?

- A Trelawney nos falou recentemente sobre a menarca nas mulheres, que segundo ela é quando despertam poderes profundos escondidos nas bruxas.

- Ela deve estar certa... Recentemente, tive um sonho muito estranho... Envolvia mamãe e papai!

- Como! – disseram os dois irmãos.

- Vou contar... Era assim:


"Enya estava andando pelo Castelo de Hogwarts. Estranhamente, o Castelo estava vazio e escuro, mas não uma escuridão assustadora, mas a escuridão que acalenta e consola, que dá calor e descanso. Ela se olhou: estava vestida em verde esmeralda, com uma guirlanda torcada de flores sobre a cabeça. Seus cabelos desciam em longas ondas vermelho-sangue. Sua pele estava estranhamente alva, mas não era fantasmagórica. Ela se beliscou e sentiu dor: era estranho, pois sabia que estava em um sonho, e em sonho não poderia sentir dor. Para Enya, estava claro que algo estava estranho.

Sem saber para onde ir, tentou voltar à Torre da Grifinória. Era estranho: as escadas não se mexiam de uma hora para outra, as passagens secretas estavam sempre nos mesmos lugares e os fantasmas pareciam terem desaparecido no nada. Nem mesmo Pirraça, o Poltergeist, se aproximava dela. Foi quando ao chegar ao quadro que tampava a entrada da Grifinória, ela teve uma surpresa: estava fechada.

Naquele momento, Enya ouviu um miado. Olhou para trás: era Madame Nor-r-a.

- Ai, droga! – gritou Enya.

- Quem está fora da cama? – disse uma segunda voz, à qual Enya reconheceu como sendo a voz de Argo Filch, o zelador de Hogwarts.

Enya nem pensou muito: desandou a correr, descendo as escadas e passando pelas passagens secretas tão rápido quanto podia. Numa das passagens secretas, desceu em um corredor que já conhecia: levava à Sala do Conselho. Com um pouco de sorte, poderia selar-se lá dentro.

Entrou rapidamente na sala do Conselho. Era a mesma sala de sempre, mas não era a mesma sala de sempre: ela reparou que havia uma luz branco-azulada nela. Duas formas formaram-se rapidamente. Uma moça morena, de cabelos crespos e pele tostada de sol, um rosto com lábios carnudos e olhos e bochechas sensuais, e um senhor alto, de pele branca, cabelos loiros e olhos verde-esmeralda. Enya sentiu as lágrimas correrem muito rápido e muito profusosamente:

- Mamãe! Papai! – disse Enya, num misto de incredulidade, felicidade, saudade e serenidade.

- Filha, somos nós, mas não somos nós! – disse John McGregor.

- Isso mesmo! – disse Andrea Andaluzia McGregor. – Somos as lembranças nossas, que ficaram dispersas no tempo e no espaço, enquanto caminhamos pela Estrada Prateada.

- Mas...

- Filha, você precisa ser rápida! O tempo urge! Você tem até Samhain para preparar tudo!

- Tudo? Tudo o que?

- O Eidolon... Lembre-se do Eidolon! – disse Andrea.

- Eidolon? O que vem a ser...

Antes que Enya pudesse dizer qualquer coisa, os dois começaram a se desfazer em uma lenta névoa de fumaça, quando Enya viu uma jovem diante dela, tocando uma Harpa. O mais estranho é que se tratava da própria Enya, tocando a Harpa de Brigitte. Enya estranhou muito: como podia estar vendo ela própria? Foi quando a garota à sua frente disse:

- Enyamarana Andaluzia McGregor, lembre-se: até Samhain, o Eidolon deve estar preparado! Até Samhain... Até Samhain... Até Samhain...

A jovem foi se desfazendo, ao mesmo tempo em que Enya caia novamente no sono profundo."


- Enya, o que é Eidolon? – perguntou Cedric.

- Eu também não sabia. – disse Enya – Foi quando eu peguei esse livro aqui, Rituais do Culto Antigo Irlandês: Verdades e Frustrações, de Roderick Dan Tralanagh, na Biblioteca. Aqui, ouçam:


O Eidolon:

Um dos principais rituais celtas antigos era o Eidolon. Um ritual simples, mas deveras importante no Culto Antigo, ele era a epítome da crença reencarantória do Culto Antigo:

Segundo seus princípios, os cultistas do Culto Antigo acreditavam que a pessoa, ao morrer, caminhava por uma longa estrada conhecida como a Estrada Prateada. Nela, a pessoa peregrinava por sua vida, vendo os pontos aonde acertou e errou, até chegar à reencarnação, no final da Estrada Prateada. Algumas vezes, as pessoas poderiam se encontrar na Estrada Prateada, para juntas tentarem resolver assuntos inacabados.

O Dia dos Mortos, o Samhain, que todos tendem a achar que era apenas uma festa sem sentido, na verdade tinha muita importância por causa disso. Os celtas acreditavam que, quanto mais próximo de Samhain ficava a data, mais fraca era a barreira entre o mundo dos vivos e o dos mortos. Por isso mesmo, eles acreditavam no poder da meia-noite na virada da noite de Samhain.

Segundo o Culto Antigo, esse momento era o momento no qual a barreira entre os vivos e os mortos ficava mais fina, ao ponto de ser possível ver e até mesmo invocar-se os mortos para responderem perguntas. Através de um complexo ritual, os seguidores do Culto Antigo conseguiam conversar com aqueles que morreram, perguntando-lhe coisas sobre seu passado, presente e futuro, definições de tempo que os mortos, segundo eles, perdiam.

Embora os trouxas que seguiam o Culto Antigo tivessem tantas crendices quanto quaisquer trouxas, a verdade é que o Eidolon de certa forma faz sentido.

Todos os bruxos sabem que é possível, de certa forma, canalizar suas "lembranças" (cargas psíquicas) para um objeto ou local, de forma a formar uma espécie de "consciência post-mortem" que pode ser acessada por meio de rituais corretos. Essa capacidade de canalizar lembranças também é a explicação do efeito Priori Incantatem, tanto no Feitiço desse nome quanto no efeito provocado por varinhas-irmãs: elas conseguem buscar as "lembranças" que o uso dos Feitiços geram e recolhe-os, apresentando-os ao invocador do Priori Incantatem. E o Eidolon usa-se de um sistema parecido.

Através do Eidolon, um bruxo pode "chamar" as "lembranças" de pessoas (bruxas ou trouxas) mortas. Esse ritual envolve o uso da Canção Bárdica Goltraí, e deve ser feito com pelo menos mais dois bruxos. Essas "lembranças" ficam por um espaço de tempo de 30 minutos para responder as questões que os bruxos desejarem, podendo contra-argumentar, mentir, enganar e tudo mais que poderia fazer se estivesse vivo. Porém, é necessário lembrar que as reações ao bruxo podem ser as mais diferentes possíveis, inclusive com o bruxo podendo ser atacado. As "lembranças" só podem ser convocadas novamente depois de 10 anos pelo mesmo bruxo, e só pode ser executado no dia de Samhain, entre as 23:30 do dia 31 de outubro e as 0:30 do dia 1º de Novembro.


- É mesmo! – disse Mitch – Eidolon é o ritual de lembrança!

- Até aí, tudo bem. – disse Cedric – Mas o que tem a ver isso?

- Se estou certa, e espero estar, mamãe e papai, ou melhor, suas "lembranças', se comunicaram por sonho comigo, e - me pediram para executar o Eidolon para que pudessemos descobrir seus objetivos. Acho que tem algo importante a ver com a volta do Vocês-Sabem-Quem!

- Bem, – disse Mitch – você sabe executar esse ritual?

- Sei... Na verdade, ele é bem simples, pelo que li nesse livro...

- Então, o que está esperando, Enya! – disse Cedric – Comece...

E Enya começou.

Cantando a goltraí, a Canção da Saudade, Enya começou a se concentrar. Por algum motivo, nem Mitch nem Cedric se importaram muito com isso: Enya realmente sabia o que estava fazendo. Foi quando a sala começou a ficar branco-azulada:

- O que está acontecendo? – perguntou Cedric.

- Glamour! – disse Mitch – O Glamour dos Daoine Sidhe! Enya está usando o controle do Glamour que lhe é dado pelo fato de ser uma Barda Verdadeira!

- Como?

- Esse é o mesmo brilho que eu encontrei quando peguei minha Espada do Trevo de Quatro Folhas!

Enya continuou entoando a goltraí. Mesmo pintado e vestido como Serelepe, Mitch sentia-se triste. Mas Mitch conhecia essa tristeza: era uma triste alegria, causada pela saudade que tinha de seus pais.

Foi quando as duas formas de seus pais começaram a se materializar. Cedric começou a chorar. Mitch também sentiu algumas poucas lágrimas escorrerem lentamente por seu rosto. Enya parou de tocar então.

Os dois estavam lá, exatamente como eram quando vivos. Sorriam, um sorriso alegre e triste ao mesmo tempo:

- Pai! Mãe! – disse Cedric.

- Cedric. – disse John.

Cedric correu e tentou os abraçar, mas tudo que conseguiu foi passar em branco: seus braços passaram pelo corpo intangível dos dois:

- Papai! – disse Cedric, assustado.

Nós já dissemos, Cedric: não somos nós. Essas são as "lembranças" nossas. Nossos fantasmas, se é que essa definição pode ser aplicada nesse caso.

- Papai... – disse Enya, encabulada – Nós queriamos saber porque você disse que o tempo urgia?

- Filha, do Outro Lado as notícias sobre os Vivos continuam correndo, pois Passado, Presente e Futuro não existem. Mas somos proibidos de intervir diretamente: tudo que podemos dizer é que tem a ver com a Lança de São Longuinus de Antióquia.

- A Lança Longuinus? – perguntou Mitch – E o que temos a ver com ela?

- A descendência, Mitch. – disse Andrea – Por ambas as linhagens, vocês três carregam na veia o sangue de Nicodemos, o Terceiro Peregrino. José de Arimatéia entregou o Graal na Irlanda. Longuinus de Antióquia ficou na Bretanha, cuidando da Lança. Nicodemos voltou e foi para a Ibéria, aonde ficou por muitos anos. Seus descendentes se espalharam pelo mundo, levando a Água e o Sangue, até que eles voltaram à Irlanda e foram usados para forjar a lâmina da Espada da Irlanda... Sim, Mitch, você é o Sucessor da Grécia, o Sucessor de Nicodemos. Na verdade, vocês três são os sucessores de Nicodemos: Mitch é o Escudeiro, Enya a Donzela e Cedric o Sábio.

- Mas como podemos ser Sucessores de Nicodemos se ele ficou na Ibéria? – perguntou Cedric.

- Na verdade, Mitch, a linhagem de Nicodemos se perdeu no tempo até Hidalgo, filho de Adalton, filho de Tiago de Compostela, da linhagem de Nicodemos. Hidalgo casou-se com a bruxa Guilhermina de Andaluzia, formando o Clã Andaluzia.

- E a Irlanda?

- Hugh McGregor casou-se com Ariadne, filha de Filemon, filho de Urias, filho de Salamonius, filho de Nicodemos.

- Então...

- Eu e sua mãe apenas concluimos um processo que levou muito tempo.

- Mas isso quer dizer que... a Lança Longuinus deve estar por perto. A profecia de Cliodna dizia: "tu, Longuinus de Antióquia, deverá viajar ainda mais ao Oeste, para a Ilha-Esmeralda, sozinho. Ao chegar lá, arremesse a Lança e dirija-se ao local para onde ela for. Lá será seu túmulo e seu descanso final. Quanto à Lança, aonde você cair, ela cairá com você, e não antes que setenta vezes sete gerações se passem, ela não poderá ser retirada, até que o Sangue do Escolhido, daquele que irá purificar o mundo dos bruxos e dos trouxas, caia uma vez. O mal deverá cair uma vez para cair uma segunda vez, depois de se reerguar, e o jovem deverá lutar para vingar os pais. Um do povo da Ilha-Esmeralda deverá ser o Escudeiro, podendo carregar a Lança, mas é destino do Escolhido, usá-la para vencer o mal."

- Já deve ter ouvido: setenta vezes sete gerações já passaram. O Sangue do Escolhido caiu uma vez, e o mal se reergueu para cair novamente. O da Ilha-Esmeralda foi escolhido Escudeiro. E ele é você, Mitch!

- Mitch ficou abismado: não apenas era o portador da Espada do Trevo de Quatro Folhas, a Espada da Irlanda, mas também era o Escudeiro da Lança Longuinus?

- Mas e agora?

- Agora é sua função, Mitch, descobrir quem é o Escolhido, aonde está a Lança, e com o uso dela, lutar contra o Mal.

- Mas... Estou pronto?

- Claro que está! – disse Andrea, sorrindo – Afinal de contas, já provou que luta com a inteligência, ao vencer McKinsey em seu primeiro ano. Luta com o espírito, quando venceu os Bean-Sidhe e Leanan-Sidhe no seu segundo ano. Luta com a alma, ao vencer os inimigos no terceiro ano. Usa da alegria como arma, ou não teria tornado-se o palhaço Serelepe. Usa a compaixão como arma, ou não teria se aliado a Erika. Usa a reconciliação como arma, ou não teria aceitado o perdão de seu avô Andaluzia.

- Você sabe que está pronto, Mitch! – disse John.

- E quanto a nós? – disse Enya.

- Enya, você será a Donzela. Seu poder não está no combate, e sim na voz, na doçura, nos cuidados. Sua habilidade é tão diferente quanto essencial.

- Quanto a vocês, Cedric, você será o Sábio: conhece muito das pessoas, suas ambições e motivações. Essa será sua função, antes que tudo acabe. – complementou Andrea

- Mas como sabem tudo isso? – perguntou Mitch.

- Simples: as Três estão conosco. Pai, Filho, Espírito Santo. Ceridwen, Brigitte, Dagda. Passado, Presente e Futuro. Todas as Três estão conosco. Podemos ver o que pode acontecer, mas o futuro não está decidido, e nem cabe a nós influenciar na decisão dos vivos sobre esses assuntos: nós, os mortos, não temos diretiros sobre as decisões dos vivos sobre seus assuntos...

Nesse momento, as "lembranças" de John e Andrea McGregor começaram a se desfazer. Antes que algo acontecesse, os três viram os dois desaparecerem e choraram. Foi quando:

- Ora, ora, senhores McGregor, estávamos preocupados.

Alvo Dumbledore os encontrara.