Luz Embaixo D'Água por Maya
tradução: Elnara
Capítulo 9
O Espectador Tem a Melhor Visão do Jogo
This is your new thing now
And it makes the whole world spin
It's at least as old as sin
But not quite
This is your new thing now
And now you're turning grinning
But maybe no one's listening
And you might lose it all my darling, yes, you might
A porta rangeu e Harry acordou com um sobressalto, sentando-se e cobrindo Draco com seu corpo, olhando em volta assustado até ver Lupin na porta vagamente espantado, seguido de estudantes do primeiro ano.
O sobressalto de Harry acordou Draco, que ergueu a cabeça despenteada do chão.
Os olhos de Lupin se arregalaram ao avistar Draco por trás dos joelhos de Harry.
- Harry. Draco – ele disse – Er... que surpresa.
Draco olhou para os estudantes atrás de Lupin, que observavam os dois com grande interesse, e imediatamente teve um quieto ataque de riso.
Grande auxílio esse que ele estava dando.
- Hm, a gente estava, é, fazendo um trabalho para Poções, e a gente dormiu...
Bem, não contava como mentira quando Lupin claramente não acreditara numa palavra dita por Harry.
Harry fez um gesto vago em direção a Draco, que apanhara a expressão no rosto de Lupin quando Harry dera sua explicação atrapalhada, e estava nesse momento paralisado de tanto rir.
- Bem, eu vim cedo com os estudantes, para começar os preparativos da aula – disse Lupin, ainda sem saber como reagir – Se correrem, ainda pegam o café.
- Você não vai tirar pontos? - um dos estudantes sussurrou.
- Não se tiram pontos de Harry Potter – disse um amigo escandalizado. Harry quase engasgou.
Ele olhou para Draco, que estava praticamente chorando de tanto rir.
- Obrigado, Professor – disse Harry rapidamente, dando um pulo, agarrando Draco e colocando-o de pé num só esforço.
Harry propeliu o outro para fora da sala, assistido por Lupin. A expressão no rosto do Professor era enigmática.
Mais à frente, no corredor, Draco teve que se apoiar na parede.- A cara dele! - ele exclamou fracamente – E a sua... desculpa, eu preciso de um minuto.
Harry cruzou os braços e esperou cinco minutos, olhando o outro com paciência.
- Sim, muito divertido – ele disse tolerante – Agora vem. Café.
Draco ficou sóbrio num instante:
- Não sem escovar o cabelo.
- Essa fixação com o seu cabelo não é saudável, Draco. Você precisa comer mais.
- Ah bom, porque aí eu serei desarrumado e ainda por cima estarei acima do peso? - exigiu Draco – Você é um sádico, Potter. Eu quero um espelho.
Ele se virou e tentou examinar seu reflexo no vidro de uma porta. Sua aparência ainda era meio adormecida, os lábios entumecidos e os olhos inchados e confusos.
- Horrível – disse Draco, fazendo cara feia para o seu reflexo.
- Hm? - piscou Harry – Está sendo estúpido. O que não é raro, devo acrescentar. Vamos. Eu me recuso a deixar você perder o café de novo.
- Deixar? - ecoou Draco, numa voz que teria soado maligna se ele não estivesse bocejando – E como você pretende me impedir?
Harry também bocejou e descansou a testa no ombro de Draco, que relaxou uma fração. Harry abriu as mãos nas costas de Draco e fê-lo ir na direção do Great Hall, empurrando-o.
- Assim, inteligência rara. Café. Agora.
Draco reclamou sem muita vontade até chegarem lá. Harry continuou empurrando-o a intervalos estratégicos.
Até onde Pansy Parkinson e Ron estavam.
- ... não sei mais do que você, Weasley, seu patetão ruivo – Pansy gritava, até que viu Draco e correu em sua direção – Draco!
Ela estendeu a mão, mas Draco segurou seu pulso gentilmente, impedindo-a de tocar em seu cabelo. Ela então apenas o indicou com um gesto.
- Você... não está penteado.
Pansy lançou um olhar acusador a Harry e ele pensou, por um insano segundo, que ela fosse dizer: o que você fez com meu filho?
Pansy perguntou de Draco o que ele queria comer, falando alto, enquanto arrastava-o para dentro do Great Hall. Harry tentou segurar Draco, e Pansy olhou-o com veneno. Ele respondeu à altura, olhando-a com frieza, e deixou Draco ir.
Ron também entrou, de cara fechada.
- Preciso de uma xícara de café – disse Draco de mau humor – Me solta, Pansy.
Draco olhou para a mesa Slytherin, e encontrando os olhos semicerrados de Blaise Zabini, virou-se deliberadamente para Harry.
- Te vejo hoje à noite, Harry?
- Tá – disse Harry – Claro. "timo.
Draco se afastou. Ron parecia que tinha mordido um limão.
- Onde você esteve? - ele sibilou.
- Não é da sua conta – disse Harry com frieza.
Ron soltou o ar com força pelo nariz e cruzou os braços.
- Escuta, eu... a Hermione e eu conversamos. Foi... eu não devia acusar ninguém sem ter provas.
Harry relaxou um pouco.
- Você não o conhece, Ron.
E ele soube que estava tudo bem entre eles novamente, mesmo quando Ron disse com uma careta, enquanto eles se aproximavam da mesa Gryffindor:
- E voc, conhece?
Ron disse que ele e Hermione haviam conversado, mas o rosto de Hermione estava impassível quando ela lhe ofereceu torradas.
Ele perguntou-se o que ela devia estar pensando da situação.
Hermione não sabia o que pensar sobre o terrível estado das coisas.
Sentia-se contrariada.
Ela estava acostumada a ter idéias, ser razoável, compreensiva. Ron estava mais bem equipado para representar o papel do "perplexo".
Mas agora...
Ela sentava-se numa poltrona em frente à lareira da sala comunal Gryffindor, pensando em Harry enquanto a noite ocupava os céus.
Não era um hábito seu ter que pensar sobre Harry. Um amigo podia ler facilmente em seu rosto.
Hermione considerou o rosto de Harry. Era um dos rostos que ela mais amava, que ela conhecia por tanto tempo que aprendera a admirar seus defeitos.
De muitos modos, era ainda um rosto de criança. Oval e pálido, de estrutura óssea tão delicada que quase parecia triangular. Um rosto aberto, que refletia todos os seus pensamentos.
Hermione sorriu, lembrando-se de como Harry agia perto de Cho Chang no quarto ano, como ficava vermelho e olhava para ela de soslaio, e como perdia a faculdade de falar.
Ele não era como Ron, que encarava e puxava rabos-de-cavalo. Harry era do tipo tímido que admirava à distância.
O sorriso de Hermione desapareceu quando ela se lembrou da expressão mais comum naquele rosto desde o quarto ano.
Oh, Harry. Ele achava que escondia as coisas tão bem, quando todos podiam ler a tristeza que desolava seu rosto. Hermione sabia o quanto ele odiava a simpatia opressora, mas ela não conseguia deixar de estender a mão, ou controlar a ansiedade que sentia em relação a ele. Hermione viu quando aqueles olhos se tornaram vagos e frios, como a superfície dos óculos que ele insistia em usar. Toda vez que via aquele olhar, seu coração partia-se, e ela desejava nunca ter de encará-lo novamente.
Ela teve tanto prazer em vê-lo feliz, mas agora...
Hermione também via coisas que não queria ver.
Ela via os olhares trocados com Malfoy nos corredores, tão secretos e exclusivos como um toque. Como eles caíam no mesmo passo instintivamente. Ela lembrou-se do ódio negro e palpitante que Harry sentia, das brigas que faziam os outros estudantes saírem de perto - e via onde aquela energia estava sendo investida.
Ela via pequenas coisas, como Harry e Malfoy dividindo um livro em Cuidados com Criaturas Mágicas - um roçar de mãos longo demais - sentados mais perto que o necessário. Ela via como Harry olhava Malfoy. Um dia eles se esqueceram de acariciar o livro e este mordeu Malfoy, que começou então uma produção de risos e caretas - e ela pensou, isso não é normal...
Nesse momento, Harry chegou. Hermione observou suas bochechas vermelhas e cabelo despenteado pelo vento. Ele sorriu e correu escada acima.
Mais uma qualidade adorável de sua pele pálida – ela também expunha os seus sentimentos. Harry não podia esconder nada de Hermione, mesmo as coisas que ela tentava ao máximo não ver.
Ela percebeu, o olhar fixo no fogo, que estava tentando decidir-se se Harry era ou não atraente.
Ela o tinha como um irmão, e portanto nunca havia pensado muito sobre o assunto. Mas agora ela tinha que olhar para Harry sob um contexto diferente. Sob a luz dos eventos recentes, ela sentiu que devia considerar um novo ângulo.
Harry desceu para a sala comunal, vestindo pijamas, e sentou-se na poltrona ao seu lado.
Hermione decidiu que ele tinha bastante apelo. Estava mais bonito em suas roupas novas, e seus olhos brilhavam de entusiasmo... mas não, ele não era atraente do jeito tradicional.
Ela e Harry haviam estabelecido uma rotina.
Harry chegava na sala comunal tarde da noite, e sentava-se ao seu lado, olhando-a daquele jeito excitado. Depois de um tempo, Hermione entregava-se e perguntava como fora seu dia.
Já valia à pena ver seu rosto se iluminar.
Então ele começava uma descrição fervorosa da aventura que tivera naquela noite, incluindo várias frases que se pareciam muito com: "e aí o Draco disse...". Seu sorriso durante a narrativa era simples e deliciado.
Isso acontecia há algum tempo. No começo Hermione ficou aliviada, pois Harry parecia ter abandonado aquela horrível depressão. Então ela começou a achar que aquela amizade era intensa demais para ser saudável. Então...
Era melhor do que quando Malfoy não aparecia. Isso acontecia duas vezes por semana, e não importava a opinião de Hermione sobre Malfoy, ela odiava ver Harry definhando no sofá a noite inteira. Tudo que ele fazia nesses dias era recusar convites para jogar xadrez ou Exploding Snap, cabisbaixo.
Era uma desvantagem, ser tão transparente. Deixava-o vulnerável demais.
- Então, Harry, o que você fez hoje? - perguntou Hermione com um sorriso resignado.
Harry ergueu as costas, todo feliz, e imediatamente começou a falar.
A narrativa foi longa e envolvida. Aparentemente, Malfoy achou que seria extremamente engraçado tentar fazer um tapete voar, e os dois acabaram jogados em uma árvore.
Pelo visto, tapetes selvagens faziam o estilo de Harry. Ele parecia ter se divertido bastante.
Hermione notou que Harry parecia menor quando estava sentado, e mais alto quando estava de pé. Estranhamente, o seu físico era responsável pelos dois efeitos.
Também era responsável pela sua graça, que era um pouco esquisita. À primeira vista, ele parecia desajeitado, até você perceber que ele era ágil como um pássaro. À primeira ou segunda vista, a falta de cálculo em todos os seus movimentos era adorável.
Ele também era uma criança em sua espontaneidade.
Só era um adulto quando sentia alguma emoção grave, e nessas horas era mais sábio e maduro que todos que ela conhecia.
Ela o amava. Amava mesmo, aquele Harry sério, impulsivo e tão vulnerável. Um amigo mais próximo que um irmão.
- Deve ter sido divertido – ela disse, tentando agradá-lo.
O rosto de Harry brilhou:
- E foi – ele confirmou – Aí o Draco disse...
- Ei Harry, Hermione – Ron estava na beira da escada – Hora de dormir.
Harry levantou-se sem objetar, olhando para Hermione como quem diz: "vou deixar você sozinhos". Harry era mais óbvio quando tentava ser discreto.
Oh, mas agora, quando ele os deixava, não tinha mais aquela expressão isolada e triste em seu rosto.
Ela não sabia. Não conseguia decidir o que era melhor.
- Parece pensativa, amor.
Hermione levantou o rosto para a expressão preocupada no rosto de Ron. Um rosto de traços largos e sardas, não muito atraente ao observador casual. Mas de alguma forma, ela havia aprendido a amá-lo.
Pela única razão de não conseguir se evitar.
Ela se levantou e abraçou-o pelo pescoço, banindo os pensamentos sobre Harry de sua mente.
Tudo era tão difícil e assustador esses dias. Mais uma coisa para se preocupar, mais uma ameaça a alguém que ela amava.
Hermione afundou o rosto no ombro de Ron e tentou não pensar em nada.
No dia seguinte, as preocupações de Hermione retornaram.
Às vezes ela achava que Ron estava certo, que ela pensava demais.
Era uma manhã delicada e cinzenta, como os traços de chá numa xícara. Fragmentos de nuvens flutuavam no céu, que ainda trazia os ecos do nascer do Sol. A paisagem parecia mais mansa que o usual.
Eles caminhavam na direção da cabana de Hagrid, para a aula de Cuidados com Criaturas Mágicas, o ar da manhã mordendo seus rostos .
Ron e Hermione iam de mãos dadas, pertinho para se esquentar. Hermione ofereceu sua outra mão a Harry, mas naquele momento eles avistaram os Slytherins, dirigindo-se em massa para a cabana um pouco mais à frente.
Harry sorriu aquele sorriso impossível de conter, e recusou sua mão.
- Nah – ele disse.
Ele nem sequer fez uma pequena pausa antes de apressar-se para frente, nem fingiu uma aproximação casual.
Movendo-se tão sutilmente como uma cobra, Malfoy foi ficando para trás de seus companheiros Slytherins. Foi o único sinal que deu de ter notado a existência do outro, até que Harry se aproximou, e ele acenou com a cabeça friamente.
O sorriso de Harry era aberto e sincero.
Deus, eles eram diferentes.
Hermione apertou os olhos, tentando dar uma de analista. Tarefa difícil, pois o coro grego em sua mente insistia em cantar "Bastardo!" sempre que Malfoy estava presente.
Só o que podia fazer era observar os dois juntos, e pensar nos detalhes que notara em Harry a noite passada, comparando os dois quadros.
Um estudo em preto e branco.
Malfoy era pálido, é claro. Nesse aspecto ele era como Harry. Mas a pele de Harry era um pergaminho transparente, onde as emoções se escreviam com clareza.
A emoção não conseguia penetrar a pele de Malfoy – assumindo-se, é claro, que ele tivesse alguma. Até esforço físico intenso deixava-o rosado, ao invés de vermelho.
Não havia nada de adorável em sua pose. Provocava calafrio, aquela habilidade de ser confiante e gracioso o tempo todo.
Perfeição em alguém que você detesta é algo extremamente irritante.
Ele era a antítese de Harry, que era alguém que ela amava e tentava proteger.
Ela olhou com ameaça para a cabeça loira, que estava meio virada para a cabeça escura e desarrumada de Harry. O contraste com o cabelo de Harry parecia deliberado.
Bastardo!, cantou o coro grego. Até o seu cabelo parece ter algum propósito malicioso.
Hermione observou seu rosto quando ele olhou para Harry, e um novo pensamento lhe ocorreu.
O seu rosto também não era nada como o de Harry. Feito para esconder-se e não mostrar-se, para pensamentos e não emoções. De traços finos, ascéticos, uma boca feita para ondular-se, queixo pequeno e olhos que cintilavam como a geada.
E sim, Hermione teve que admitir, era bonito.
Mas agora havia algo de natural na sua expressão levemente divertida... e ela pensou.
Será que Malfoy não sabia?
Obviamente, algumas pessoas não sabiam. Os Slytherins aparentemente não sabiam, pois não havia nenhuma multidão assassina perseguindo Harry. Os Gryffindors em sua maioria não faziam idéia.
Ron não sabia, senão já teria tido um ataque.
Ainda assim... haviam murmúrios na mesa Ravenclaw, entre os Hufflepuffs, e uma ou outra sobrancelha levantada na equipe. E tinha a própria Hermione, que tentara negar tudo, mas que havia sido obrigada a aceitar o óbvio.
Tantas pessoas pareciam saber que era seguro dizer: "todo mundo sabe".
Todos sabiam que Harry estava absolutamente louco por Draco Malfoy.
O pobre e inocente Harry, é claro, não tinha idéia. Malfoy, por outro lado...
Hermione teorizava que ele sabia de tudo – ele era rápido, aquele bastardo – e estava enganando Harry por algum motivo diabólico.
Mas aquele olhar... bem, não fora simpático, mas tampouco guardado. Malfoy pareceu quase normal, e não alguém planejando arruinar outra pessoa.
É claro, essa podia ser exatamente a sua intenção. Bastardo!
Ou Malfoy estava ciente da situação, e preparava alguma armadilha para Harry, ou estava alegremente cego para aquela bagunça toda.
Mas de um jeito ou de outro...
- Está pensando em quê, Hermione? - perguntou Ron, abraçando-a enquanto andavam juntos.
Ela virou o rosto para o pescoço dele à guisa de conforto, gozando o calor e a proximidade descomplicados. Eventualmente ela respondeu, num tom obscuro:
- Problemas.
Problemas podem estar mais próximos do que se pensa.
Hermione descobriu esse fato no dia seguinte. Era Sábado, e a manhã começou com Harry sentado à sua frente.
Seu sorriso brilhante de não-é-um-dia-lindo-para-ver-Draco-Malfoy tirou seu apetite.
Seus olhares constantes para a mesa Slytherin também.
- Hoje tem jogo entre Ravenclaw e Hufflepuff – ele declarou, colocando um ovo cozido cuidadosamente em seu copinho.
- Eu sei – respondeu Hermione – Ter você com a gente nas arquibancadas é uma mudança sempre bem vinda.
Exceto no último jogo entre Ravenclaw e Slytherin, ela adicionou de si para si, quando você torceu para os Slytherins e ficou tão feliz quando Malfoy – bastardo! - pegou o snitch.
Harry ficou vermelho, a cor fácil e infantil manchando sua pele.
- Oh, bem... na verdade, como essa é a única partida que não vamos jogar, eu e o Draco combinamos de assistir juntos – ele mudou a voz para um tom confidencial – A gente fez uma aposta.
Oh, Harry, seu idiota adorável, pensou Hermione, sentindo a picada dolorosa da impaciência. Você podia estar mais apaixonado?
Podia ser mais estúpido?
Malfoy adentrou o Great Hall, vestindo roupas Muggle novas.
Harry bateu em seu ovo, fazendo-o voar para fora do copinho.
- Desculpa – ele disse para Ron, que olhava o ovo em seu cereal – Você sabe como eu sou desastrado.
Sim, pensou Hermione com sarcasmo. Você é a nossa estrela de Quidditch sem nenhuma coordenação motora, como pudemos esquecer.
Harry ainda olhava, embasbacado, para o outro lado do Hall.
Hermione não entendia o motivo para tudo isso. Certamente, Malfoy ficava bem na calça jeans Muggle, e a camisa branca aberta no pescoço mostrava um pouco mais de peito que o usual, mas ele ainda era o rei de Bastardshire.
Malfoy viu Harry, e o obsequiou com um de seus acenos frios de cabeça.
Oh, o Malfoy não é tão investido emocionalmente?, pensou Hermione. Bastardo!
O sorriso de Harry era descomplicado e deliciado.
Ele nem percebe, refletiu Hermione assistindo Harry passar geléia numa torrada distraído, enquanto Malfoy se dirigia para a mesa Slytherin.
Harry estava absorto demais na tarefa de assistir Malfoy para se preocupar em comer. Hermione olhou para Malfoy, que sorria debochado, conversando animadamente com Blaise Zabini e fazendo gestos dramáticos com sua torrada. Então ela viu o vago reflexo da expressão de Malfoy no rosto de Harry, como raios de sol filtrados pela água. Eles pareciam puros, refletidos em seus traços tão diferentes.
Deus, Harry. Você tem idéia do que está fazendo? Não se lembra que o pai dele foi um Comensal da Morte? Lucius Malfoy não morreu pela nossa causa. Ele foi punido por fazer jogo duplo com o seu precioso Dark Lord. Um Comensal da Morte que matava a sangue frio, um dos piores que existiram. E o filho dele é igual, só está do nosso lado para obter sua doce vingança. Não podemos confiar em alguém assim, não numa hora dessas.
E você teve que se apaixonar pelo bastardo.
Foi durante o jogo de Quidditch que Hermione avistou o desastre aproximando-se em ondas, preparando-se para chocar-se contra eles.
Hufflepuff e Ravenclaw faziam uma boa partida, e os estudantes aproveitavam a incerteza introduzida pela ausência de Harry Potter, que jogava melhor do que ninguém, e de Draco Malfoy, que trapaceava melhor do que ninguém.
Fazia sol, e o jogo se estendeu folgado por todo o dia, até que o astro deslizou por trás do horizonte e o céu se tornou violeta.
Hermione até que tentou se divertir, com um Ron entusiasmado ao seu lado, assistindo ao jogo e sentindo o Sol acariciar seus ombros nus.
E quase conseguiu, não fosse o espetáculo dos dois rapazes perto do campo de Quidditch.
Eles não estavam nas arquibancadas. Ron não teria gostado e – Hermione olhou para as carrancas de Pansy, Zabini, Crabbe e Goyle – os Slytherins teriam desmembrado Harry.
Os dois estavam sentados na grama, bem no limite do campo, perto dos bancos onde ficavam as toalhas e os reservas. Malfoy apoiava as mãos no solo, um pouco inclinado para trás, com as pernas esticadas e os pés cruzados. Harry abraçava os joelhos e tinha os olhos fixos no jogo.
Corrigindo, os olhos usualmente fixos no jogo. Hermione notou que a concentração dele falhava de vez em quando.
Por exemplo, quando Malfoy ondulava uma bandeira imaginária e balbuciava preguiçoso, "Vai, Ravenclaw". Ou quando Malfoy se esticava lânguido, e balançava a cabeça fazendo suas mechas relampejarem sob a luz.
Os olhos de Harry desviavam-se do jogo involuntariamente, davam uma olhada, e depois voltavam. Ele nem parecia ciente do que fazia. Mas Hermione estava ciente, e não só isso, estava revoltada.
Ela queria ouvir o que eles falavam, e após murmurar um pedido de desculpas para Ron, atravessou as arquibancadas discretamente, procurando um lugar de onde pudesse ouvi-los sem ser atrapalhada. Ela sabia que aquilo não era ético, mas... estava muito preocupada com Harry! Ela tinha que descobrir o que Malfoy estava armando para ele.
Bem quando ela começou a escutar, a multidão aplaudiu gritando.
Hermione amaldiçoou sua sorte.
Depois de um tempo, ela conseguiu identificar uma voz odiosa:
- Ravenclaw ganhou! Você me deve cinco pirulitos sabor sangue.
Hermione teve um momento terrível, quando imaginou que aquilo fora um eufemismo.
- Aproveita a vitória enquanto pode, Draco – disse a voz de Harry. Hermione queimou por dentro ouvindo aquela voz, doce e mais grossa do que se esperava do rosto infantil, dirigindo-se a Malfoy como a um amigo.
- Eu vou varrer o campo com você semana que vem.
- Se fizer isso, eu vou te odiar para sempre.
Ai, aqui vamos nós. Chantagem emocional.
Hermione cerrou os punhos quando ouviu a repentina vibração de insegurança na voz de Harry:
- Sério? Para s...
- Para todo o sempre – completou Malfoy – Então é melhor você não falar comigo por... oh, três dias.
Hermione ficou espantada quando os dois riram, a risada arrastada de Malfoy misturando-se ao riso brando de Harry.
- Em todo caso – continuou Malfoy – Dessa vez eu vou ganhar. Essa sua sorte de ganhar sempre não é, como alguns cabeças-de-vento supunham, uma oferenda de simpatia ao seu coração machucado. Na verdade foi um plano Slytherin para envolvê-lo em uma falsa sensação de segurança. O que, tendo sido feito...
- Draco, pára de tagarelar. Que horas são? - ralhou Harry num tom afetuoso que encheu Hermione de fúria protetora. Seus olhos apertaram-se na direção de Malfoy.
Se tinha alguém pedindo outro tapa na cara...
Ela então arregalou os olhos alarmada.
Harry, de forma casual, inclinou-se para o lado e apoiou a mão no ombro de Malfoy, para espiar o relógio do outro.
Malfoy virou o corpo na direção de Harry, para informar-lhe a hora.
Seus rostos terminaram a um centímetro de distância.
O coração de Hermione fez uma pausa, cheio de pavor.
Ela observou os perfis emoldurados pelo céu violeta, o cabelo macio de Malfoy cintilando suavemente, e os olhos verdes de Harry gradualmente saindo de foco.
A respiração de Harry parecia suspensa. Sua mão, que antes fazia força no ombro do outro, agora tocava de leve, os dedos infiltrando-se por entre as mechas cobrindo a nuca de Malfoy. Ela podia ver os lábios trêmulos de Harry, a silhueta dos cílios, a hesitação prestes a se transformar em revelação...
Se Harry fizesse um movimento, sua boca roçaria a de Malfoy.
O perfil de Malfoy era mais aristocrático e indiferente do que nunca. Ele virou o rosto, consultando seu relógio novamente.
- Seis e vinte cinco.
Harry afastou o corpo, o momento de quase-revelação evaporando-se, porém sua mão permaneceu pousada no ombro de Malfoy.
Malfoy olhou para aqueles dedos tocando seu cabelo, e Hermione rezou por algum sinal de que pelo menos Malfoy sabia...
- Meu cabelo está comprido de novo – ele comentou fazendo ares – Esse miserável.
Hermione sentiu braços envolvendo sua cintura e heroicamente conteve um grito.
- Aí está você – disse Ron por trás dela – Estava te procurando – ele deu um cheirinho em seu pescoço – Então me fala, quando aqueles problemas que você mencionou vão acontecer?
Hermione pressionou o corpo contra Ron, buscando segurança, enquanto enésimas possibilidades passavam por sua cabeça.
Harry e Malfoy levantaram-se da grama e o último avistou-os, os olhos cinzentos frios e desconfiados.
Harry, é claro, só tinha olhos para o Malfoy.
O que significava aquele olhar? O que Malfoy pretendia fazer? Mais cedo ou mais tarde Harry iria se dar conta, e então...
Hermione lembrou-se de Cho Chang. Harry estava tão nervoso, e mesmo assim convidou-a para o baile. Uma garota bonita, popular, mais velha – de quem a maioria dos garotos nem ousaria se aproximar.
E Harry não era confiante... ele apenas lutava pelo que queria com todas as forças. Não conseguia evitar desejar com todo o coração.
Mas a questão não era o que Harry pretendia fazer, e sim Malfoy. Será que ele apenas quebraria o coração de Harry, ou tinha intenções mais sinistras?
Hermione lembrou-se de Lucius Malfoy, e teve um arrepio.
- Não é nada, não se preocupe, Ron.
Eu posso me preocupar por nós dois.
Quando pediram aos alunos que vestissem traje casual Muggle para o Duelling Club, Hermione soube que haveria algo de diferente.
Suas suspeitas se confirmaram quando ela avistou o chão cheio de esteiras, e quando Sirius, que a escola tentava manter a pelo menos uma milha dos Slytherins, se juntou a Lupin no início da aula.
As garotas entraram em alvoroço quando viram Sirius. Seu mais novo professor, agora que tomava banho e comia regularmente, era muito atraente, e é claro que o passado obscuro e a motocicleta voadora ajudavam.
Hermione achava aquele assentamento ridículo. Sirius Black era praticamente uma figura paterna.
Não... isso não era verdade, era? Harry estaria bem melhor se Sirius soubesse se comportar como um pai.
Ele amava Harry, Hermione nunca duvidou desse fato, e morreria por ele em um segundo; essa guerra para ele significava salvar Harry a qualquer custo. Sirius nascera para atos dramáticos como matar por vingança, fugir de prisões e adotar por impulso.
Mas Sirius não nascera para a rotina, para o dia-a-dia. Ele não sabia como cuidar de uma criança, como demonstrar o tipo de afeição que radiava o tempo todo do calmo Professor Lupin. Ele nascera volátil e instável, esse menino que quase matara Snape; e os doze anos passados em Azkaban só serviram para exagerar esses traços de caráter.
Ele simplesmente não era um pai para Harry. Não sabia como. E Harry não podia evitar ficar triste com isso.
Harry e Sirius trocaram um sorriso, e Hermione refletiu que Sirius devia estar ocupado demais para ter percebido a situação entre seu afilhado e Draco Malfoy.
É claro, Harry também não percebera nada.
Mas era só uma questão de tempo.
Hermione semicerrou os olhos quando os Slytherins chegaram ao Duelling Club.
Ela percebeu, com alarme, que Sirius fez o mesmo.
Harry sorriu, balançando a cabeça, e moveu os lábios dizendo, Está atrasado, quando Draco entrou na sala.
Draco revirou os olhos e continuou sua discussão com Blaise Zabini, que parecia achar que uma camisa brilhante de stretch era traje casual.
É claro, o fastuoso Draco vestia roupas perfeitamente apropriadas: uma camiseta branca batida e calças combate, que Natalie McDonald olhava com interesse.
- Estão atrasados, Slytherins – observou Sirius, ainda com os olhos semicerrados.
Harry se preparou para uma alegre remoção de pontos em massa. Draco olhou para Sirius com frieza.
- É melhor começarmos, então – interpôs Lupin graciosamente – Estudantes, o Professor Black concordou em ensiná-los a lutar, pois eu confesso não ser muito bom nisso. Acredito que saibam pouco sobre combate corpo-à-corpo?
Ron bufou com todo o desdém de alguém que cresceu com cinco irmãos mais velhos, provocando um sorriso de esguelha em Lupin.
- Acredito que seja uma habilidade útil. Pode fazer a balança pender para o seu lado num duelo. Se você e seu oponente desarmarem-se ao mesmo tempo, ela pode ser crucial à sua sobrevivência. Espero que todos prestem bastante atenção, e dêem o melhor de si quando forem duelar.
- Eu aprendi essa habilidade na escola – cortou Sirius, dando um sorriso maroto e dirigindo-o especialmente a Harry – Vocês também podem aprender.
A maioria das pessoas sorriu de volta.
- Maravilha – disse Draco num meio-sussurro – A guerra contra as trevas desceu para o status de briga de bar.
Blaise Zabini riu, Lupin sabiamente não ouviu nada, e Sirius semicerrou os olhos mais uma vez:
- Eu já esperava esse tipo de comentário... do filho de Lucius Malfoy.
Draco levantou o queixo e assumiu os ares superiores e irritantes tão próprios dele.
- É isso mesmo.
- Bem, tenho certeza que você tem alguns truques sujos na manga, para emergências – disse Sirius num tom obscuro – Mas se não se importa, eu ainda acho que posso te ensinar alguma coisa.
Sirius virou as costas, passando a mão nos cabelos com força desnecessária, e nesse momento a sala inteira ouviu Draco sussurrar alto demais:
- Duvido muito.
Harry tentou atrair o olhar de Draco, de Sirius, de alguém, mas eles estavam ocupados medindo-se.
- Tudo bem – disse Sirius por entre dentes – Já que você é um expert, Sr Malfoy, poderia oferecer seus serviços como meu assistente?
Lupin tossiu com urgência e foi completamente ignorado.
- Com prazer – respondeu Draco.
Harry olhou para Sirius com alarme. Não dava para confiar em Sirius quando estava irritado – ele chegara a bater em Snape ano passado.
- Tem certeza? - perguntou Sirius – Eu posso desarrumar o seu cabelo.
Ele olhou para o cabelo do outro com desprezo mal-disfarçado. Draco sorriu placidamente.
- Aí pode ser que eu tenha que te matar.
Sirius curvou os lábios.
- Ok, classe – ele anunciou – Prestem atenção, por favor. Eu garanto – ele adicionou dirigindo-se a Pansy, que se agarrava ao cotovelo de Draco – Não machucar muito o Sr Malfoy.
- É claro que não – rebateu Draco, arrancando o cotovelo das mãos de Pansy e andando até onde Sirius estava.
Ron estava agradecendo aos poderes do destino. Harry resistia ao impulso de arrastar Draco dali e colocar algum senso naquela cabeça dura.
- E você é o favorito do Snape, para completar – observou Sirius, olhando para Draco com crescente antipatia – Todo mundo, prestem atenção enquanto eu circulo o jovem Sr Malfoy...
- O Snape é o melhor professor que eu já tive – disse Draco com austeridade – Ele é um verdadeiro exemplo para os colegas.
Os dentes de Sirius bateram-se com um 'click'.
- Por favor, tome cuidado, Sr Malfoy – ele disse – Eu estive na prisão por um tempo. A gente aprende alguns truques.
- É, eu ouvi falar sobre a prisão – disse Draco – Aposto que você lutava com garotos lá também. Cuidado onde põe as mãos.
- Draco – disse Lupin com severidade, enquanto expressões chocadas tomavam conta da sala.
Todos sabiam que Black não era um professor convencional, mas isso já estava indo longe demais. Harry controlou o impulso desesperado de arrastar Draco dali.
Sirius atacou.
Mesmo furioso, Sirius nunca machucaria um estudante. Ele se controlou, e ao invés de cair em cima do outro com toda a sua força, moveu-se para tirar o fôlego de Draco e imobilizá-lo. E Sirius era tão rápido e ágil quanto Harry pensou que fosse.
Ele não se lembrou que Draco não tinha inibições e movia-se como uma cobra.
Sirius encontrou uma barreira, e foi forçado a dar alguns passos para trás.
A classe inteira prendeu a respiração.
Furioso, com os cabelos caindo no rosto, Sirius atacou de novo e torceu o braço de Draco prendendo-o em suas costas, e Draco tinha um olhar desafiante, e Harry ia ter que se levantar e gritar...
- Sirius! - admoestou Lupin – Talvez seja melhor deixar os estudantes formarem pares, e instruí-los à distância.
A fúria incendiava o rosto de Sirius, mas ele soltou o braço de Draco.
- Tudo bem – ele disse triturando os dentes – Harry, por que não fica com esse aqui?
- Demorou – disse Harry rapidamente. Ele correu e pegou Draco pelo braço, puxando-o para longe de Sirius e falando em seu ouvido.
- Às vezes você consegue ser completamente estúpido, sabia?
Draco fez um muxoxo e Sirius olhou para eles primeiro com incredulidade, depois com ultraje, e então virou-se para ordenar os outros pares.
- Ron e Hermione, você juntos, Neville e... Millicent. Por que não, Neville? Não reclama... O primeiro que conseguir derrubar o outro cinco vezes vence.
Draco observou Sirius, os olhos de gelo brilhando através das pálpebras semi-cerradas.
- Eu odeio aquele homem – ele anunciou em voz alta.
- Cale-se – disse Harry – É do meu padrinho que você está falando.
Ele se afastou de Draco dando um passo para trás, e eles se mediram, de pé na esteira.
Hermione ria enquanto Ron fingia lutar com ela. Blaise Zabini gritava com Pansy, que o prendia pela cabeça.
Harry partiu para cima de Draco sem muita convicção, e Draco desviou-se para o lado sem perder um segundo.
- O Professor Snape me contou o que Black fez com ele – disse Draco, de cara fechada. Harry teve que usar sua rapidez de Seeker para conseguir evitar o golpe do outro.
- Foi uma brincadeira!
Draco lançou-lhe um olhar taxativo.
- E que brincadeira – ele disse – Eu não acho tentativa de homicídio tão divertido. Ele sabia muito bem o que aconteceria se o Lobisomem pegasse o Professor Snape. E o Lobisomem era amigo dele, também.
Harry fez uma pausa e Draco quase o atingiu. Ele nunca havia pensado nas ações de Sirius como uma traição de Lupin.
- Bem... - ele disse – Ele pagou o preço se fez alguma coisa errada, não pagou? Doze anos em Azkaban são suficientes para pagar qualquer dívida, na minha opinião.
Draco franziu o cenho, mas não disse nada.
- E o Professor Snape também errou feio no passado. Ele pagou pelos seus erros, e agora está tudo bem. A vida é assim. Você erra e depois conserta o erro... e as pessoas te perdoam.
Draco sorriu alegre, e tentou dar uma rasteira em Harry.
- É? E o que você fez de errado, Potter?
- Eu... fiz você tomar café com o cabelo despenteado.
- E essa dívida nunca vai ser paga. Morre, rebento do demônio, morre.
Harry sorriu e tentou agarrar o braço de Draco.
- Ele é meu padrinho, e eu o amo. Por que não lhe dá uma chance?
Draco fez biquinho.
- Não sei se acredito em chances. Não as recebo com muita freqüência.
Harry parou e olhou sério para ele.
- Eu... eu te dei uma.
- Sim, eu me lembro – Draco sorriu com charme em resposta ao olhar surpreso de Harry – Mas aí, você confia demais.
Draco partiu para cima dele e o derrubou no chão.
Harry caiu de costas na esteira, com Draco em cima dele. Ele pensou se a força do golpe era responsável por sua falta de ar. Ele sugou o ar com força, meio tonto, deixando os segundos passarem. O cabelo e a respiração de Draco faziam cócegas em sua pele.
Draco tinha um halo de luz em torno de seu cabelo. Ele deu um sorriso provocante, brilhante e rápido como um arrepio, e então se escorou no peito de Harry, deslizando para o chão.
- Fácil demais, Potter.
Gente, valeu muito pelas reviews, e desculpem a demora! Me deixa muito feliz que vocês curtam essa fic tanto quanto eu. Beijos!
