Nota: O ff ainda está tendo problemas com o acento agudo (ai, que raiva), mas dá pra ler.
Luz Embaixo D'Água por Maya
tradução: Elnara
Capítulo 12
Olhe Antes de Saltar
I've forgiven myself for the mistakes I've made
Now there's just one thing, the only one I want to do
I want to feel the sun shine, shining down on me and you
I don't want to take this life for granted like I used to
I want to love somebody, love somebody like you.
Harry se levantou às oito no Sábado, para deixar os preparativos em ordem e preencher seu cesto na cozinha. Então fez seu caminho até as Masmorras Slytherin, murmurando a senha e tentando não fazer barulho até chegar à porta de Draco.
Ele bateu, e não recebendo nenhuma resposta de dentro do quarto, abriu a porta e entrou.
Harry sentiu um enjôo repentino ao atravessar o quarto até a cama drapejada.
E se Draco... estivesse acompanhado?
Não, ele não estaria. Não podia estar. Ele teria dito a Harry.
Com mais vigor do que o necessário, Harry abriu a cortina.
Draco estava sozinho.
É claro.
Ele dormia sossegadamente, face pálida contra o travesseiro, e não parecia inocente. Pelo menos não como ele fingia ser, naquele jeito calculado e brilhante que ele tinha quando estava acordado, e que lhe dava toda a vantagem sobre Harry. Ele parecia levemente preocupado, como se o sono fosse algo em que ele tivesse que se concentrar para acertar, e ele parecia – desprotegido. Seus cílios brilhavam prateados e afiados contra a sua pele.
Então seus olhos se apertaram contra a luz.
"Harry?" ele disse sem abrir os olhos.
Harry teve um sobressalto.
"Como você sabia que era eu?"
Um brilho cinza apareceu sob seus cílios.
"Porque eu não conheço mais ninguém suicida e burro o suficiente pra me acordar a essa hora num Sábado", disse Draco num tom mal-humorado. Então ele se esticou, como um gato preguiçoso, e seu humor pareceu melhorar com os movimentos lânguidos.
O cobertor desceu, revelando seu peito.
"Bem, o que você está fazendo aqui?", perguntou Draco finalmente.
Harry balançou a cabeça, distraído.
"Vamos, levanta", ele disse. "Eu tenho uma surpresa pra você, lembra?"
Draco se ergueu num cotovelo, balançando a cabeça com uma expressão de incredulidade divertida.
"Que maluquice é essa, Potter?"
"Eu disse que é surpresa", disse Harry com firmeza. "Vamos, Draco. Mexa-se. Você pode dormir até tarde amanhã."
Ele usou o primeiro nome do outro deliberadamente. Por algum motivo, sempre que Draco lhe chamava de Potter, ele sentia o desejo de provar que ainda podia fazê-lo.
"Eu quero dormir até tarde agora", lamentou-se Draco. "Traz a minha surpresa depois do almoço."
"Você tem que vir ver a surpresa", disse Harry, inflexível. "Agora".
"Veja só como ficamos mandões, depois que viramos campeões do Torneio Tribruxo."
Draco sorria. Era incrível, o que uma pessoa agüentava do Draco, só porque ele era o Draco.
"Muito bem, então", ele continuou, fazendo um gesto esnobe de desprezo. "Vai lá fora. Eu saio em um minuto."
Harry desconfiou.
"Você não está tentando se livrar de mim pra poder dormir de novo?"
Era incrível como Draco podia levantar o nariz para as pessoas mesmo deitado de bruços.
"Não, Harry, seu idiota completo", ele explicou com extrema condescendência. "É porque eu não estou vestindo nada."
Harry sentiu o rosto queimar. O peito pálido de Draco pareceu muito mais exposto do que a um minuto atrás.
"Ah... eu... desculpa."
Draco riu.
"Está tudo bem. Não precisa ficar todo vermelho."
Eu não estou vermelho!
Tudo bem, ele estava um pouco vermelho.
Harry saiu do quarto rapidamente, e repetiu para si mesmo que estava sendo estúpido. Ele já tinha visto o time de Quidditch se despindo várias vezes, pelo amor de... não era nada de mais. Ele estava agindo que nem um imbecil.
Draco, pelo jeito, já se esquecera de tudo, quando saiu esfregando os olhos. Harry se divertiu ao ver o cabelo do outro arrepiado atrás, e notou que ele trazia vestes sobre a roupa. Ele estava claramente cansado, e Harry, que levantava cedo com facilidade, encareceu-se do outro.
"Acho bom essa surpresa valer à pena."
"Já passou das nove, seu objeto preguiçoso."
Draco teve um calafrio.
"Eu sabia que era alguma hora erma."
"Vamos, a sua surpresa está esperando."
Draco não havia expressado o mínimo de gratidão ou prazer, e pelo jeito não estava para começar.
"Acho bom valer à pena", ele resmungou novamente.
Harry o esmurrou de brincadeira.
"Canalha", ele disse, não sem uma boa medida de afeição. "Vamos."
Draco ainda estava trôpego quando eles desceram as escadas da escola.
"Por que temos que ir a Hogsmeade pelo caminho mais longo?", ele perguntou depois de um tempo, sacudindo a cabeça e tentando parecer alerta.
"Porque Honeydukes abre dez horas no Sábado, e arrombar a porta seria errado", explicou Harry. "Eu já te falei, Draco."
"Errado! Defina errado."
"A definição geral seria 'algo que não é direito'."
"Que poderia muito bem significar 'esquerdo'. Existe alguma objeção a fazer algo do lado 'esquerdo'?"
"Bem, tente 'falta de consideração', então. O dono dorme em cima da loja. Poderíamos acorda-lo."
"E daí?", perguntou Draco com espírito. "Se eu estou acordado, então todo mundo também devia estar. Quando eu não estou feliz, gosto de espalhar minha desgraça com um colherão. Você já acordou alguma vez com vontade de chutar alguém?"
"Às vezes me dá vontade, sim", disse Harry olhando de esguelha para o outro.
Draco fez uma careta.
"Agh. Você é um saco, Potter."
Harry ergueu o sobrolho.
"'Você é um saco, Potter'? Essa foi fraca, Draco."
"Agh", fez Draco, mordaz. "O que tem na cesta, Harry, é parte do presente?", ele se alegrou. "Ooohé? Posso ver? Posso dar uma espiadinha?"
Harry atingiu Draco com a cesta.
"É parte do presente, e você não pode ver ainda."
"Aquele era o meu joelho", informou Draco, sombriamente. "Eu podia ter morrido."
"Desde de quando uma pessoa pode morrer porque alguém bateu no seu joelho com uma cestaÉ a mesma lógica que diz que você vai morrer porque um Hipogrifo cortou o seu braço?"
"Eu podia ter morrido! Podia ter pego uma infecção, você sabe", disse Draco. "Ele parecia bem sujo para mim. E essa cesta podia ter uma farpa, que envenenaria o meu sangue, que levaria ao meu falecimento rápido e trágico, o que significaria milhares de admiradores, chorando no caixão contendo o meu belo e pálido cadáver, que o condenariam à morte por pedradas."
Harry olhou Draco longamente. Draco cruzou os braços, defensivo.
"Poderia acontecer."
"Eu aceito o risco", disse Harry secamente, puxando Draco pelo braço.
Ele estava nervoso demais, e não aproveitaria nada enquanto não visse a reação de Draco. Então eles caminharam pela neblina da manhã, que o Sol já começava a dissolver, até que chegaram ao pequeno porto onde a balsa geralmente atracava, e Draco viu o presente.
Ele olhou horrorizado e disse:
"Você tem que estar brincando."
O pequeno barco a remo balançava levemente sobre o lago, as ondas marcando a superfície plácida da água. Harry se inclinou e colocou a cesta no barco.
"Não", ele disse. "Eu não estou brincando, Draco."
"Eu não vou entrar naquela coisa."
"O quê... você quer ficar com medo pra sempre?"
"Me parece um bom plano, sim! Eu não sou um Gryffindor. Ter medo não me incomoda."
"Não?", perguntou Harry.
Draco fez cara feia, olhou para o barco de novo e seu rosto empalideceu. Harry o viu engolir em seco.
"Harry", ele disse baixinho. "Eu não posso."
"Draco, você não é obrigado. Mas o barco está encantado, e nenhum feitiço pode penetra-lo. É perfeitamente seguro."
Draco olhou para o barco de novo, e depois para Harry. Ele engoliu em seco, num movimento doloroso.
"Deve ter dado trabalho."
"Eu pedi à Hermione que me indicasse alguns livros", Harry sorriu de leve, e sentiu-se feliz quando Draco sorriu de volta. "Eu não disse pra que era."
"Naturalmente", Draco olhou para o barco, duvidoso. "Nenhum feitiço mesmo?"
"Prometo. Mas... você não precisa entrar, se não quiser."
Draco olhou para o barco mais uma vez, e para Harry de novo. Ele mordiscava os lábios, mas seus olhos estavam alertas e translúcidos.
"Eu sei", ele respondeu, e subiu no barco cuidadosamente.
Harry entrou, tentando não balançar muito. Draco começou a suspeitar novamente.
"Se feitiços não afetam o barco", ele disse. "Como vamos fazê-lo se mover?"
"Como você acha?", Harry pegou os remos. "Do jeito Muggle, idiota."
Draco pareceu horrorizado.
"Trabalho braçal? Você é doente."
"Pegue um remo, Draco."
"Eu?", disse Draco, assumindo uma expressão ausente. "Como se movimenta? Quais as palavras que se diz?"
Harry olhou para ele, incrédulo.
Finalmente, ele disse:
"Você vai remar na volta", Harry começou a remar, afastando-os da margem.
Ele viu os dedos de Draco apertarem as extremidades do barco, mas não comentou. Ao invés disso, ele perguntou:
"Como vai o projeto de Mágica Criativa?"
"Péssimo!", Draco respondeu prontamente, com desespero. "Eu não consigo escolher. Quer dizer, quem poderia? Tem música e arte e escultura e atuação, e por algum motivo, eu adoro a idéia de poesia."
"Nunca achei você do tipo que gostasse de poesia."
"E eu não sou. Mas se eu recitar uma, posso vestir a blusa de poeta. Eu gosto das mangas."
"Não acho que você devia estar levando mangas em consideração."
Draco deu de ombros. Ele largara uma extremidade do barco, mas olhou em volta ansioso quando Harry chegou ao centro do lago.
"Acabou? Podemos voltar agora?"
"Não, Draco", disse Harry. "Vamos ficar aqui um tempo. Até depois do almoço... é por isso que eu pedi aos elfos que preparassem uma cesta."
Draco parecia indignado.
"Eu não vou ficar, e você não pode me obrigar!"
Harry deu um sorriso inocente.
"Quer apostar?", ele perguntou, e largou os remos, que afundaram no lago.
Draco deu um grito lamentoso.
"Não acredito que fez isso! Você disse que feitiços não penetram esse barco, então como nós vamos voltar? Eu não vou nadar de volta", ele adicionou secamente. "E não vou deixar você ir embora. Então nós vamos morrer de fome, e você vai morrer primeiro e aí eu vou ter que te comer, o que não vai me salvar, porque, convenhamos, o seu corpo magrela não alimentaria nem um esquilo, e eu vou perecer sozinho."
"Draco. Você confia em mim, certo?"
"Sei láé, confio", admitiu Draco com rancor.
"A gente vai voltar. Relaxa."
Draco olhou para o barco, para a água, e enfim, para Harry. Respirou profundamente.
"Está bem."
"Bom", Harry se reclinou no barco. "E eu não sou magrela", ele adicionou com indignação tardia.
Draco se reclinou cuidadosamente do outro lado.
"Você é magrela", ele insistiu, mais alegre. "Tem pulsos ossudos. O que você devia fazer era ganhar peso, e deixar crescer um bigode."
Harry piscou.
"Por que?"
Draco se esticou, conseguindo dar a impressão de estar se reclinando com luxúria num barquinho que, Harry sabia, ele tinha medo até de tocar.
"Eu não te conteiÉ o meu plano diabólico", ele disse. "Eu sei como você odeia ser famoso, e tal. Então o que você tem que fazer é criar um alter-ego. Que seja, assim, um bruxo-ninguém. Quem iria suspeitar que um gordinho de bigode é na verdade o famoso Harry Potter? Você pode usar coletes de lã e se chamar Ignácio Truta."
"Ignácio Truta", ecoou Harry num tom ausente.
Draco deu um sorriso alegre.
"Acho que combina com você. Além do quê, Harry Potter não soa lá muito bem."
"Eu gosto do meu nome!"
"Ah, não", discordou Draco. "É um péssimo nome. Harry, por exemplo. O verbo 'to harry' significa perturbar, atormentar, e 'to potter' significa vagabundear. Pense na mensagem que você está passando para o mundo! Dá a impressão de que você vagabundeia por aí, atormentando as pessoas."
"Ah, agora eu vejo. Obviamente, esse deveria ser o seu nome."
"Você só está falando porque tem inveja do meu nome aristocrático", observou Draco, altivo. "Encare a verdade, Potter. Seus pulsos são ossudos. E você tem um péssimo nome."
O Sol começou a dar o ar de sua graça. Draco tirou as vestes, e desabotoou os punhos de sua camisa, distraído. Ele ergueu os olhos, um pequeno sorriso brincando em seu rosto.
"Mas eu te adoro mesmo assim", ele adicionou, e se reclinou, confortavelmente.
Quando Draco atingiu um certo patamar de felicidade e conforto, naturalmente começou a reclamar.
"Harrrrrrry."
"Sim, Draco?"
"Harrrrrrry."
"Que é, Draco?"
Harry tinha os olhos fechados, e aproveitava o Sol. Quando os abriu, viu que Draco espiava para fora do barco.
"Eu acho que a lula gigante está embaixo da gente", ele anunciou, gravemente.
"E por que isso te incomoda?", perguntou Harry, indulgente, revirando os olhos e se preparando para uma cena.
Draco se escandalizou:
"Ela gosta de agarrar inocentes com seus tentáculos."
"Ela salvou Dennis Creevey de se afogar. Não deve ser má."
"Ahé isso que eles querem que você pense", disse Draco. "Deve ter sido armação deles. Aqueles Creeveys são meio suspeitos. Você sabia que o mais velho, er... Callum..."
"Colin."
"Que seja. Ele entrou escondido no vestiário Slytherin, tirou fotos e depois as vendeu! Não lhe parece diabólico?"
Harry franziu o cenho.
"Na verdade, me parece Slytherin."
"Ah, bem. No fim descobrimos que fora idéia do Blaise", Draco fez um gesto vago. "Ainda assim, provei minha teoria. Diabólico."
"Meio burro, também", disse Harry. "Sem querer ofender, mas não acho que alguém pagaria por uma foto do Goyle."
"Não mais do que dois knuts (trocadilho com "nuts" (bolas)), de qualquer forma."
Draco se manteve sério por dois segundos, e então desatou a rir.
"Draco, que trocadilho horrível", disse Harry, mordendo o interior da bochecha para não rir. "Você devia ter vergonha."
"Não pude deixar passar!", Draco se defendeu com ardor. "Não tenho culpa."
"T�, tá. Pelo menos você iluminou o mistério da foto com você só de toalha que circulou a Torre Gryffindor ano passado."
Draco engasgou em seco. Harry sorriu inocentemente.
"Você devia estar em Slytherin, definitivamente", disse Draco com grande convicção, e a curiosidade brilhou em seus olhos. "Você, por algum acasoãhn, ouviu a que preço ela foi vendida?"
"Bem, não", disse Harry docemente. "Eu não estava no circuito."
Draco fez cara feia. Na verdade, várias cópias acabaram em cima da mesa Gryffindor, e os gêmeos alteraram a toalha para rosa, com estampa de corações e os dizeres: "Malfoy e McGonagall para sempre". Harry educadamente manteve a informação de fora, assim como o fato de que ele e Ron riram até cair.
Além do quê, seria muito mais engraçado se ele pudesse encontrar uma cópia e mostra-la a Draco pessoalmente.
Draco ainda fazia cara feia e resmungava como certas pessoas se achavam tããão engraçadinhas, quando o barco deu uma guinada brusca.
"Ai, meu Deus", exclamou Draco, empalidecendo. "É a lula. Eu te faleié a lula."
"Draco, a lula é inofensiva, eu prometo."
"Eu não quero nem saber!", queixou-se Draco. "Ela encosta nas pessoas com aqueles tentáculos", ele olhou ansioso para a água. "Eu não quero que ela encoste em mim", ele adicionou miseravelmente. "Ela é toda pegajosa. Use um dos remos pra bater nela."
"Eu joguei os remos fora, lembra?"
Draco olhou para o outro, ressentido, e cruzou os braços com o ar martirizado de alguém que está resignado a um destino pegajoso.
"Brilhante, Ignácio Truta."
Harry não conseguiu controlar o riso dessa vez.
"Você é ainda mais insano de manhã", ele declarou. "E é cheio de onda até nas horas mais calmas."
"Come ele primeiro", Draco aconselhou a lula, em voz alta. "Ele é muito mais crocante."
"Não, come ele", aconselhou Harry. "Ele é mau. A maldade tem mais sabor."
"Na verdade, eu tenho o sabor suave", corrigiu Draco depressa. "Eu sou pudim de leite malvado."
"Ah, fica quieto", disse Harry, estendendo o braço para fora do barco e jogando água na cara de Draco.
Draco teve um ataque de cuspe.
"Tinha lodo nisso!", ele gritou. "Água pegajosa de lula! Você me paga, Potter."
Os óculos de Harry levaram um banho. Ele viu Draco dar um sorriso afetado por entre as gotas. Harry sorriu. O sorriso de Draco esmoreceu.
"Agora, nós estamos quites", ele anunciou, tentando apaziguar o outro. "Ok, Harry?"
"Tem certeza?"
"Tenho", Draco fez que sim com a cabeça, ainda apreensivo. "Não, nem pensar. Meu cabelo fica fofo quando molha e não seca da forma apropriada."
Harry acenou com a cabeça, e disse, solene:
"Entendo."
"Então você não deve me molhar."
"Se você quer assim", Harry deu um sorriso largo, e derramou um punhado de água bem na cabeça do outro. "Fofinho."
Draco lançou-lhe um olhar furioso através da franja gotejante. Então começou a tirar a camisa.
"Ãhn?", fez Harry, estarrecido.
Draco ficou só com a camiseta de baixo, molhado até os ombros.
"Estou me preparando para pegar Sol", ele explicou, com dignidade. "Vou precisar de um travesseiro para apoiar minha cabeça, para que ela possa secar, e para o propósito secundário de conforto."
Harry ergueu o sobrolho. Draco empinou o queixo e permaneceu sério.
"Posso dividir o travesseiro?"
"Que seja", concordou Draco com maus modos. "Contanto que você entenda que o meu cabelo não é assunto para rir."
"Ah, mas é claro", disse Harry, rindo suavemente e se esticando no fundo do barco.
Draco protegeu os olhos com o braço para poder olhar para o outro.
"Essa é a segunda vez em dois dias que você agride o meu cabelo", ele fungou, e chutou a canela de Harry. "Herege."
"Falando sério, eu já ouvi dizer que o corpo é o nosso templo, mas isso já é exagero", murmurou Harry.
Draco se sentou abruptamente.
"Essa foi a gota", ele declarou, afundando o braço até o cotovelo na água, e despenteando o cabelo de Harry vigorosamente.
Harry não ofereceu resistência, apenas se ergueu num cotovelo e sorriu, convencido de que não havia muito que Draco pudesse fazer para desarrumar seu cabelo.
Draco secou a mão na calça jeans, com fastio.
"Eu encostei na lula", ele informou satisfeito. "Você tem lodo no cabelo. Agora sim, Potter. Estamos quites."
"Lodo! Que coisa nojenta. Que idade você tem, quatro anos?", Harry socou Draco no ombro enquanto este se deitava novamente.
Draco, afrontado, socou de volta.
"Você mereceu", ele retorquiu, empurrando o cabelo molhado para trás da orelha.
Harry empurrou Draco e este caiu deitado. Ele ergueu a vista para Harry e apertou os olhos, para protegê-los da luz do Sol.
"Depois de todo o trabalho que eu tive", Harry reprovou, brincando. "Ingrato."
"Nunca mexa com o cabelo", disse Draco, com voz branda. "E não quero mais saber de suruba nesse barco; ele vai virar e eu vou gritar feito mulher, e vou ser obrigado a me afogar para esconder minha vergonha."
Havia um átimo de temor real por trás do sorriso de Draco. Harry se deitou.
O Sol brilhava, e Harry estava para dormir, quando Draco o sacudiu pelo ombro.
"Harry. Ei, Harry."
"Oi."
Draco se contorceu para olhar algo no céu.
"Você acha que aquela nuvem parece o quê?", ele perguntou, com ar científico. "Eu acho que ela parece uma tartaruga de peruca."
Eles se deitaram sob o Sol por algumas horas, aquecendo-se e tirando cochilos a intervalos. Toda vez que Draco acordava ele parecia ter uma nova pergunta, como "Se você fosse um objeto inanimado, o que seria?", e "Você acha que os elfos domésticos escolhem o parceiro pelo tamanho do globo ocular?".
Draco achava que sim, e também decidiu que Harry deveria ser a vassoura de Ginny Weasley, e por isso Harry teve que ameaça-lo com pancadas.
Então Draco perguntou:
"Qual o seu maior medo?"
Harry retirou os braços de baixo da cabeça, e sentiu a curva da maçã-do-rosto de Draco contra a sua têmpora, e quase todo o seu pensamento estava concentrado num pesadelo particular e absoluto.
"Não ter forças para matar Voldemort", ele respondeu, baixinho.
Draco se retraiu ao som daquele nome, virando o rosto para as águas calmas.
"Eu esperava que você dissesse algo engraçado, como 'A Hannah Abbott de calcinha'", ele reclamou, tentando manter a voz casual.
"Ora, vamos, Draco."
Draco suspirou e se sentou, levantando os joelhos de encontro ao peito, e abraçou as pernas.
"Eu... tudo bem", ele disse. "Perdê-los. Perder os Slytherins. Os que estão do nosso lado."
Harry se apoiou nos cotovelos, olhando para o rosto de Draco, preocupado.
"Você quer dizer... medo de que eles morram, ou desapareçam?"
"Não", Draco mordeu os lábios. "Bom, isso também. É que... eu não estou dizendo que os forcei a entrar na Ordem Juvenil, mas muitos de nós tem pais que... têm certas expectativas, ou fazem coisas que nos dão medo, ou... foi difícil para os Slytherins decidirem. E depois que o meu pai... morreu, eu voltei para a escola e tinha... uma missão mesmo, e eu sabia que alguns deles me tinham como exemplo e me aproveitei disso, e não me arrependo, e eu nunca desisto. Então eu consegui o que queria, como sempre, mas tudo o que eu queria era vingança e tive que tomar responsabilidades. E agora... eu temo por eles, e tenho que tomar conta deles, e..."
Harry olhou para Draco, que parecia completamente sério pra variar, o rosto pálido decidido, o perfil tenso contrastando com a calmaria da água.
Draco observou o horizonte, e depois abaixou o olhar, respirou profundamente e sorriu de leve, pois eles se entendiam, e tentou de novo.
"É só que... deu tanto trabalho", ele disse. "Não que houvesse muitos de nós dando pulinhos, esperando ansiosos para ter o braço marcado, mas as escolhas eram tão poucas, e havia tão pouco pelo que lutar... nós não somos alvos, e não ligamos muito para os amantes de Muggles, ou bruxos nascidos Muggles. Eu não podia contar com lealdade cega ao Dumbledore, ou idealismos sentimentais. Nós não somos assim", ele fez uma pausa, e olhou para as mãos em torno dos joelhos. "Eu trabalhei demais por eles para perdê-los agora."
"Você está dizendo que há uma chance deles..."
"Eu estou dizendo que não sei!", explodiu Draco. "Nós somos diferentes de vocês. Alguns de nós têm que se virar contra a família por causa disso. A maioria de nós gosta do Lupin, mas é difícil para a gente confiar em alguém que não seja dos nossos. Eu não gosto do Dumbledore, e não, não vou deixar ele mandar em mim. E agora o Snape se foi, e todos ressentem as acusações, e é difícil, e eu não sei o que fazer!"
Harry não sabia o que dizer, ali, olhando para Draco, com a boca aberta.
Ele se lembrou de Lupin dizendo que o Snape estava fora, coletando informações que ajudariam a explicar o ataque recente.
Snape partira no fim de Março. E já era Maio. E Harry estava tão acostumado às suas ausências, tão preocupado com – o Torneio, a guerra, Draco – que nem havia notado.
E pensar que se perguntara o porquê de Draco parecer sempre tão cansado!
Ele olhou para a cabeça abaixada de Draco, quase em apelo.
"Draco. Você tem carregado todo esse peso sozinho."
Draco não ergueu a cabeça.
"Slytherins não precisam de apoio."
"Seu idiota estúpido!", Harry procurou se acalmar, e disse, com menos veemência. "Você está... preocupado com ele?"
Draco ergueu a cabeça dessa vez, os olhos imensos, como se ele tivesse sofrido um golpe inesperado.
"Sim", ele disse, agressivo. "Nós temos consciência dos riscos que ele corre. E ele é o único adulto aqui em quem podemos confiar... e que tem alguma fé em nós."
Sendo quem era, Draco não adicionou, E eu me importo com ele.
"Você pode confiar no Lupin", disse Harry. "E no Dumbledore."
"É?", rosnou Draco. "Você quer que eu peça, para pessoas que foram criadas para desconfiar de qualquer um fora de seu círculo social, para botarem fé num Lobisomem? Já é difícil o suficiente convencer a mim mesmo. E você quer que eu confie em Dumbledore, que de vez em quando resolve tomar a Copa dos Slytherins, só para não perder a prática? Não confio. Ele nunca foi um mentor para mim. Ele não é meu líder, e eu não confio nele."
"Olha, Gryffindor ganhou a Copa de forma justa..."
"Eu não estou te acusando", disse Draco. "Estou te mostrando a nossa visão. Ele nunca explicou nada para a gente. Nós não confiamos com facilidade, e ele nem tentou. Você sabe o que aconteceu quando Crouch me transfigurou e me arremessou contra a parede de pedra? Snape disse que se ele tocasse num de seus estudante novamente, ele o mataria. E o Dumbledore contratou aquele maníaco. Eu sei em quem eu devo confiar."
Harry observou a expressão teimosa e agressiva no rosto de Draco, e refletiu sobre a sua versão da história. Lembrou-se de um garoto, que numa aula de Poções certa vez, disse ao Snape que ele era o melhor professor da escola.
"O Snape vai voltar", ele disse, suavemente.
Draco voltou a encarar os joelhos.
"Com toda essa lealdade concentrada", Harry adicionou, sem pensar. "Você devia ser um Hufflepuff."
Draco levantou o rosto, e seus olhos cintilavam, mas carregavam um pequeno traço de alívio.
"Retire o que disse, ou eu te dou na cabeça com a cesta."
Ele saiu apalpando o fundo do barco tentando acha-la, e ergueu os olhos para Harry quando este tocou em seu braço.
"Você pode confiar neles", ele disse. "No Lupin e no Dumbledore. Falando sério."
"Por que eu deveria acreditar em você, Potter?", perguntou Draco com desdém. "Você confia em todo mundo. Até em mim. Existe alguém na escola por quem eu possa manter uma boa e saudável desconfiança?"
Seus ombros estavam tensos, e Harry lhe ofereceu um sorriso reconfortante.
"Filch", ele sugeriu. "Filch e sua gata maligna. Você pode desconfiar deles o quanto quiser."
"Eu gosto de gatos", objetou Draco, relaxando. "Eles são tão magnificamente egoístas. Eu sinto empatia por eles."
"Nah", disse Harry. "Eu gosto de cachorros. Eu sempre quis um filhotinho, desde criança", seu rosto se iluminou de repente. "Eu vou adotar um, quando deixar a escola."
Draco jogou a cabeça para trás e se bateu contra a extremidade do barco. Ele não pareceu nem um pouco abalado por isso, e manteve os olhos no céu.
"Ah, sim. Ano que vem", ele disse. "Nós nunca falamos sobre isso antes, né? O que você vai fazer?"
O que você vai fazer?
Ele falou como se o futuro de Harry não estivesse conectado ao dele, e eles nunca haviam discutido o assunto, mas e se ele, Draco Malfoy, já tivesse tudo planejado, e não houvesse espaço na vida dele para Harry?
O Sol brilhava, mas Harry sentiu um certo frio. Ele olhou para Draco, só conseguindo ver sua garganta, e tentou formar uma frase casual:
"Eu ainda vou ter você?", as palavras escaparam de sua boca, e naquele momento ele teria dado suas habilidades de Seeker para aprender a não ser tão desastrado com palavras. "Er, quer dizer..."
Draco olhou para ele, uma sobrancelha levantada.
"Não como bichinho de estimação, Potter", ele informou. "Eu vou ficar na minha casa. Ficar em casa com a minha mãe vai prejudicar o meu jogo, certamente, mas nós temos trinta quartos, então talvez nem tanto. E também... alguns Slytherins vão precisar de um lugar para ficar. Minha casa vai servir para isso."
Ele ergueu o canto da boca.
"Você também pode vir", ele ofereceu, de boa fé. "De vez em quando. Meu pai mandou construir vários campos de Quidditch. Está com inveja?"
Harry sorriu livremente.
"Sim, muita", ele fez uma pausa. "Eu vou trabalhar com os Aurores", ele contou ao outro. "Até já comprei um apartamento na parte mágica de Londres."
Lembrar-se do ano passado, quando procurou apartamentos com Sirius, ainda iniciava um circuito elétrico de prazer em seu peito. Sirius lhe oferecera um lar certa vez, e seu maior sonho era aquele, ter um verdadeiro lar e se ver livre dos Dursleys. Mas agora ele crescera, e seus sonhos mais antigos de infância se tornariam verdade. Ele poderia se mudar e deixar Privet Drive para sempre.
Um lar. Quando Harry comprou o apartamento, ele pediu a Sirius que saísse, e ficou lá sentado, contemplando. Sem regras, sem parentes, permanência e segurança, a esperança de um futuro além da guerra. Ele iria escolher móveis e comprar um cachorro, e...
"Você pode ficar comigo de vez em quando, também", ele disse.
"Legal", disse Draco, com prazer. "Uma toca de solteiro na cidade. Divertido", ele franziu o cenho. "A não ser que o Weasley vá morar lá também, pois nesse caso eu vou ter que recusar o seu generoso convite, por medo de que ele me sufoque durante o sono."
"Ron vai continuar em casa", disse Harry. "Eu acho - e não conta pra ninguém- que ele quer economizar e criar coragem de pedir à Hermione pra morar com ele em dois anos."
Ele esperou algum comentário maldoso sobre o casal vinte, mas ao invés disso, recebeu um inesperado e estonteante sorriso.
"Maravilha", disse Draco, alegre. "Posso ajudar a decorar o quarto de visitas?"
"Você vai escolher uma decoração que contraste horrivelmente com cabelos vermelhos, não vai?"
"Eu faria isso?"
"O Ron não vai ligar, você sabe."
Draco pareceu decepcionado.
"Você pode me ajudar a escolher o cachorro", ofereceu Harry, generosamente.
"Eu não quero. Eu quero te ajudar a escolher um gato."
"Draco, se você quer um gato, porque não escolhe um para você? Eu vou ter um cachorro, pois eu sempre quis tanto, e os Dursleys diziam que seria..."
"Eu não posso ter um gato", Draco fez bico. "Tem mobília antiga na minha casa. Meu pai sempre me disse que um gato..."
"Largaria pêlo", completou Harry, sorrindo novamente.
Draco se tornou pensativo, e se encolheu no fundo do barco como uma criança que raciocina. O vento aumentou, descobrindo sua nuca.
"Como era, com os Dursleys?", ele perguntou. "Quer dizer, eu ouvi rumores, e eu sei que você nunca voltava para casa no Natal. Mas... era muito ruim?"
Harry olhou para ele. Draco devolveu o olhar, meio curioso, meio preocupado.
Deus, a vida era estranha. E pensar que algum dia ele contaria a história da sua infância sofrida para Draco Malfoy, de todas as pessoas.
Ele respirou fundo, e relatou algumas coisas. O armário. O quarto com barras na janela, e os dias com quantidades patéticas de comida.
Quando ele chegou nessa parte, Draco agarrou seu pulso, os dedos pressionando sua pele dolorosamente. Ele relatou apenas algumas coisas sobre a vida com os Dursleys, sempre com um pouco de hesitação. Estava tudo acabado agora. Não importava mais.
Quando terminou, ele olhou para Draco. Draco tinha aquela expressão alarmante e determinada que ele trazia no rosto antes de toda partida de Quidditch.
"Que beleza, Harry", ele comentou, com uma leveza sombria. "Agora, o que a gente vai fazer é isso. Nós vamos deixar a escola, com nossas lindas licenças, e vamos transformar aquela gente em besouros. Para dar-lhes uma nova visão de vida, e tal, e então, tragicamente, nós os esmagaremos com um rolo de massa, de novo e de novo."
"Draco, eu não quero esmagar meus parentes com um rolo de massa", declarou Harry, embora a idéia tivesse um certo apelo. "Bem, eu, pelo menos, não vou fazer isso."
Os olhos de Draco ainda tinham um brilho fanático.
"Nenhum júri no mundo nos condenaria", ele redargüiu. "Você é famoso e eu sou rico. Nós somos jovens e irresponsáveis. Nós temos que cometer crimes e nos safarmos. É o nosso dever público."
A idéia de Draco na mesma sala com os Dursleys era muito bizarra. Eles eram tão pequenos e mesquinhos, e ele estaria completamente fora de lugar em Privet Drive, bem vestido e de cabelo pálido-chocante, aristocracia mágica saindo pelos poros.
Sobrepor Draco à sua vida antiga resultava numa imagem discordante. Ele era animado demais, resplandecente demais para aquilo, e Harry deixara aquele tédio sufocante para trás. Ele trouxera tudo o que tinha em seu quarto, e sabia, assim como eles, quando se foi, que nunca mais voltaria, e entre eles não houvera nada além de alívio e ódio marcante.
Realmente, não importava mais.
Embora ele fosse gostar de ver a cara de Draco, só uma vez, se a tia Petúnia lhe mandasse fritar bacon para o Dudley.
Ele teria saído de fininho antes da bomba explodir.
"Tudo bem, então você não quer mata-los", disse Draco avidamente. "Então, a gente faz assim. A gente muda a memória deles e os convence de que eles são dançarinos exóticos..."
"Draco", Harry riu. "Pára. De verdade."
Draco parou, os olhos investigando a face de Harry.
"Nada de bom pode vir de dançarinos exóticos", disse Harry solenemente.
Draco acenou com a cabeça, e largou o pulso de Harry.
"Desculpa, Harry", ele viu o olhar de surpresa na cara de Harry, e continuou. "Os seus pulsos não são tão maus. Você não tem nada com o que se preocupar."
"Obrigado, Draco. Isso estava me matando."
Draco empinou o queixo.
"Tenho certeza que sim. Nem todos podem ter a garantia de herdar ossos belíssimos."
"Perdão", disse Harry. "Você quis dizer por reprodução normal, ou incesto? Porque eu ouvi umas histórias sobre as famílias de sangue puro antigas..."
"Cala a boca."
"Os seu pais eram parentes, Draco?", perguntou Harry, baixinho. "Você pode me contar. Não é culpa sua... na verdade, explicaria muita coisa."
"Cala a boca, cala a boca, cala a boca."
Draco estava vermelho de indignação, o vento que varria o lago bagunçando seu cabelo, a despeito de todo o esforço que ele fazia para mantê-lo no lugar, as mechas açoitando seus dedos enquanto ele as puxava para trás. Harry se lembrou da primeira vez que eles caminharam à margem do lago, e pensou, que diferença, que estranho, eu nunca teria adivinhado, e sorriu, chegando mais para perto do outro.
Com a voz suave, solícita, ele perguntou:
"Eles eram primos, Draco?"
Draco lhe deu um tapa no topo da cabeça.
"Para a sua informação, eles eram ligados apenas pelos laços sagrados do matrimônio", ele disse, com severidade. "E eles não se pareciam em nada, além do fato de serem loiros e atraentes. Eu nem puxei tanto à minha mãe."
"Puxou apenas o cabelo loiro e a beleza devastadora, você quer dizer", disse Harry, que conhecia bem esse Malfoy.
Draco deu um sorriso deslumbrante.
"Mas é claro", ele jogou a cabeça para trás, grandiosamente, e então tornou-se pensativo. "As pessoas dizem...", ele começou, hesitando um pouco, o que não era comum em Draco.
"Sim?", perguntou Harry.
Draco ficou quieto por mais um instante.
"Que eu me pareço com o meu pai", ele terminou abruptamente, e então levantou o rosto e falou, com uma ânsia que obviamente tentava esconder. "Você viu o meu pai, não é? Uma vez numa livraria, e depois na Copa do Mundo. Você achou que... eu parecia com ele?"
Ele está se parecendo igualzinho ao pai.
A primeira vez que Harry viu Lucius Malfoy, soube que ele só podia ser o pai de Draco.
Tão como ele, os olhos de um Malfoy, os cabelos de um Malfoy, o rosto de um Malfoy, o herdeiro Malfoy criado à imagem de Lucius para seguir em seus passos.
Mas Lucius Malfoy se fora, e os cabelos, os olhos, o rosto, e o destino pertenciam somente a Draco, e Harry nunca se sentira tão vingativamente agradecido pela morte de alguém.
Harry queria responder que não. Ele queria dizer de novo, nada igual ao pai, e fazer Draco acreditar nele, e acreditar que era uma coisa boa.
Mas Draco tinha aquela expressão no rosto, de fome mal-contida, aquela necessidade ardente por um amor que ele nunca teve e nunca teria. Harry conhecia aquela expressão, pois a vira no espelho, e embora Draco contasse vantagem para si mesmo e para os outros de que era uma criança mimada, Harry não podia deixar de notar desespero que ele conhecia até pelo avesso, assim como não podia deixar de acreditar nas próprias mentiras sobre o passado não importar mais.
Ele estendeu a mão, e pegou no queixo de Draco. Draco submeteu-se inteiramente, presumindo que Harry queria examinar melhor seus traços, para poder compara-los as de seu pai.
Mas não era isso. Era...
Aquele cabelo e aqueles olhos e aquele rosto.
"Você é muito mais bonito", disse Harry.
Draco ergueu uma sobrancelha e afastou o rosto, deixando a mão de Harry suspensa no ar por um instante.
"Seria uma boa frase para os pôsteres da campanha, não acha?", ele observou.
"Como?"
Draco se inclinou para a frente de novo, apoiando os cotovelos nos joelhos.
"Meu pai sempre quis que eu entrasse na política", ele disse. "Mas sei lá. Eu não sei se me interessa, mas também, eu nem sei em quê eu estou interessado. Talvez algo envolvendo Mágica Criativa, ou talvez... eu sempre tive curiosidade sobre os Inomináveis."
"Vai correr tudo bem", disse Harry.
"Eu vou ter bastante tempo para pensar", concordou Draco, friamente. "Eu nem vou poder fazer nada mesmo, antes da guerra acabar. Eu tenho coisas para fazer, pessoas para organizar, e quem sabe o que vai acontecer."
O que podia ser a vitória de Voldemort, ou a morte de Draco, mas Draco era um tolo teimoso demais para admitir essas possibilidades.
Harry não permitiria que elas acontecessem.
"Vai correr tudo bem", ele repetiu, com mais firmeza.
Draco deu um sorriso afetado.
"A sua fé me enternece", foi tudo que ele disse. "Talvez eu vire um gentleman ocioso, me reclinando em almofadas de seda, com dúzias de dançarinas, e chocolates à vontade."
"Parece bom para mim", disse Harry. "Você disse que vai me convidar. Eu gosto de chocolate branco."
Draco pousou as costas da mão na testa, de forma dramática, fingindo passar mal.
"Típico do seu coração cruel, falar de comida quando eu estou aqui passando fome", ele reprovou. "Não que eu lhe culpe, Harry, por me trazer aqui para morrer de fome. Não deixe a minha morte prematura incomoda-lo nem por um minuto, eu odiaria pensar que o meu trágico falecimento perturbou a sua calma."
"São uma e meia. Não acho que você vá morrer ainda."
"Mesmo sendo diretamente responsável pela minha morte, não deixe a culpa agonizante te consumir. Eu te perdôo, Harry, de verdade, a despeito da fome tortuosa que corrói as minhas entranhas."
Draco tinha o ar martirizado. Harry suspirou, resignado.
"Você pode olhar na cesta se quiser, Draco."
"Ueba", disse Draco, agarrando a cesta e inspecionando o conteúdo. "Hmm, hmmm, hmm, sanduíches, queijo e presunto e você não tem imaginação nenhuma, hmm, hmm, hmm, o que tem nessa garrafa?"
"Suco de abóbora", disse Harry.
"E na outra?"
"Café, ora."
Draco riu de alegria.
"Café", ele pronunciou com grande prazer. "Oooh, e... ervas. Ervas, Potter. Eu não vou comer ervas, não ligo se elas são boas para a pele."
"É Gillyweed", explicou Harry. "Caso o barco vire."
"Caso o barco vire?", Draco se escandalizou. "O quão insegura é essa embarcação? Por que você não expôs as suas dúvidas quanto à navegabilidade desse barco mais cedo? Não vai brotar algum buraco, vai?"
"Talvez no seu cérebro", sugeriu Harry, baixando os olhos. "Como se eu fosse deixar você correr algum risco. Idiota."
Draco pareceu mais aliviado.
"Ah."
E voltou a remexer na cesta.
"Hmm, biscoitos, hmm, oh!", ele ergueu os olhos, surpreso. "Pirulitos sabor sangue. Você lembrou."
Harry deu de ombros e acenou com a cabeça, meio sem graça, e olhou para Draco tentando ver se ele ficara feliz.
"Doces sortidos, hmm, hmm, hmm, e uma colher, ok, e... uma jarra da marmelada, e... um pacote com suspiros", Draco ergueu os olhos novamente, deixando o cabelo voar livremente para variar, e seu olhar era quase emocionado. "Oh, Harry."
"Bem, eu queria que esse fosse o piquenique mais esquisito que já existiu", disse Harry, modestamente.
"Melhor. Dia. De todos", disse Draco com convicção. "Harry, a gente tem que fazer um pra você depois. Talvez eu contrate dançarinas. O que você quer?"
Harry começou a retirar da cesta as coisas desinteressantes que Draco ignorou, como pratos, e os preparou.
"Eu gosto de ficar com você", ele respondeu, casualmente. "Me serve um pouco de suco de abóbora."
"Considere as dançarinas", sugeriu Draco, pegando a garrafa. "Eu acho que você vai pegar gosto pela idéia. Nem que elas apenas se contorçam em torno de um mastro, de maneira predatória."
"Veremos", cedeu Harry, placidamente.
Ele olhou para Draco, que mordia o lábio inferior, concentrado no copo de Harry enquanto o barco balançava.
"Nós podemos contratar dançarinas quando você se mudar para o apartamento novo", decidiu Draco, alegre, se empinando. "Eu nunca contratei dançarinas antes. Daria uma ótima festa de inauguração da casa."
Harry se retraiu.
"O meu padrinho e o Professor Lupin vão estar na minha inauguração. Não me faça imaginar essas coisas."
"Eles já estão bem velhinhos, você sabe", redargüiu Draco. "Estou certo de que eles sabem sobre..."
"Não, Draco. Nem menciona uma coisa dessas; não conecta essa palavra com as minhas figuras paternais. Pára, o que você acharia se eu fizesse isso com você?"
"Beeeem, eu posso argumentar a virtude do Professor Snape", disse Draco, franzindo o cenho de leve. "Quer dizer, o humor dele é tão instável, e ele tem aquele cabelo terrível. Mas aí tem o fato de ele ser um Slytherin..."
"O quê, ter um caso é uma espécie de... ritual Slytherin?"
Draco pendeu a cabeça para o lado, a luz do Sol brincando em seu cabelo, fazendo-o parecer um anjo inocente.
"Sim, Harryé isso mesmo. Um ritual. Quando todo Slytherin faz doze anosé deflorado à força num altar manchado com sangue de ovelha, vestindo látex, por um parente mais velho. Não, não dá um pio. Eu desrespeito as tradições da sua Casa?"
Harry revirou os olhos.
"Valeu pela imagem, Draco. Eu não quis dizer assim."
Draco fungou.
"Pois saiba que nós temos a pureza em grande estima. Nenhum de nós diz uma palavra ao Crabbe sobre a sua virtude pessoal."
Harry teve que desviar o olhar e refletir por um momento, antes que aquela terrível imagem mental pudesse ser assimilada. O lago tinha um azul mais escuro, sob um céu mais escuro, que se dissolvia nos cinzas e verde-escuros da terra firme.
"Você está dizendo que...", ele parou, e engoliu em seco. "Então, o Crabbe já..."
"Oh, sim", Draco acenou com a cabeça, num movimento brando. "Com a Millicent Bulstrode."
"Ergh, pára. Tem certeza?"
"Certeza total. Ele me acordou, do meu profundo sono dos justos e levemente intoxicados, para checar um certo feitiço vital."
"Oh, ergh, meu Deus. E o que você disse?"
O sorriso de Draco era travesso.
"Buscando em minha memória, 'Vai pega-la, tigrão'", ele deu um sorriso afetado quando viu a expressão de terror mudo no rosto de Harry. "Eu sou um bom amigo", ele se defendeu, firmemente. "E apoiar um amigo durante suas experiências de aprendizado faz parte da barganha."
"Blergh", fez Harry, de forma sucinta. "Eu nem sabia que eles namoravam."
Draco lançou-lhe um olhar oblíquo, como se estivesse tentando decifrar um hieróglifo.
"Eles não estavam namorando", ele disse, devagar. "Estavam apenas experimentando. Não tinha muito a ver com emoções."
"Ah, que repulsivo."
"Muito obrigado pela parte que vos toca", disse Draco, num tom ausente, abrindo o pacote com suspiros.
"Draco, eu não quis dizer - você nunca me contou com quantas, er..."
Draco ergueu uma sobrancelha, em indagação. Harry desistiu e socou o ombro do outro.
"Ora vamos."
Draco cedeu.
"Ok, então. Cinco. Dois namoros, dois casos e uma amizade colorida."
"Só cinco?"
Draco ficou ofendido.
"Não acho nada mal para alguém com dezoito anos, Potter", ele informou. "Que tipo de coisa vocês acham que rola nas Masmorras Slytherins, de qualquer forma? Não tem chicotes, nem couro. Na verdade, tem noites em que a gente faz palavras cruzadas."
"Certo, desculpa", disse Harry. "Não olhe para mim. Eu não sou nenhum expert nesse assunto."
"É, eu sei", Draco pareceu refletir profundamente. "Harry, você - você se importaria, se eu..."
"O quê?"
"Seria muito nojento se eu fizesse um sanduíche de marmelada e suspiro?"
"Sim", disse Harry, com firmeza. "Sim, seria. Não ouse fazer isso enquanto eu estou comendo."
"Oh, está bem", disse Draco com maus modos, lambendo marmelada do dedo. Foi provavelmente o efeito da sua palidez, que fez o interior da boca dele parecer tão vermelho.
Harry se deu conta de que Draco lhe fizera uma pergunta.
"Perdão, o quê?"
"Essas coisas te incomodam porque você está à espera de algum sentimento grandioso?"
Harry sentia-se desconfortável o suficiente com essa conversa para não querer olhar Draco nos olhos. Ao invés disso, ele olhou para a costura na camiseta do outro.
"Sei lá", ele disse. "Eu nunca pensei muito nisso."
E era verdade. Havia sempre tanta coisa acontecendo, e nunca houvera uma vontade imediata, voraz. A questão era apenas uma promessa de conforto e felicidade para o futuro, mas que sempre lhe inquietara um pouco.
"Sai pra la, eu quero me esticar", ordenou Draco, imperioso.
Harry, gentilmente, chegou para o lado. Draco se levantou, cuidadoso, ainda segurando o pacote de suspiros, e passou por cima dos pratos. Ele então se instalou confortavelmente ao lado de Harry e continuou:
"Aposto que sim", ele disse. "Eu te conheço, com os seus ideais absurdos. Você sabe que nada é apenas preto e branco, mas quer que seja assim."
"E por que isso é tão absurdo?", perguntou Harry, irritado.
Draco se apoiou nos cotovelos.
"Nada é absoluto", ele disse num tom arrastado, se espreguiçando. "Não tem como. Não existe beleza absoluta ou perfeição absoluta, ou sentimento absoluto. Eu não posso ter fé absoluta em alguém, e o Weasley não pode sentir afeição absoluta pela Granger, e... o meu pai não podia sentir amor absoluto por mim."
Não era justo que Draco avaliasse as emoções do mundo baseado na experiência que tivera com um assassino calculista.
"Você está se contradizendo", disse Harry suavemente. "Você me falou uma vez de como você vive, lembra? Com fúria apaixonada. Se é assim que você existe, se você precisa viver com paixão, o que é isso além de absoluto?"
Draco se ergueu numa mão, os cabelos macios com o efeito do vento que ainda varria o lago.
"Paradoxo cruel, não?", ele perguntou.
Ele parecia quase satisfeito com o fato de estar construindo um mundo impossível em torno de si mesmo. Harry não via como ele podia ser tão complacente com algo que dava a impressão de ser uma incerteza dolorosa sobre tudo.
Ele mesmo acreditava, e havia sobrevivido à base de algumas promessas de absoluto. Ele queria tanto uma resposta para tudo.
Ele estendeu a mão, e tocou no ombro de Draco.
"Eu quero ser seu amigo completamente", ele disse.
Fazer uma promessa de absoluto era o melhor que ele podia fazer.
"Agora nós podemos, por favor, falar de outra coisa?", ele perguntou, com tristeza. "Eu consigo reconhecer esse brilho de cupido no seu olhar a uma milha de distância."
"Eu estava apenas considerando os méritos da Lavender Brown", disse Draco, esperançoso. "A gente fez vista grossa. Ela é uma menina charmosa."
"Draco, eu já te avisei."
Draco curvou os lábios.
"Ooh, Harry, eu sinto a sua fúria. O que será de mim?"
Harry o atingiu na cabeça com um guardanapo.
"Cale-se."
"Não me machuque", gritou Draco. "O poderio do grande e cruel Harry Potter é conhecido por todos. Eu tremo diante da sua força titânica. Eu acreditaria estar perdido, não fosse a minha arma secreta..."
Draco chegou mais perto e estendeu a mão até o rosto de Harry.
Seus dedos se abriram, e ele tentou prender uma pequena Xícara Pega-Nariz em Harry. Harry agarrou o outro pelo pulso bem à tempo, e deu um grito, empurrando-o para longe. Draco caiu de costas, a mão com a Xícara enroscada no peito, o sorriso diabólico ainda brincando em seu rosto.
"Você carrega truques no bolso", disse Harry. "Parece mesmo que só tem quatro anos."
"Eu quase te peguei", disse Draco, todo convencido.
"É, mas esse não é o caso."
"A-ha! Você admite!"
Harry balançou a cabeça e resmungou:
"Quatro."
Um pingo de chuva caiu em sua mão e Draco observou tudo, consternado.
"Oh, não", ele declarou. "Vai chover."
Harry deu de ombros.
"Então a gente vai se molhar um pouco, e daí."
Draco fez cara de choro.
"Meu cabelo", ele disse numa vozinha lastimosa. "Vai se arruinar. Se arruinar, eu digo!"
Harry ergueu os olhos para o céu, onde nuvens de um cinza escuro passeavam ameaçadoras. Pingos de chuva desciam com crescente regularidade.
"A gente pode voltar", ele ofereceu, relutante.
Draco se inclinou para o canto do barco, para pegar alguma coisa.
"Nah", ele disse. "Eu tenho um plano. Pra debaixo das vestes!"
Ele atirou as suas vestes descartadas por cima dele e de Harry.
"Ótimo plano, Draco", Harry observou com a voz abafada, tentando se enfiar mais para dentro das vestes. "Não estou enxergando nada. Oooh, os Slytherins são cheios de manha."
"Quieto, aí", comandou Draco, se remexendo para ter certeza que seu cabelo estava protegido.
Harry sentiu a mão de Draco em seu joelho.
"Draco."
"Sim?", disse Draco num tom de perfeita inocência.
"Você está pensando em largar aquela Xícara no meu colo. Não esta?"
Houve uma pausa.
"... talvez", admitiu Draco, decepcionado.
Harry riu e agarrou Draco pelos pulsos.
"Então pára de pensar."
Obviamente, Draco tinha mais medo da chuva do que da fúria de Harry Potter. Ela começou a cair mais forte.
"Eeep", fez Draco, se aproximando ainda mais, rindo. O cabelo de Draco fez cócegas na orelha de Harry, e quando ele falou Harry sentiu o nariz do outro roçando sua bochecha, e o calor do hálito diferente.
"Teria sido engraçado", assegurou-lhe Draco. "Foi hilário quando eu larguei a Xícara no colo do Longbottom. Ele gritou."
Harry levou um tempo para processar a informação.
"Você o quê?"
"Foi há muito tempo", disse Draco, depressa. "E agora que eu estou pensando, nem fui eu. Foi o Crabbe ou o Goyle, ou alguém, eu provavelmente nem dei a ordem, ou talvez nem tenha sido o Longbottom, pode ter sido qualquer um, e pode ser que eu nem estivesse la, e de qualquer forma foi muito engraçado."
Harry piscou contra a escuridão embaixo das vestes, uma mecha dos cabelos de Draco roçando seu pescoço.
"Você não é só uma criança de quatro anos, mas uma criança malvada", ele disse, afastando o pescoço da mecha desgarrada.
Ele sentiu a explosão de calor na pele quando Draco riu.
"Tudo bem, foi semana passada."
"Eu estou revirando os olhos, Draco. Só pra você saber. Nunca mais faz uma coisa dessas."
"De onde saiu essa chuva?", perguntou Draco, irritadiço.
"Hm, provavelmente do céu. Me promete."
"Muito bem, eu prometo não atiçar a Xícara no Longbottom de novo. Você é um chato, Potter."
"E vocêàs vezesé um furãozinho depravado, Malfoy."
Draco guinchou, um som terrivelmente desconcertante, especialmente quando a boca do outro estava tão próxima, que quando ele deu um sobressalto de indignação, os seus lábios se esfregaram num ponto bem embaixo da orelha de Harry.
"Você disse a palavra com "F"! Todos os meus amigos têm que me prometer nunca dizer a palavra com "F"!"
Harry respirou fundo, pois estava tão abafado debaixo daquelas vestes, e sussurrou no ouvido de Draco:
"Furão, furão, furão."
Ele levou um minuto para descobrir que aquele som desafinado perto da sua bochecha era Draco tentando segurar o riso.
"Eu não preciso disso", declarou Draco, tristemente, deixando escapar um breve riso abafado. "Isso está parecendo um dilúvio, e não vai acabar nunca, e a chuva já está se infiltrando no meu cabelo."
"Bem, eu estou legal", disse Harry. "E depois da chuva, pode aparecer um arcoíris."
Draco refletiu.
"Bem. Você está com o café aí?"
Apareceu um arcoíris de cores fracas, como se Dean as tivesse pintado e agora elas se dissolvessem através do azul profundo e molhado. As cores de sonho se dissipavam no brilho do Sol quase imediatamente.
Draco e Harry estavam deitados no fundo do barco, aproveitando o restinho da luz.
"Eu nunca vi ninguém comer tanto chocolate", disse Harry, com preguiça, enquanto Draco se erguia para pegar mais um Sapo de Chocolate.
Draco olhou para ele, ofendido.
"Eu preciso da energia", ele explicou, com severidade.
Harry sorriu e fechou os olhos.
"Mas é claro."
"Harry, você pode ser um dos meus melhores amigos, e tal, mas se estiver insinuando que eu sou gordo, eu vou te bater com a cesta de piquenique. E não quero ouvir nenhum comentário sobre o seu direito de defesa."
"Quem está fazendo insinuações aqui?", perguntou Harry, lânguido, cutucando o outro na barriga.
Draco chutou Harry e se contorceu para escapar do outro, e depois se ergueu sobre os cotovelos para poder fulminar Harry com os olhos, e dar uma olhada especulativa para a Xícara Pega-Nariz, que ele equilibrara de forma precária na fivela do cinto, um feito que pedia uma boa quantidade de coragem.
Harry olhou para a Xícara, apreensivo. Então se sentou, estendeu a mão para os Sapos de Chocolate, e antes que o outro pudesse reagir, pegou a Xícara e a atirou no lago.
"Ei!", Draco se sentou, rápido, e fez cara feia. "Você poluiu. Eu vou te dedurar para a Professora McGonagall."
Harry se deitou e fechou os olhos.
"Ok."
"Oooh, Harry Potter, você é tão rebelde", disse Draco numa voz cantada, estranhamente reminiscente de Colin Creevey. "Você é mau até os ossos. Seduzindo inocentes, fazendo-os abandonar um dia de trabalho honesto..."
"E o que, exatamente, você tinha planejado?"
Harry abriu os olhos e viu Draco empinar o queixo.
"Eu tinha uma coisa muito importante para fazer. Eu ia cortar o cabelo."
"Eu sinto tanto ter arruinado os seus planos de vida ou morte", disse Harry, solenemente. "Você é capaz de me perdoar?"
"Acredito que sim. Porque, bem, está meio que valendo à pena", Draco deu outra mordida satisfeita e riu de felicidade, acenando o Sapo à guisa de ilustração. "Chocolate", ele apontou.
Harry acenou com a cabeça, sentindo-se sonolento e contente. O Sol estava mais baixo no horizonte, todo calor amarelo e tão próximo, e Draco estava na água e não tinha medo. Estava tudo pintado de cores brilhantes e simples, e por alguns minutos, tudo corria bem.
Draco parecia que queria dormir e comer chocolates ao mesmo tempo, com os olhos pesando e as roupas meio fora do lugar, a camiseta revelando um átimo de pele. Ele sorriu sensual, com o chocolate entre os dentes, quando percebeu o olhar de Harry.
"Meio que valendo à pena", ele repetiu, e então perguntou. "O quê?"
Tinha uma manchinha de chocolate no canto da boca de Draco.
"Hm, nada", disse Harry, limpando a mancha com o canto da mão. "Você tinha um... pouco..."
"Certo, obrigado", Draco se deitou, tão relaxado que parecia não ter ossos, uma mão atrás da cabeça. "Hmm. O Sol vai baixar daqui a pouco."
"É, a gente devia... voltar."
"Hmmm. Mais alguns minutos."
Mais alguns minutos e o Sol foi se enfraquecendo, e começou a esfriar um pouquinho. A respiração de Draco era suave e regular, e quando ele falou sua voz soou líquida, feliz e completamente à vontade.
"Harry, como exatamente a gente vai voltar sem os remos?"
Harry se sentou, procurou em sua jaqueta, e pegou sua varinha.
"Accio remos", ele disse, e sorriu quando eles vieram voando. "Falando sério, Draco. Tente se lembrar de que é um bruxo."
Draco olhou para os remos molhados, sem palavras, e fez uma careta horrível para Harry. Harry riu e lhe entregou um dos remos, o que fez Draco se concentrar numa careta ainda mais horrível.
"Eu não passo de um escravo", ele resmungou com ar martirizado. "Isso vai me dar um calo."
"Calos são másculos", disse Harry, e Draco fez uma terceira careta horrível de indignação, antes de começar a se vestir de novo.
"Acontece que eu já sou excessivamente másculo, para a sua informação", ele disse num tom abafado.
O som dos remos cortando a água era lento e rítmico, e Draco ficava observando Harry para poder imitar seus movimentos, seus remos descendo quase em sintonia. Harry sentiu uma pequena pontada de pesar quando o barco chegou à margem, dando um pequeno solavanco, e Draco pegou a cesta atirando-a para fora do barco.
"Eu acho que você quebrou os pratos."
"Viva perigosamente", sugeriu Draco, alegre, se levantando e saltando para a margem quando Harry estava a meio caminho de se levantar, e o barco quase virou.
Harry o reprovou com um olhar, e Draco deu uma risada, logo depois estendendo a mão.
"Desculpa, vem", ele disse, e Harry pegou na mão dele embora o barco ainda balançasse, e Draco o puxou rápido demais, então ele arfou uma vez e quase tropeçou, e Draco riu de novo, com a exultação ofegante originada daquele dia, e largou a mão de Harry antes que o outro pudesse se firmar no chão completamente. A luz do Sol que morria brilhava dourada no seu cabelo esvoaçante, e Harry sentia-se – feliz, e ria também, e estava quase para cair.
Harry caiu para a frente, e se agarrou às vestes de Draco, um pouco para recuperar o equilíbrio, e assim que eles pararam de rir Harry o beijou nos lábios.
Harry fechou os olhos, a auréola de luz cercando os cabelos de Draco vívida no escuro através de suas pálpebras. Houve um instante em que sua mente se esvaziou completamente, e a boca de Draco era tão macia.
Então seus olhos piscaram, e com um sobressalto ele se afastou de Draco.
O rosto do outro estava duro e frio, e o Sol se fora.
"Então essa foi a razão por trás de tudo isso", ele disse, absolutamente furioso, e então se virou e foi embora.
Harry ficou ali, de pé na beira do lago, olhando para o outro, devastado.
