Obrigada pelo apoio! Espero que continuem gostando da história...

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2. Kesä

Tão suave, tão fresca e tão formosa,

nunca no Céu saiu

a Aurora no princípio do Verão.

- Camões

Longas horas de duro trabalho. O cosmo precisa ser conhecido para poder ser elevado. Seis anos de disciplina deram ao garoto uma enorme resistência. Sua aparência, entretanto, continuava tão delicada quanto era quando chegou à ilha. Contemplava o horizonte em muda adoração. O sol insone ignorava o fato de ser noite, continuava severo e orgulhoso nos céus, conferindo um brilho sobrenatural à imensidão gelada.

- Vamos logo, Afrodite. Por hoje chega!

Arrancado de seus pensamentos o garoto hesitou por alguns segundos antes de seguir o mestre rumo à estalagem. Já conseguia acender o cosmo sempre que quisesse, controlava perfeitamente a sua intensidade e, com ele, era capaz de criar uma grande variedade de flores. Aquilo não era tudo.

- Amanhã começaremos a última etapa do seu treinamento. Irving falava sem encará-lo.

- Jag förstar inte. (sueco – eu não entendo)

- Você consegue controlar o seu cosmo muito bem e os resultados com a criação de flores também têm sido satisfatórios mas isso não é o bastante. É preciso se especializar para potencializar o poder dos golpes e atingir a perfeição. Eu, por exemplo, sou especialista em tulipas. Mas sou um cavaleiro de prata e espero que você, na condição de futuro cavaleiro de ouro, supere o meu poder.

- Que flor o senhor quer que eu utilize, mestre?

- Isso não me cabe decidir. A resposta para essa pergunta só pode ser encontrada dentro de você... Tenho certeza de que no fundo já a conhece.

Afrodite não respondeu àquele último comentário, estava preocupado pensando numa maneira para escolher o tipo certo de flor. Ao mesmo tempo, angustiava-se frente à idéia de que o seu treinamento estava chegando ao fim. Não que gostasse das rigorosas provas a que era submetido, pelo contrário, mas nada sabia sobre a próxima etapa da sua jornada. Era provável que deixasse a ilha e fosse morar com Athena numa terra distante e perigosa. Um nó formou-se em sua garganta. "Mas e Astrid?"

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Entrou no quarto da amiga e sentou-se à espera da história. Pela primeira vez em anos não estava realmente interessado no desenrolar da trama, queria apenas ficar ao lado de Astrid e respirar o seu maravilhoso perfume. A garota notou a mudança no comportamento dele. Afrodite, mesmo estando cansado, era sorridente e gentil. Naquela noite, entretanto, jantara quieto e cabisbaixo, mal respondendo as perguntas que Elda lhe fazia. Preocupou-se. O que poderia causar-lhe tamanho desconforto? De alguma forma iria ajudá-lo, como sempre fizera.

- Dite, sei que ainda não terminamos as aventuras de Robson Crusoé mas gostaria de te contar uma história diferente hoje.

- Que história?, seus olhos brilhavam de curiosidade.

- Venha comigo.

Astrid levantou-se e o tomou pelas mãos. Saíram do quarto, para o espanto de Afrodite. Seria o maior castigo da História se Elda os visse.

- Não se preocupe com a minha avó. A menina parecia ler-lhe os pensamentos.

Seguiram pelo longo corredor na direção oposta à dos quartos de hóspedes. Chegaram num aposento que havia sido transformado em biblioteca. Ele já estivera ali algumas vezes, sabia que não haveria nada de novo a ser visto. Astrid, ao contrário do que costumava fazer, não se deteve em nenhuma das estantes carregadas de livros, caminhou em direção a um imenso mapa pendurado na parede. Sem fazer esforço levantou-o revelando assim uma porta.

- O que é isso?, Afrodite não conseguiu conter aquela exclamação.

- Shhh.

A menina calou-o com o dedo. Abaixou-se e, com alguma dificuldade, moveu uma das tábuas do assoalho. Debaixo dela havia uma caixa de metal, velha e enferrujada. Astrid tomou a caixa nas mãos e tirou de dentro dela uma pequena chave dourada. Afrodite continuava intrigado, observando a amiga que, depois de recolocar a caixa no lugar e escondê-la, abriu a porta secreta.

- Vem, disse ela entrando no estranho cômodoque se abria.

Mesmo surpreso ele a seguiu, confiava mais nela do que em si mesmo. A visão que teve ao adentrar o aposento paralisou-o por alguns momentos. Um enorme quarto, com incontáveis janelas mirando o céu. A luz do incansável sol polar entrava por todas as direções, banhando por completo o lugar e preenchendo-o com a sua energia. Um tapete de flores cobria o chão, pelas paredes enroscavam-se ramos e folhas, o cheiro inebriante quase o sufocava. "Rosas!" Ali estava a explicação para o perfume que sempre acompanhava Astrid, ela tinha um quarto de rosas. A menina tocou-o delicadamente o ombro e indicou um pequeno sofá para que ele se sentasse.

- Não está entendendo nada, certo?, perguntou suavemente.

- Onde estamos, Astrid? O que é tudo isso?, não conseguia esconder a apreensão. Era tudo estranho demais. Como podia haver um lugar assim naquela inóspita e gelada ilha?

- Todas as noites lhe conto histórias Dite, hoje quero contá-lo a minha.

Afrodite tentou dizer algo mas a garota continuou.

- Minha mãe morreu quando nasci e nunca conheci o meu pai. Não sei quem ele foi mas sempre o imaginei como um explorador dos oceanos, cheio de cicatrizes e aventuras: por isso não estava comigo, tinha batalhas a vencer em alto mar. Ela sorriu tristemente. Minha avó pouco fala sobre o nosso passado. Eu também nada pergunto, sinto que ela carrega uma ferida aberta no coração e não me acho no direito de cutucá-la com a minha curiosidade. Tudo o que me foi dito sobre minha mãe é que se chamava Atma e que ela e minha avó fugiram de Helsinque quando ficou grávida. Gostava de pensar que fugiram à pedido do meu pai, para que não corressem nenhum risco de cair nas mãos dos seus inimigos. Entretanto, algo me diz que era dele que fugiam. Uma lágrima solitária percorreu o alvo rosto. Achei esta foto semana passada, dentro de um livro.

Afrodite pegou a foto que lhe era oferecida. Uma jovem estava parada de frente para o mar. O sol atingia os cabelos dourados, fazendo-os brilhar como fios de ouro. Os olhos muito claros pareciam transbordar de felicidade e ela sorria. Mesmo sendo diferente de Astrid não havia dúvida alguma de que era a sua mãe: a mesma pele alva, o nariz igualmente bem esculpido, a mesma transparência no sorriso. Lindas. Ambas eram lindas. Fez um enorme esforço para se desvencilhar daquela hipnótica imagem.

- E quanto a este quarto? Onde é que ele entra nessa história?, ele estava ficando ansioso.

- Calma, Dite!

- Desculpa. O garoto corou.

- Bem, eu achei algumas notas em muitos dos livros que li. Aos poucos fui montando o quebra-cabeça da vida da minha mãe. Astrid tinha os olhos marejados. Ela sublinhava os trechos que mais gostava em cada história, registrava suas impressões sobre passagens significativas: era como se conversasse com os livros. Pelas anotações fui descobrindo como se sentia. As notas eram cheias de esperança e otimismo mas depois algo aconteceu. Elas ficavam cada vez mais angustiadas e melancólicas, estava sofrendo. Foi através das notas que cheguei ao quarto. Parece-me que a minha mãe sempre gostou muito de flores e quis compensar a ausência de jardins com esse quarto, que na verdade é como uma estufa. Sempre que penso em Helsinque vejo um imenso jardim florido onde mamãe caminhava despreocupadamente sentindo a brisa da tarde nos cabelos. E é assim que eu imagino o paraíso, um infinito jardim de flores. Duas lágrimas gêmeas se desprenderam dos olhos negros. Na primeira vez em que estive aqui, depois de meses tentando encontrar a chave, me entristeci muito. Folhas mortas cobriam o chão, galhos secos se enroscavam nas paredes e bloqueavam as janelas, um cheiro de morte antiga pairava no ar. Tenho certeza de que a minha avó trancou o quarto logo depois da morte de mamãe. Talvez tentasse enclausurar aqui a dor e a saudade que sentia. Perder um filho deve ser uma mutilação... Tinha o rosto abatido e suspirou com pesar. Então comecei a cuidar do jardim proibido como quem cuida de uma pessoa doente. Sempre que conseguia vinha até aqui, com o meu suor e meu esforço fiz o sonho adormecido despertar e, aos poucos, o meu trabalho foi recompensado: olhe como o jardim está vivo! Aqui eu me alegro e esqueço as dificuldades dessa vida tão sofrida. Cada uma dessas rosas é como uma parte da minha mãe que me sorri. É como se eu não estivesse tão só...

Naquele momento perdeu o pouco controle que ainda tinha. Chorava alto e amargamente. Seu corpo era sacudido pelos violentos soluços. Afrodite se assustou com o estado dela. Ouvir aquela história despertou nele um sentimento novo: Astrid lhe parecia envolvida numa pálida luz, frágil e indefesa como uma boneca de louça. Daquele instante em diante ela nunca mais saiu do seu coração. Abraçou-a fazendo-lhe festa nos sedosos cabelos. Ele também tinha lágrimas nos olhos.

- Calma, meu bem. Ele começou suavemente. Você não está só. Fader, moder, broder, syster... (sueco – pai, mãe, irmão, irmã) Deixei todos para trás. Não tenho mais para onde voltar. Pode parecer um destino horrível mas por causa dele nos encontramos. Não estou só, você é toda a família de que preciso e eu prometo protegê-la sempre. Jamais sairei do seu lado.

Beijou com doçura os rubros lábios da garota, que o olhava comovida. Aconchegou-a junto ao peito e começou a cantar baixinho, uma canção de sua terra. Astrid não compreendia todas aquelas palavras mas tinha certeza do que significavam: ela não estava mais sozinha.

- Nuku hyvin... (finlandês – durma bem), murmurou antes de adormecer nos braços de Afrodite. A escolha do jovem estava feita.

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Depois daquele dia a cumplicidade dos dois aumentou. Conversavam mais abertamente e, em alguns momentos, a impressão que se tinha era de que podiam ouvir os pensamentos um do outro. Os treinos ficaram mais curtos e espaçados. Afrodite tinha um desempenho extraordinário no manejo das rosas, já tinha aprendido tudo o que seu mestre podia ensinar-lhe. Irving estava muito orgulhoso, agora era só uma questão de tempo até o Santuário convocar o novo Cavaleiro de Peixes.

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Como todos os tempos felizes, aquele também passou rápido. Uma carta vinda da Grécia foi entregue a Irving. O rapaz sorriu tristemente ao vê-la, era hora de deixar o seu discípulo partir. Chamou Afrodite para um passeio. Caminhavam lentamente pela gélida praia quando ele começou:

- Afrodite, você já está com treze anos. Cresceu muito desde que chegou aqui, em todos os aspectos.

- Tack! (sueco – obrigado), disse o garoto, orgulhoso. Era tão raro ouvir o mestre elogiando-o.

- Não precisa agradecer. Você trabalhou duro e mereceu cada uma das minhas palavras. Entretanto, ainda há muito a crescer e espero que se lembre sempre disto. A maior derrota que um homem pode sofrer é acreditar eu já aprendeu tudo. A cada dia devemos lutar para sermos ainda melhores.

- Sim, senhor.

- Esta carta chegou hoje da Grécia, estão lhe convocando para assumir o posto de cavaleiro de ouro de Peixes a serviço de Athena. É uma grande honra, garoto! Sorriu, agora com ternura. Tinha feito o seu trabalho, o aprendiz estava pronto.

- Riddare... (sueco – cavaleiro) Aquela palavra parecia-lhe tão estranha. Desde que saíra do seio materno lhe era ditoque seria um Cavaleiro de Athena, guardião da justiça e protetor da paz na Terra. Estariam certos? Como saber se aquele era mesmo o seu destino? Uma estranha sensação lhe tomou de assalto, queria poder recusar aquele chamado: pressentia que o titulo de cavaleiro lhe traria dor e sofrimento. Sentiu um arrepio lhe correr a espinha.

- ... em três dias. Voltou à realidade com aquelas palavras.

- Perdão mestre, o que disse?

- Eu disse que o navio que irá levá-lo chega em três dias. É bom que comece a se preparar.

Afrodite não tinha muitos pertences: algumas mudas de roupa, dois pares de sapato e uma foto da sua família. Não era disso que o mestre falava, era de Astrid! O peso daquela constatação fez o rapaz curvar-se, teria de deixá-la.

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- Precisamos conversar. Ele tinha o semblante carregado, aquela seria sua última noite na ilha.

- Não se preocupe, Dite. O mestre Irving já me contou tudo: amanhã você parte para a Grécia.

- Sim. Ele não conseguia encará-la.

- Fico feliz que tenha alcançado o seu objetivo, tenho certeza de que irá honrar a condição de cavaleiro.

Aquela conversa angustiava-o ainda mais. Não queria admitir (nem para si mesmo) que largaria tudo aquilo se ela lhe pedisse. Quando deixou sua família para trás sofreu muito mas a dor que sentia naquele momento era diferente, oprimia-lhe o coração de tal forma que imaginou estar morrendo. Astrid também sofria. Lutava bravamente contra o ímpeto de atirar-se aos seus braços implorando para que não a deixasse, ou então que a levasse consigo. No entanto ela sabia o quão importante aquilo era, não se perdoaria nunca se ele abandonasse seu dever por um capricho feminino.

- Posso acompanhá-lo até o porto?, perguntou tímida.

- É claro! Ficarei muito feliz se a última visão que tiver dessa ilha for o seu delicado rosto.

Ele revelava a alma com aquela frase. Ali estava expresso todo o seu sentimento. Se tinha mesmo de partir era a imagem dela que queria levar consigo, pela eternidade. Ela sorriu ao ouvi-lo. Queria muito vê-lo embarcar para que pudesse estar ao seu lado até o último minuto.

- A que horas sai o navio?

- Sete da manhã.

- Durma aqui comigo.

- Sua avó pode não gostar, ele disse encabulado.

- Você tem dormido ao meu lado desde que pisou nesta ilha, Dite. Depois de tanto tempo vai começar a ter vergonha?, perguntou ela, divertida.

Afrodite riu gostoso, sua risada contagiante fazia Astrid rir também. Mesmo naquelas últimas horas ainda eram felizes juntos. Os dois corações, angustiados pela iminente separação, se aqueceram num afago que durou até as primeiras horas do dia seguinte.

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O porto parecia enorme aos seus olhos, ou será que era ele que estava se sentindo pequeno? Era como se toda a sua energia o tivesse abandonado. Não queria ir para a Grécia, não queria lutar por pessoas que não conhecia e principalmente, não queria deixá-la.

- Entregue esta carta ao Grande Mestre, garoto.

- Sim, senhor.

- Fico feliz que tenha chegado até aqui. Abraçou o pupilo, que criara como um filho, pela primeira vez. Afrodite se emocionou com aquele gesto, seu mestre nunca havia demonstrado afeição tão abertamente.

- Juro pela minha vida que honrarei o treinamentoque me deu, mestre. Tinha os olhos marejados.

Nesse momento Astrid chegou correndo ao cais. Trazia algo nas mãos, os negros cabelos dançando ao sabor do vento.

- Tive medo de não chegar a tempo, disse recuperando o fôlego.

- Mas felizmente chegou, Afrodite falou timidamente.

- Vou deixá-los agora. Boa viagem, Afrodite.

- Adeus mestre Irving, obrigado por tudo!

Virou-se para Astrid. Nunca ela lhe pareceu tão bela.Os cabelos soltos caiam-lhe pelas costas até a linha dos quadris, os olhos escuros estavam úmidos de emoção, os lábios rubros entreabertos, seu perfume envolvendo o ambiente. Rosas.

- Eu trouxe este bolo pra você, Dite. Sei que é o seu preferido e tive medo de que sentisse fome durante a viagem.

- Não precisava se incomodar.

- Você jamais será um incômodo para mim. Fiz esse bolo com alegria, pensando na sua felicidade ao comê-lo.

Uma lágrima salgada precipitou-se em direção ao chão. Afrodite pegou o bolo com cuidado e beijou as mãos dela com doçura.

- Tudo o que você toca é sagrado para mim. Esse bolo será, sem sombra de dúvida, melhor do que qualquer banquete dos deuses.

O navio apitou, sinal de que estava preste a partir. Abraçaram-se longamente. Que o mundo acabasse naquele momento para que os braços permanecessem enlaçados! Mas o mundo não acabou e o abraço se desfez. Ambos choravam, de medo e saudade.

- Se já gozamos de dias tão serenos, serena também seja a despedida, disse ela num inesperado sorriso entre lágrimas.

- Não irei dizer adeus, nos veremos de novo.

Pela segunda vez desde que se conheceram, beijou suavemente os lábios de Astrid. Da amurada do navio pode vê-la, ainda no cais, acenando. Aquela imagem ficou gravada para sempre em sua memória, a mais bela e querida de todas. Astrid ficou parada vendo o navio partir. Mesmo depois dele ter sumido no horizonte continuava de pé, o braço levantado para um último aceno. Num sussurro repetiu as palavras que lhe foram ditas, como numa promessa:

- Nos veremos de novo...

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