Desculpa pela demora, essa correria de fim de ano atrasou um pouco a fic. ;)
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3. Syksy
Tudo era inalienavelmente alheio,
Tudo era dos outros e de ninguém,
Até que tua beleza e tua pobreza
De dádivas encheram o Outono.
- Pablo Neruda
Já fazia mais de um ano que chegara à Grécia. Aquela exótica terra ainda o surpreendia muito mas já caminhava pelas alamedas e ruelas do Santuário sem ficar completamente desnorteado. Era difícil se adaptar a tantas mudanças em tão pouco tempo. Toda a sua vida vivera em áreas geladas, onde a brancura cálida e mortal envolvia as pessoas em um abraço sem fim e o sol era um amante instável: ora recusando-se a partir, ora abandonando-os à escuridão. Na Grécia conheceu uma nova faceta do rei dos astros: ali ele parecia querer queimar a terra a sua volta, querer curtir o couro dos homens – como um suserano testando seus vassalos. Sofrera muito por causa do calor grego, o ar quente muitas vezes parecia perfurar-lhe os pulmões mas felizmente a fresca brisa da tarde soprava de tempos em tempos. O jovem se desenvolveu ainda mais naquela terra estrangeira, estava mais alto e belo, o rosto de uma delicadeza ímpar contrastava com os rostos másculos que via ao seu redor. Na ilha não conhecera outros homens além do seu mestre, que também tinha feições suaves, mas no Santuário pode constatar que se assemelhava a uma mulher em sua beleza. Muitos não o respeitavam por isso, poucos o levavam a sério. Ele não se importava, nem um pouco. Os cavaleiros de ouro sempre defendiam-no, naquela época ainda eram todos muito jovens e unidos por uma amizade inocente e sincera. As intrigas e conspirações pertenciam a um futuro distante, que nem os mais sensitivos poderiam prever. Dentre os dez cavaleiros de ouro com quem convivia três eram-lhe mais caros: Mu de Áries, Shaka de Virgem e Máscara da Morte de Câncer. Os dois primeiros por serem suaves em seus modos e profundos em suas falas, contrastando com o jeito intempestivo e rude da maioria dos homens daquele lugar. Máscara da Morte era seu melhor amigo. Não sabia dizer o porque daquela amizade já que os dois aparentemente nada tinham em comum mas importavam-se muito um com o outro, como irmãos. Aqueles três eram os únicos que enxergavam as lágrimas através da máscara sorridente que o jovem se impunha. Para os outros sete Afrodite era o amigo alegre, gentil e sorridente; não conseguiam perceber o quão sombria era a sua dor. Caminhava lentamente por uma ruela silenciosa. Os fins de tarde estavam cada vez mais melancólicos com a chegada do Outono. Toda a Natureza preparava-se para uma grande despedida, as oliveiras carregadas exalavam um forte odor no seu esforço para manterem-se de pé. O Cavaleiro de Peixes também fazia um enorme esforço. Sentou-se na mureta que separava a sua casa do vale ao fundo, daquela altura podia ver o mar Mediterrâneo ao longe e o sol inflamando-se para mergulhar em suas águas. As sombras compridas adornavam todas as coisas com sua beleza triste. "Sou como o crepúsculo", pensou. Ouviu passos atrás de si mas não se assustou, de longe sentia a presença do amigo.
- Ainda pensativo?
- Só quem conhece a saudade sabe o que estou sofrendo, falou como para si mesmo.
- Ainda pensa muito nela?
Sim, ele pensava nela. Não havia um só dia em que Afrodite não pensasse em Astrid. Sentia uma enorme falta da garota. Seu olhar, sua voz, seu perfume. Sonhava com o pálido rosto todas as noites, via os negros cabelos sempre que fitava o céu. Uma dor crescente em seu peito o fez curvar-se, fazia muito esforço para respirar.
- Está tudo bem, Dite?, Máscara da Morte tinha preocupação na voz, o amigo parecia sufocar.
- Você ama alguém, Carlo?
Aquela pergunta, feita sem aviso, o surpreendeu. De fato, ele amava em segredo uma amazona mais velha e acreditava não haver esperanças para aquele sentimento. Sentou-se na mureta, ao lado do amigo, olhando a mediterrânea imensidão azul.
- Responda, você ama alguém?
- Amo, respondeu corado.
- Então sabe o que é querer estar ao lado de uma pessoa; querer conversar com ela, não porque haja algum assunto a ser tratado, mas pelo infinito prazer de ouvir a sua voz. Sabe o que é perder a fala diante do rosto da amada, não querer dormir para velar o seu sono, entregar a vida de bom grado nas suas mãos e saber que por ela, e só por ela, você continua a lutar... O que você vê aqui é apenas a minha sombra, minha sombra não sou eu. Eu fiquei para trás, no norte gelado, quando o navio zarpou. Lágrimas, que à luz do crepúsculo pareciam feitas de sangue, desciam por sua face. Máscara da Morte também tinha os olhos úmidos.
- Meu amigo, Astrid está além do seu alcance agora. Acredite, eu sei exatamente como está se sentindo, conheço a dor de amar uma mulher que não posso ter. Mas somos Cavaleiros de Athena, não podemos nos deixar abater. Enxugue essas lágrimas, Cavaleiro de Ouro de Peixes.
Ouvir aquelas palavras fez Afrodite recobrar um pouco do ânimo e secar os olhos. Não podia fraquejar, não depois de tudo o que sofrera.
- Obrigado, irmão. Abraçou Máscara da Morte.
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Os cavaleiros de prata não se conformavam, eram maiores e mais fortes e no entanto aquele garoto delicado havia recebido uma armadura de ouro. Não podiam permitir tamanha humilhação! Desde que o garoto tomara posse do que lhe era de direito atormentavam-no com brincadeiras maldosas e agressões. Só não faziam mais porque os cavaleiros de ouro insistiam em protegê-lo – mas um dia iriam pegá-lo de jeito. Afrodite caminhava imerso em pensamentos quando notou algo estranho, hostilidade. Virou-se e constatou que mais de sete cavaleiros de prata formavam um círculo em volta dele.
- Agora você não nos escapa, peixinho.
- Quero ver você gritar por socorro quando acabarmos nosso "trabalho".
Afrodite continuou parado. Não tinha a menor intenção de lutar com eles, lhe eram inferiores em poder e obviamente não eram merecedores de qualquer tipo de resposta. Que honra e orgulho podem ter cavaleiros que empreendem ataques deste tipo? Sentiu um gosto amargo quando sua boca encheu-se de sangue, eles o estavam atacando sem dó. Afrodite permanecia orgulhoso e calado no centro da roda de agressores, que descontassem logo seu ressentimento para que pudesse ir pra casa! Aquilo não lhe incomodava, perto da dor que sentia aquela surra era como a brisa matutina acariciando os campos de trigo. Foi então que ouviu um grito e Spartan caiu no chão.
- Se derem mais um passo juro que muitas armaduras ficarão sem dono.
Era Milo que chegava colocando-se ao seu lado no centro da roda. Tinha um sorriso irônico nos lábios, seus olhos faiscavam e apontava o dedo em riste ameaçadoramente na direção dos cavaleiros de prata.
- Pare de defendê-lo, Milo.
- É melhor não se meter com o meu amigo, Aracne, ou então eu lhe mostrarei a real diferença de poder entre um cavaleiro de ouro e um cavaleiro de prata.
- Ora Escorpião, pare com isso. Deixe que o peixinho prove que não é uma donzela indefesa apesar de se parecer com uma.
Milo estava indignado. Como ousavam ofender um cavaleiro de ouro daquela maneira? E como Afrodite ficava calado diante daquilo tudo? O amigo parecia perdido em outra dimensão, apático como se nada ouvisse. O sangue fervia nas veias do Escorpião, que em poucos segundos dispersou a roda de prata a sua volta.
- Porque não se defendeu? Seu cosmo é forte o bastante para acabar com todos, porque não fez nada? Estavam te chamando de donzela!
A passividade dele o irritava. Gostava muito da jovialidade e espontaneidade do amigo, o defenderia sempre que pudesse mas no fundo sabia que parte das humilhações que ele sofria se devia ao seu ar delicado. Peixes o fitava desgostoso, entristecia-lhe ver seus amigos se envolverem em brigas por sua causa.
- Disseram que você é afeminado!!, Milo exasperava-se.
- A mais perfeita forma humana é a feminina, meu caro. Com um suspiro deu de ombros e foi embora, deixando para trás um atônito cavaleiro. O que ele queria dizer com aquilo?
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Shaka bateu levemente à porta, trazia-lhe um recado: o Grande Mestre o aguardava em seu salão. Afrodite tentou ler alguma nova informação no semblante do mensageiro, em vão. Virgem mantinha a indecifrável fisionomia que lhe era tão peculiar. Os dois caminhavam lado a lado. Afrodite tinha o peito oprimido por uma estranha sensação, nuvens escuras ofuscavam o pálido sol. Alguma coisa estava errada, ele sentia em cada fibra do seu corpo. Como uma grande tempestade que se anuncia, algo trágico parecia saltar-lhe aos olhos mas ele ainda era incapaz de ver.
- Fico feliz que tenha vindo tão rápido, tenho noticias a lhe dar. A voz de Shion estava carregada.
- Vim assim que fui chamado, mestre.
- Ontem pela manhã recebi uma carta de Irving. Como você bem sabe, seu mestre não é um homem dado a frivolidades por isso me preocupei ao ver aquele envelope. Ele queria informar-lhe sobre o falecimento de uma senhora chamada Elda. Segundo consta na carta, você cresceu junto a ela portanto terá uma semana para ir ao norte prestar-lhe sua última homenagem. O navio que o levará parte em meia hora. Isso é tudo. Retirou-se deixando Peixes e Virgem para trás.
- Elda está morta, disse o jovem tristemente.
- Então se alegre, pois seu espírito imortal deixou os sofrimentos da existência para trás.
- Mas agora Astrid ficou sozinha. Quem irá cuidar dela?, ele se desesperava ao pensar nisso.
- Por enquanto não há nada a ser feito. Arrume-se e tome o navio, o resto será resolvido no seu devido tempo.
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A paisagem desolada lhe alegrava o coração. Mesmo de longe ele podia ver o porto gelado e a imensidão alva ao fundo, aquele era o seu lugar. Duas pequenas figuras de pé no porto deserto, sabia muito bem quem eram. Desembarcou e se deparou com os dois rostos que tanto amava: seu mestre e Astrid. Impressionou-se com a mudança dela. Os olhos continuavam falando por si, o cabelo ébano continuava brilhante e sedoso, a pele continuava alva mas ela estava diferente. Mais alta, os seios (agora redondos e fartos) chamavam atenção por baixo do vestido negro, linhas arredondadas do quadril e ancas onde antes não havia curva alguma. Era agora uma mulher, uma linda mulher, e a tristeza deixava-a ainda mais bela. Astrid também observava o amigo. Mesmo sofrendo não conseguia deixar de notar como ele estava lindo. Apesar da situação, a verdade é que ambos estavam muito felizes com o reencontro.
- Jag längtar efter dig. (sueco – senti sua falta)
- Minulla on ikävä sinua. (finlandês – senti sua falta)
Abraçaram-se, os rostos banhados pelas lágrimas de felicidade. Aspiravam o perfume um do outro numa ânsia semelhante à de alguém prestes a se afogar buscando oxigênio, apertavam-se com força como para certificarem-se de que não era um sonho. Longos minutos se passaram antes que se dessem conta de que ainda estavam no porto e de que Irving os observava. Separaram-se corados.
- Como estão as coisas, cavaleiro?
- A contento, mestre. É bom revê-lo.
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No quarto de rosas o tempo parecia não existir, tudo estava como da última vez em que estivera lá. Astrid fitava tristemente o horizonte.
- Sua avó foi uma boa mulher, ele não fazia idéia de como começar uma conversa.
- Ela foi a minha família e agora que morreu fiquei só.
- Você nunca esteve só e nunca ficará. Eu estarei com você.
Astrid chorava baixinho, o medo que sentia causava-lhe uma dor horrível. Ele voltaria para a Grécia, onde era um admirado cavaleiro de ouro, conheceria outras garotas e a esqueceria ali, no gelo sem fim, onde tudo era ausência e saudade.
- Não chore, querida.
Ele tomou o rosto dela nas mãos, fazendo-a encará-lo. Os grandes olhos negros encontraram-se com os seus. Podia ver sua alma refletida neles, e a tristeza que ela sentia. Doía-lhe o coração ver tristeza naqueles olhos. Observou então o delicado rosto. Lembrava-se com perfeição de cada pequeno detalhe: as finas e elegantes sobrancelhas, os longos cílios, a testa arredondada, o suave contorno das bochechas, o queixo pequenino, os lábios... Ah, os lábios! Mais rubros e frescos do que qualquer rosa jamais seria. Fitou-os com carinho e foi tomado de assalto pelo desejo de tocá-los novamente. Passeou o polegar pela entreaberta boca carnuda. Astrid tinha a respiração acelerada, o coração batendo em descompasso. Afrodite aproximou-se mais do rosto dela, sentia seu hálito quente entrando-lhe pelas narinas. Roçou suavemente seus lábios nos dela. Ao ver a moça fechando os olhos beijou-a. A delicadeza daquela caricia não ocultava o ardente desejo que ambos sentiam. Com ternura entregaram-se àquele amor que tão cedo lhes ocupou o coração. Ali não só os corpos se tocavam mas principalmente as almas, num encaixe tão perfeito que parecia mesmo divino. Juntos alcançaram o êxtase que somente os apaixonados podem verdadeiramente conhecer. Quando o fogo dos corpos foi saciado ele a puxou para si, aninhando-a em seu peito.
- Jag älskar dig (sueco – eu te amo), disse ele com a voz rouca e os olhos úmidos. Sempre te amei.
As lágrimas de Astrid estavam agora diferentes, eram frutos da imensa felicidade que sentia ao ouvir estas palavras. Não conseguiu articular nenhuma resposta àquela maravilhosa declaração, apenas beijou-o com todo o seu ser.
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Cais do porto. Lágrimas. Despedida. A cena se repete. O vento outonal, violento e impetuoso, fazia o negro vestido de Astrid chicotear-lhe o corpo. Os cabelos do jovem casal misturavam-se no ar. O cheiro de rosas era carregado para longe.
- Quando nos veremos de novo?, ela estava aflita.
- Não se preocupe, meu bem. Eu juro pela paz da minha alma que voltarei pra te buscar. Então levarei você para conhecer a Grécia e um mundo onde os dias são quentes e o sol domina todos os meses do ano. Onde os campos se enchem de flores silvestres, os insetos não se cansam do seu balé aéreo e as pessoas bebem e amam com furor. Lá farei de você minha esposa e não haverá mais separação.
- Ah, doce seria a vida se não houvessem despedidas!
- Doce é a vida por você existir nela, respondeu abraçando-a.
- Minä rakastan sinua. (finlandês – eu te amo)
Beijaram-se intensamente. Os corações desesperados pela iminência do adeus, a respiração acelerada, os olhos transbordando. Não queriam preocupar um ao outro mas ambos tinham medo.
- Me escreva, mande notícias. Não me deixe sem saber como está e se fica bem aqui sozinha. Se precisar de qualquer coisa, por menor que seja, avise. Mato a própria Athena, se preciso for, para vir ficar contigo.
Ela sorriu com aquele absurdo e aquilo aqueceu o coração do cavaleiro. Era a única coisa de que realmente precisava para viver - o sorriso de Astrid. Trocaram um último beijo. Ela o viu embarcar com um nó na garganta, ele parecia-lhe agora mais distante do que jamais estivera. Acenando do navio percebeu o brilho das lágrimas correndo a face da amada e uma pontada no peito perturbou-o: a sensação de tragédia o oprimia novamente, a tempestade ainda estava prestes a chegar.
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