Depois de muito tempo a fic volta a ser publicada.
4. Talvi
E vem chegando o tenebroso inverno...
Mas nesse mal devorador e eterno,
Teu organismo já não mais resiste
Às punhaladas da estação de gelo...
E acabará como eu nem sei dizê-lo,
Triste, bem triste, pesarosa, triste!
- Cruz e Souza
Longos meses se passaram e o silêncio lhe doía fundo no peito. Porque ela ainda não lhe escrevera? Nem uma linha sequer chegara às suas mãos. Teria sido esquecido? O que estaria acontecendo à amada? A dúvida turvava-lhe a visão impedindo-o de perceber que a tempestade estava sobre a sua própria cabeça.
- Nunca estejam dois amantes, nunca, um do outro mais distantes do que a breve duração desta rosa em minha mão.
x-x-x
Na arena deserta, longe de olhos curiosos, um grupo de homens discutia. O céu de inverno, pesado e chúmbeo como o prenúncio de mau agouro, aumentava a angústia que pairava no ar, sólida como rocha.
- Algo precisa ser feito!
- O que você quer dizer com isso, Aioria?
- Ora Mu, não somos cegos! Afrodite definha a olhos nus, qualquer um pode ver.
- E o que você tem a ver com isso, Aldebaran?
- Não se exalte, Máscara da Morte, só queremos ajudar.
- Shura, o que o leva a crer que ele aceitaria qualquer tipo de ajuda?
- Ouça, Shaka, não somos tão próximos do Afrodite quantos vocês três, verdade, mas todos lhe temos afeto. Se pudermos ser úteis de alguma forma, se pudermos ajudá-lo... Confie em nós, mon ami. (francês – meu amigo)
Mu e Shaka debatiam mentalmente sobre o que deveria ser feito. Por um lado não poderiam trair a confiança de Afrodite revelando assuntos tão pessoais ao grupo. Por outro lado, não seria justo deixar os outros cavaleiros em tamanha angústia por causa do amigo. Desde o sumiço de Saga os cavaleiros de ouro estavam inquietos, sobressaltados. Inconscientemente esperavam por uma nova tragédia. Mu e Shaka ainda discutiam a questão quando, acima do burburinho, fez-se ouvir a voz de Máscara da Morte, grave e melodiosa.
- Nada do que façam ou digam poderá aliviar o fardo que Afrodite carrega, pois sua dor é a dor pela qual todo homem passa: ele ama. Se houvesse alguma solução para esse mal que estraçalha o coração, acreditem, eu seria o primeiro a buscá-la. Mas é nosso destino sofrer por amor, da mesma forma que é nosso destino um dia morrer.
x-x-x
Por mais de uma semana a cidade de Athenas foi coberta pela neve. Os flocos grandes caíam do céu lentamente, rodopiando com o vento numa dança invisível. A brancura sobre a cidade não trazia paz mas sim uma quietude tumular. Durante todos os Dias Brancos Afrodite foi atormentado por visões confusas: choro vindo do mar, buquês de rosas murchas, neve escarlate. Aquelas imagens repetiam-se freneticamente, estando ele dormindo ou não. No meio da noite agitavam o seu sono fazendo-o acordar banhado no próprio suor. Durante o dia enchiam-lhe os olhos deixando-o cego para o mundo. Sua cabeça rodava. E doía. E então a escuridão o tomou.
x-x-x
Durante três dias e três noites Afrodite ficou inconsciente, para o desespero de seus amigos. Em turnos, todos velavam o seu perturbado sono. Quando a escuridão o deixou livre foi o rosto de Astrid que viu em sua mente. Ela falava-lhe aflita mas ele, por mais que se esforçasse, nada podia entender.
- ASTRID!, ele acordou berrando. Chorava muito, não reparando nos assustados amigos a sua volta.
- Quer nos matar do coração, Dite!, disse Máscara da Morte num misto de alegria e espanto.
- Astrid, preciso ver Astrid!
Fez um movimento para se levantar mas caiu sentado na cama.
- Calma, Romeu. Você está fraco demais.
- Morte, Carlo, eu sinto o cheiro da morte! Preciso ver Astrid!
- Você deve estar delirando por causa da febre. Milo tentou acalmá-lo.
- Mas ela está me chamando! Conheço bem o cheiro da morte, preciso vê-la!
- Foi só um sonho, meu amigo. Agora descanse, vou procurar alguém que possa lhe preparar um pouco de comida.
Saiu depressa em busca de uma refeição para o cavaleiro, deixando-o aos cuidados de Milo. Era preciso que ele recuperasse as forças antes de tentar qualquer besteira. Afrodite continuava chorando. Uma sensação de perda o angustiava. "Astrid precisa de mim, alguma coisa está errada." Já se levantava novamente quando sua visão começou a ficar turva. O grande quarto da Casa de Peixes rodava diante dos seus olhos. Caiu sentado mais uma vez.
- O que você pensa que está fazendo?, Máscara da Morte abriu a porta trazendo um copo de leite. Preste mais atenção, Milo, ele podia ter se machucado!
- Você não entende, eu preciso ver...
- Astrid. Já sei. Se quiser vê-la tome todo esse leite e trate de se alimentar bem. É preciso ter forças para ficar de pé já que quer ir ao encontro da sua amada.
x-x-x
Em pouco tempo o jovem cavaleiro de Peixes estava de pé. Os cuidados dos amigos somados à sua urgência rapidamente restabeleceram-lhe as forças. A certeza de perigo o compelia a agir depressa, não havia tempo para prudência.
- Vou ao encontro de Astrid!
- Não pode fazer isso. O Grande Mestre está em retiro em Star Hill e você sabe que é preciso ter a autorização dele para deixar o Santuário, disse Mu preocupado.
- Faz muito tempo que ele está em retiro e ninguém sabe quando voltará. Não posso esperar, vou partir com ou sem o seu aval.
- Você entende as implicações dessa decisão?
- Sim, Shaka. Serei considerado um traidor, assim como todos aqueles que não tentarem me impedir.
- Está disposto a passar por isso?, Máscara da Morte perguntou gravemente.
- Por Astrid estou disposto a tudo!
- Então eu vou com você.
- Não, Carlo! Os que saírem sem a autorização do Grande Mestre serão considerados inimigos do Santuário.
- É justamente por isso que irei também. Você é como um irmão para mim, não o deixarei sozinho num momento como esse.
- Então se apressem. Eu e o Shaka cuidaremos para que ninguém descubra que não estão aqui. Criaremos uma ilusão perfeita, não se preocupem.
- Obrigado, Mu. Agora somos todos traidores..., disse ele com um sorriso triste.
- Lembre-se Afrodite: assim como um começo por vezes é um fim, um fim por vezes é um começo.
x-x-x
A viagem no escuro foi melancólica. O barco flutuava pela imensidão fantasmagórica do oceano congelado, nenhuma alma viva os acompanhava num raio de quilômetros. Os dois cavaleiros permaneciam em silêncio, pareciam segurar a respiração. O frio penetrava nos ossos dolorosamente, tornando os movimentos lentos e difíceis. O tempo não tinha pressa.
x-x-x
A caminhada estava cada vez mais difícil. Cada minuto atolado na neve lhe doía na alma como um ano. Céu e terra pareciam imóveis, só o coração galopava acelerado estendendo-se por sobre o gelo em direção àquela que lhe chamava. Os corpos cansados arrastavam-se como múmias e não fosse o cosmo de um cavaleiro de ouro mais forte do que o de qualquer outra criatura viva, teriam perecido na passagem.
Quando nem o cosmo parecia suficiente para mantê-los vivos divisaram ao longe a estalagem. Afrodite apressou-se à frente de Máscara da Morte, como se dor e fadiga não mais existissem. Ele era só coração, só amor, só felicidade. Cada tábua de madeira daquela antiga casa, cada pedra, tinha mais valor para ele do que todos os templos de Athenas. De bom grado trocaria a luxuosa Casa de Peixes pelo menor dos quartos dali. Era onde vivia Astrid, que lugar poderia ser mais sagrado? Abriu a porta num rompante, sentia que a alegria de estar de volta poderia até mesmo lhe fazer voar. Tudo estava perfeito, imutável como sempre fora: as duas mesas, o grande balcão. Foi só depois que a euforia do regresso abrandou, quando Máscara da Morte já entrava no salão, que o cavaleiro notou a presença de seu mestre sentado num canto.
- Hej, hur mar du? (sueco – oi, como vai?)
Irving continuava calado fitando o chão. Afrodite aproximou-se devagar, só agora dava-se conta de que algo ruim havia acontecido.
- Onde está Astrid, mestre? O que está acontecendo?
- Por que demorou tanto?
- Do que está falando, mestre?
- Você não podia ter demorado tanto, a voz de Irving saiu embargada.
- Jag förstar inte. (sueco – eu não entendo)
- Mandamos tantas cartas, Afrodite, tantas. E ela o chamou até o último momento.
- Quem chamou, mestre? Onde está Astrid?, Afrodite começava a se desesperar.
- Até o último momento...
Levantou-se correndo, precisava encontrar a moça. Deixou Máscara da Morte para trás, assim como Irving (novamente a urgência o guiava). Subiu o lance de escadas num só pulo, abrindo portas e gritando.
- Astrid! Astrid!
Ao fim do corredor pode ver uma luz, fraca e bruxuleante. Um nó enorme se formou em sua garganta: era o quarto secreto! Caminhou lentamente em direção à luz, o medo do que encontraria deixava suas pernas pesadas, grudadas ao chão. Entrou no cômodo, palco das suas maiores alegrias, e, no centro dele, encontrou a maior das suas tristezas. Deitada no sofá que outrora lhe apresentara jazia Astrid, alva como a neve que caía do lado de fora. Afrodite a tomou nos braços, gelada. Ele a sacudiu, gritou seu nome, mas nenhuma resposta veio do corpo inerte. Ele urrava e chorava e a sacudia. Ela permanecia calada e fria.
x-x-x
Irving e Máscara da Morte o observavam da porta, incapazes de interrompê-lo em sua dor.
- Acorde querida, não durma! Ele falava entre soluços, embalando-a como a um bebê. Conte-me uma história, meu bem, como aquelas da nossa infância. Eu tenho saudades de voar para a Terra do Nunca, de salvar a princesinha, de matar um bom dragão. Acorde querida, ainda é cedo! Eu ainda quero ser o seu companheiro de aventuras.
- Dite, precisamos conversar. Máscara da Morte se aproximou devagar.
- Ela não responde, Carlo. Por que?
- Não faça isso. Você sabe porque.
- Ela foi embora? Chorava muito, soluçava. Por que não me esperou, meu bem? Partiu nessa que é a maior das aventuras e me deixou para trás? O que farei sem você? Quem irá me dar a mão? Você era o perfume das minhas rosas...
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Afrodite acordou abraçado ao corpo de Astrid. Ele a observava com ternura, lembrando-se da época em quevisitava-lhe todas as noites. Quantos planos fizera! Agora nenhum deles se realizaria. Podia ver a casa em que morariam, os filhos que teriam, tudo. Uma vida que jamais existirá. Observava-a imerso em sua beleza, mesmo agora ainda era deslumbrante. Seus olhos transbordavam novamente.
- Você morreu e ainda era só a primavera da sua vida! Ah, não devia ser assim tão linda! Como pôde, meu bem, morrer assim tão calma?
Inclinou-se sobre o rosto que conhecia tão bem como se fosse o seu próprio. No passado o hálito quente de Astrid o envolveria numa onda de suave aroma mas agora nenhum suspiro se desprendia dela. Beijou, então, os frios lábios uma última vez. Sentia o seu coração despadaçar dentro do peito.
Irving entrou no quarto com Máscara da Morte.
- Como isso aconteceu, mestre?
- Depois que você partiu ela ficou muitos dias sem comer. Chorava e ia sempre ao porto, tinha os olhos presos ao horizonte. Escreveu-lhe até que as suas mãos sangrassem. Com a gravidez ela ficou ainda mais debilitada, frágil como uma boneca de cristal. Há algumas semanas atrás desmaiou de fraqueza e ardeu em febre até o fim. Morreu chamando o seu nome.
- Gravidez? De que gravidez você está falando?
- Afrodite, Astrid gerou uma criança sua.
- O que? Onde ela está? Eu preciso vê-la!
- Venha comigo.
Mestre e discípulo saíram do quarto, deixando à Mascara da Morte a tarefa de velar o jovem corpo. O cavaleiro não olhou para trás, deixava ali a única alegria que tivera.Nos olhos levava o brilho dos cabelos de ébano, nos ouvidos levava a melodia da risada: o luto, entretanto, empalidecia tudo a sua volta. A jovem permaneceu para sempre naquele quarto, envolta pelas rosas que tanto amava (como sempre imaginara, o céu era um jardim).
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Um lampejo de esperança despontava no coração de Afrodite, um filho daria a ele a força necessária para continuar vivendo. Estava tão imerso nesse pensamento, como alguém que se agarra a uma úlitma chance de vida, que nem se deu conta de que haviam deixado a estalagem e estavam agora nos fundos da casa.
- Ali está a sua filha, cavaleiro.
Erguendo-se sobre a neve jazia uma enorme pedra cinzenta adornada com um buquê de flores já mortas, vestígio da última visita de Astrid àquele lugar. Ele caminhou em direção a ela e caiu de joelhos ao ler a inscrição na lápide. "Marja, fruto natimorto de um amor maior do que a vida"
- GUDINNA! (sueco – deusa), ele berrou a plenos pulmões. Por que, Gudinna? Eu que desde cedo a servi, por que? As lágrimas eram agora ainda mais amargas do que antes. Det gör ont! (sueco – isso é doloroso)
- Agora você conhece tudo, lágrima e esperança, o universo da dor e o da felicidade, disse Irving tocando-lhe os ombros.
- Marja, o choro sacudia-lhe o corpo, foi com Astrid rumo ao Desconhecido. Marja, pedacinho de mim que não conheci. Marja...
- Sim, tristeza trazida pelo mar.
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Um pesado silêncio cobriu a Casa de Peixes como um manto. A melancolia que outrora os cavaleiros sentiam em Afrodite havia dado lugar à ira. Os outros já não ousavam perguntar a razão daquela mudança, limitavam-se a lamentar o estado em que ele se encontrava. Apenas três amigos ainda o tentavam consolar.
- Beleza. Esse é o poder supremo. Não há nada mais poderoso e nobre do que a beleza.
- Como pode ser essa a chave para a sua busca?
- Eu vi, Shaka. Eu estava lá. A dor roubou-lhe a razão, despedaçou-lhe a alma mas foi incapaz de ofuscar-lhe a beleza. Era tão linda em seu leito de morte quanto fora em nosso leito nupcial.
- Deixe que a alma de Astrid descanse.
- E o que você sabe sobre isso, Mu?
- Sei que certa é a morte para os nascidos. Assim como certo é o nascimento para os mortos. No fim não há nada a lamentar.
- Ele tem razão, Dite. Você não pode se martirizar tanto, Deus tem um plano para todos nós.
- Jag tror inte pa Gud. (sueco – eu não confio em Deus)
N.A.: Agora falta pouco para o fim. Epílogo em breve!
