Capítulo 2

Na manhã seguinte, Harry acordou e viu-se sozinho em casa. Tomou um banho e assim que saiu do banheiro, encontrou Snape entrando na cozinha, carregado de compras.

– Precisa de ajuda?

– Bom-dia para você também, Potter. Não será necessário, eu posso guardar tudo.

– Então enquanto isso, posso fazer o café. Que tal ovos mexidos?

– Para sua sorte, eu acabo de comprar ovos. Há panelas no armário embaixo da pia.

Um pouco constrangidos, os dois se movimentavam na pequena cozinha, para preparar o café da manhã. Depois da refeição, Harry se ofereceu para lavar os pratos, e Snape se recolheu ao laboratório, lembrando ao jovem que ele deveria estudar.

Quando Harry terminou na cozinha, ele se dirigiu a seu quarto, disposto a pegar seus livros, mas interrompeu-se no meio do caminho. À luz do dia, ele notou que a casa tinha um ar sujo e abandonado. Ele se lembrou de que o local provavelmente ficava fechado o ano inteiro, por isso juntava tanta poeira. Também se lembrou que Snape pedira que ele ajudasse nas tarefas de casa, então achou natural procurar material de limpeza e começar a faxina.

Com baldes, escovões e sabão, Harry escolheu a cozinha para começar. A tarefa de limpar armários, lavar a louça e os copos guardados consumiu-lhe boa parte da manhã. Ele lavaria o chão mais tarde, mas achou que estava na hora de começar a preparar o almoço. Ainda bem que a dispensa estava cheia.

Quando o cozido de carne com batatas estava pronto, ele se perguntou se deveria chamar Snape. Logo desistiu da idéia: provavelmente o Mestre de Poções gritaria com ele por interromper-lhe o trabalho. Ele decidiu comer sozinho, terminar a faxina na cozinha e começar a fazer seus deveres.

Quando emergiu do laboratório no meio da tarde, Severus encontrou o garoto debruçado sobre os livros, na sala. Franziu o cenho:

– Não está com fome?

– Não, eu almocei. Não o chamei porque achei que não queria ser incomodado. Mas deixei comida no forno, se estiver com fome. Deveria tê-lo chamado?

– Se tivesse me chamado, eu não teria interrompido meu trabalho.

– Mas teria me expulsado do laboratório?

– Não teria corrido com você de lá, se é o que sugeriu. E seus deveres?

– Ainda há muito que fazer. Mas eu posso esquentar seu prato primeiro.

– Não interrompa seus estudos – Severus olhou em volta – Você saiu de casa hoje?

– Não. Ninguém pode saber que eu estou aqui.

– Potter, eu lhe disse que a casa é protegida. Pode andar pelo terreno.

– Bom, na verdade, eu me distraí aqui dentro mesmo.

– Você deve sair de casa. Precisa tomar sol.

Harry reprimiu um sorriso:

– Você também podia pegar um solzinho.

Snape olhou para ele e estreitou os olhos, azedo:

– Sol é para crianças e plantas. Eu tenho mais de 35 anos e não tenho o pé enfiado num vaso com terra.

Harry precisou piscar, mas percebeu que a resposta era um tipo de piada ácida, típica de Snape.

– Ainda digo que não faria mal.

Snape grunhiu e se dirigiu à cozinha, onde fez sua refeição antes de voltar novamente ao laboratório.

Mais uma vez sozinho, Harry deixou os livros de Transfiguração e, movido pela curiosidade, abriu a porta da cozinha. Ele se espantou ao ver um pequeno quintal, que precisava de um jardineiro com urgência. Havia árvores mais atrás, e um local onde ele poderia descansar, cheio de sombra. Interessado em ver mais, ele deu a volta na casa e percebeu que o jardim na parte da frente não estava em melhores condições. A casa definitivamente ficava muito abandonada, concluiu. Ele se decidiu a encampar a tarefa – mas só a partir do dia seguinte.

O pouco que restava do dia foi gasto com suas lições. A noite já descia sobre a cabana quando Snape voltou do laboratório. Harry indagou:

– Está com fome? Posso preparar uns sanduíches para nós com o que sobrou do cozido.

– Sanduíches de cozido? – A sobrancelha de Snape estava alta – De onde você tirou essa idéia, Potter?

– Meu nome é Harry. E saiba que minha tia faz isso sempre. Ela usa pão de hambúrguer e molho chili.

– Eu faço o jantar – decidiu Snape – Poupe-me das demonstrações da culinária Muggle.

– Você sabe cozinhar?

– Potter – O olhar de Snape se estreitou – O que eu faço para viver?

Harry sabia que estava sendo tratado como um estudante particularmente estúpido.

– Poções – respondeu timidamente.

– Em outras palavras, eu preparo ingredientes e os cozinho em grandes panelas ferventes, não concorda?

O garoto enrubesceu.

– Oh. É claro.

– Mas se quiser ajudar, posso lhe ensinar a preparar...

Harry nunca soube o que Snape ia ensinar a preparar, porque ele se interrompeu naquele exato momento, segurando com força o braço direito. Demorou alguns segundos até Harry entender o que acontecia: a Marca Negra. Ele sentiu a cicatriz em sua testa latejar.

– Bem, Potter, parece que você vai ter que consumir seus sanduíches de cozido, afinal de contas. – Harry não sabia o que dizer, mas Snape continuou – Pratique seus exercícios de Oclumência.

– Sim, senhor.

Ele também queria dizer algo como "Boa sorte" ou "Tome cuidado", mas Snape saiu rapidamente pela porta, e Harry logo ouviu o estalido indicando que ele Disaparatara. Engraçado, junto com Snape sua fome também se foi.

Harry não comeu os sanduíches com o resto do cozido. Era tarde da noite quando ele tomou uma xícara de chá. Depois foi para o seu quarto, mesmo sabendo que não conseguiria dormir. Não que ele tivesse planos de esperar acordado por Snape, mas sua cicatriz incomodava e não o deixaria dormir de qualquer jeito. Depois, ele tinha que admitir estar curioso. Com a Oclumência, ele não estava mais tão vulnerável em relação a Voldemort. Mas mesmo sua mente estando fechada, Harry podia sentir a ira do Lord das Trevas naquela noite.

Durante toda aquela noite, ele cochilou levemente, mas a cicatriz latejando lhe deu a certeza de que Voldemort usava a Cruciatus e estava particularmente irritado. Ele imaginou se Snape tinha recebido alguma punição.

Entre um cochilo e outro, Harry procurava perceber se Snape tinha voltado. O dia amanheceu e Harry simplesmente desistiu de dormir, arriscando-se a olhar no quarto principal da casa e confirmar que o dono ainda não chegara. A cicatriz de Harry agora tinha uma dor meio nula, mas permanente, como uma enxaqueca mal-curada. Ele fez outro chá, tentando não pensar naquilo que não saía de sua cabeça. Procurou se ocupar faxinando outro cômodo da casa – desta vez, o quartinho onde dormia.

O sol brilhava alto quando ele ouviu um barulho na sala. Harry parou com a limpeza e foi ver o que era.

Snape estava dobrado na cintura, cambaleando. Harry correu a ampará-lo:

– Severus...!

Ele começou a levá-lo para o quarto, dizendo:

– Está ferido! Eu vou chamar o Prof. Dumbledore!

– Não!... – A voz de Snape era entrecortada, e ele deveria estar com muita dor – Não, eu posso... posso cuidar disso!

Harry o ajudou a sentar-se na cama, e ele pediu:

– Preciso... daquelas poções...

Havia três frascos num móvel perto da cama, e Harry trouxe os três para ele. Um ele tomou imediatamente, o outro ele colocou na cama e o terceiro ele levou aos lábios, mas antes de conseguir tomar, ele tombou para o lado. Havia desmaiado. Harry se apavorou:

– Prof. Snape! Prof. Snape!

Sem saber o que fazer, ele pegou o vidro de poção e o forçou pela garganta de Snape abaixo. Ele resmungou e se mexeu, mas não voltou à consciência.

Harry estava quase sem poder respirar. O que ele iria fazer?

Ele correu para a lareira, jogou um pouco de pó e inclinou-se nas chamas, chamando:

– Prof. Dumbledore! Prof. Dumbledore!

A voz dele deveria ter transparecido todo o desespero, porque o diretor de Hogwarts imediatamente atendeu:

– Harry! O que aconteceu?

– É o Prof. Snape! Ele foi a uma reunião com Voldemort, e voltou muito mal! Ele desmaiou, e a roupa dele está toda molhada – eu acho que é sangue! Madame Pomfrey não pode vir para cá?

– Lamento, Harry, mas isso não é possível. Esse local onde você está é Imapeável. Não temos como chegar até vocês.

– Mas ele está muito mal! – A voz de Harry se elevou algumas oitavas – Ele pode até morrer! Está sangrando muito, pálido, e acabou de desmaiar!

– Harry, preste atenção. Você vai ter que cuidar dele.

– Cuidar dele? Mas como? Eu não sei o que fazer!

– Espere aí. Vou trazer Madame Pomfrey para lhe dizer o que você vai ter que fazer.

Não foi exatamente uma operação fácil, a de ser instruído pela lareira sobre como cuidar de um Snape ferido e inconsciente. Harry se sentia como um passageiro de avião que tinha de pousar sozinho a aeronave, sendo instruído pelo rádio. Ele ia anotando tudo que precisava fazer, as poções que teria que administrar, de quanto em quanto tempo. Mas ele arregalou os olhos quando a enfermeira começou a dizer que ele teria que fazer feitiços.

– Mas... eu não posso usar mágica! – lembrou o garoto – É contra as regras da escola. Posso ser expulso por causa disso!

Madame Pomfrey garantiu:

– É o modo mais rápido e eficiente de cuidar dos ferimentos dele. Para evitar encrencas, use a varinha dele. Precisa fechar as feridas primeiro, depois usar o outro feitiço que eu lhe disse para ver se ele tem alguma coisa quebrada, e o outro para emendar o osso. Procure mantê-lo aquecido para ele não entrar em choque. Você vai precisar preparar a Poção de Reposição de Sangue. Não é difícil, é matéria para o 5° ano.

– Ele vai ficar uma fera se eu mexer no laboratório dele. Ou se souber que chamei vocês.

– Depois eu falo com Severus – disse o Prof. Dumbledore – Chame novamente se precisar de ajuda, Harry.

Harry se despediu e foi correndo cuidar de seu professor. Ele estava apavorado com a responsabilidade, mas estava ainda mais apavorado que o homem morresse diante de seus olhos.

A primeira coisa que Harry fez foi localizar a varinha de Severus no meio de suas roupas encharcadas de sangue. A visão do sangue o fez se apressar ainda mais. Com dificuldade, ele tirou as roupas de Severus para ver os ferimentos. Ele tinha cortes generalizados nos braços e um machucado feio na testa. Mas o pior estava no abdômen: um corte muito profundo, como se ele tivesse levado uma facada. A primeira coisa que Harry fez foi usar a varinha para fechar todas aquelas feridas.

Depois, usando o feitiço que Madame Pomfrey indicara, verificou rachaduras em três costelas. Devia ser por isso que ele estava respirando de modo rápido. Harry emendou os ossos e observou o que tinha feito até o momento.

Severus estava pálido, mortalmente pálido, e sua pele parecia ter adquirido um aspecto parecido com cera. Estava fria ao toque. Harry observou o corpo de seu professor: tinha muitos ferimentos e marcas roxas, estava imundo por causa de sangue e terra. Ele obviamente rolara pelo chão. Alguns músculos espasmavam de vez em quando – efeitos colaterais da Maldição Cruciatus, ele sabia. Aparentemente, ele estava estável, e bem melhor.

Mas Harry reparou uma coisa que jamais tinha passado por sua cabeça antes: aquele corpo era bem-feito. Não era atlético, certamente, nem jovem, mas simplesmente bem-feito e bem-cuidado. As pernas eram bem torneadas e fortes, os braços firmes sem serem demasiadamente musculosos, o abdômen firme, o peito amplo que tinha poucos pêlos e dois mamilos escuros. Não havia depósitos de gordura visíveis, mas não era um corpo duro e cheio de ângulos. Em certos locais havia até algumas curvas convidativas. Com todas aquelas roupas que Severus costumava usar, poucos poderiam adivinhar que um corpo desses estava escondido embaixo delas.

Por outro lado, Harry ficou chocado em notar que estava reparando essas coisas em seu professor. Ele tinha finalmente admitido para si mesmo, durante o seu sexto ano, a atração por membros de seu próprio sexo, mas ainda não tinha agido em cima dessa atração, e sequer tinha tido arranjado coragem de contar a seus melhores amigos. Ron e Hermione iriam entender, Harry dizia para si mesmo. Por enquanto, ele se contentava em admirar alguns garotos bonitos e fantasiava ficar com algum deles.

Apesar das circunstâncias, Harry tinha de reconhecer que estava diante de um belo exemplar de um corpo masculino, um bem atraente. A maior surpresa era que ele estava achando Severus atraente, e não estava enojado por ter aqueles pensamentos a respeito de seu professor. Ele era um homem, um homem adulto – não era como seus colegas. Deveria saber tudo a respeito de sexo. Como seria Snape na cama?

Droga, aquilo não era hora de pensar nisso, censurou-se Harry, voltando ao trabalho. Cuidadosamente, usando uma esponja, uma toalha e uma bacia de água aquecida, Harry limpou o corpo de Snape e envolveu-o em cobertores, apesar de ser verão. Madame Pomfrey dissera que ele precisava estar aquecido. Harry deu-lhe uma poção contra dor e foi ao laboratório preparar a Poção de Reposição de Sangue. Ele se sentiu como se estivesse violando algum tipo de terreno sagrado. Enquanto fazia a poção, ele constantemente ia checar para ver se Snape tinha acordado.

Era metade da tarde quando Harry sentiu que Severus poderia estar dormindo, e não meramente desmaiado. Ele achou melhor deixar alguma comida pronta. Madame Pomfrey também dissera que alimentação era importante, e Harry já observara que Severus não era cuidadoso com isso, comendo em horários irregulares, isso quando comia. Por isso, ele fez outra sopa, dessa vez reforçada, uma de galinha.

Enquanto a Poção de Reposição de Sangue esfriava, Harry observou seu professor, ainda adormecido. Ainda estava com uma palidez marmórea, mas as linhas de seu rosto pareciam um pouco mais suavizadas. Naquele momento, jamais Harry o viu tão humano, tão distante daquele homem odioso que fazia sua raiva emergir cada vez que o tratava injustamente na escola. Ele sentiu naquele momento traços do homem que o libertara da cadeia há poucos dias – um homem que era duro, mas que o protegia e não o machucaria. Um adulto em quem confiar. Ou mais do que isso.

Com paciência e cuidado, Harry conseguiu fazer Severus tomar, mesmo desacordado, a poção que ele precisava. E já que estava enfiando líquidos goela abaixo de seu paciente, ele arriscou dar um copo da sopa de galinha. E ficou do lado dele, esperando alguma reação.

Harry pegou uma cadeira na sala e colocou ao lado da cama. Ficou lá a noite toda.

Pelo menos dessa vez sua cicatriz estava quieta.