Capítulo 3
Severus Snape era uma daquelas pessoas que antes mesmo de abrir os olhos já sabia onde estava. Portanto, quando despertou, tinha certeza de que não estava nas masmorras de Hogwarts, mas sim na sua cabana, aquela que usava durante o verão.
Outra coisa que ele sabia é que estava com dores. Mas não tão grandes quanto supunha. Isso o intrigou.
Olhando para o lado, ficou surpreso. Harry estava sentado perto de sua cabeceira, dormindo desajeitado com a cabeça inclinada para trás, pousada no encosto da cadeira. Com dificuldade e tomando cuidado para não acordar o rapaz, ele se levantou para ir ao banheiro, surpreendendo-se ao se ver apenas com a roupa de baixo. Atravessou o quarto cambaleando, com tudo girando a seu redor até chegar ao banheiro. Quando voltou, notou que Harry não acordara. Também notou que em sua cabeceira estavam diversos vidros de poções.
Por um instante, ele teve forças para se irritar com a perspectiva de o garoto ter revirado suas coisas e bagunçado seus estoques. Logo em seguida, um cansaço tão grande tomou conta de seu corpo que ele afundou no travesseiro, a irritação dissipando-se rapidamente. Ocorreu-lhe, enquanto sentia os músculos doloridos relaxando, que o garoto devia estar ali há muito tempo. De novo, ele ficou intrigado. Por que Harry Potter faria isso?
A última pessoa que cuidara dele quando estivera doente tinha sido Madame Pomfrey, e isso no seu primeiro ano. Ele ficara admirado: fora sua mãe, ninguém jamais fizera isso por ele antes. Que Potter – corrigiu-se, Harry – estivesse fazendo isso agora era uma surpresa pela qual ele jamais esperaria.
Severus fechou os olhos, exausto. No último ano, seu conceito a respeito de Harry Potter mudara consideravelmente. As aulas de Oclumência tinham aberto uma porta que ele jamais suspeitara: a infância do Menino de Ouro não tinha sido nem rosa nem dourada. A convivência do sexto ano de Harry em Hogwarts confirmara aquela visão. Era surpreendente que o filho de James Potter tivesse uma vida infeliz. Severus descobrira que Potter não tinha mágoas a esse respeito, e sim, marcas.
Essa era uma circunstância que Severus podia entender bem, tendo vivido literalmente a mesma coisa. Além do mais, a morte do padrinho deixara Pot – Harry, corrigiu-se – mais circunspecto, menos sorridente. Era evidente o impacto daquela perda.
Pena, pensou Severus, porque o rosto de Harry era capaz de iluminar uma sala se estivesse sorrindo. O garoto conseguia irradiar exuberância nos gestos mais simples, com uma sinceridade e uma inocência infecciosa. Ele podia ser cativante, mas ainda assim era algo discreto e charmoso. Não que ele fosse atraente no sentido físico, mas havia um certo charme que Severus começara a perceber aos poucos no último ano.
Aos poucos, ele já não era tão irritante.
Aos poucos, ele começou a ser atraente.
Aos poucos, ele podia ser Harry.
Infelizmente, tudo isso era proibido para Severus. Se Harry descobrisse o que Severus era, o que ele carregava, o menino provavelmente voltaria a tratá-lo como seu professor odioso. Mas Severus não podia esperar ser tratado diferente. Todos o usavam. Era assim que as coisas eram. Sua vida era isso.
Uma onda de desconforto perpassou-lhe o corpo, e ele afundou mais ainda rumo à inconsciência, gemendo levemente. A imagem de Harry, sorridente, embaralhou-se em sua mente numa névoa cinza. Severus afundou mais e mais, rumo à perda total de sentidos.
Uma mão distante tocou-lhe a testa em brasa.
– Está tudo bem, Severus.
O gesto não o devolveu à consciência, mas era um toque gentil e terno, confortador, que o fez relaxar completamente e abraçar a escuridão com alívio.
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Foi o mesmo toque gentil que o acordou. Olhos verdes brilhavam para ele tanto quanto o sorriso que o saudou.
– Boa-tarde, Severus. Como se sente?
Como se tivesse engolido um fardo de algodão e caído de uma vassoura no campo de Quidditch.
Severus viu o frasco de poção na mão de Harry e sentou-se na cama, com um careta por causa dos ossos doídos.
– O que é isso?
– Poção de Reposição Sangüínea. – Ele parecia orgulhoso. – Já é minha segunda remessa.
– Eu não tenho essa poção em estoque. Como a conseguiu?
– Eu fiz.
– Impossível.
– Não, eu fiz.
– Eu digo que é impossível. Primeiro porque você não saberia fazer uma poção nem para salvar sua vida. Segundo porque isso implicaria que você usou meu laboratório, e nem você seria imprudente o suficiente para usar o meu laboratório sem minha permissão.
Harry não se intimidou:
– Tudo bem, pode me colocar em detenção mais tarde, se quiser. Está com fome?
– Não.
– Eu fiz uma sopa e podia tentar tomar um pouco. Está há muito tempo sem comer.
– Eu disse que não estou com fome.
– Olhe, eu vi como ficou. Passou bem mal. Acreditei que não sobrevivesse.
– E aí resolveu bancar a enfermeira? O que o fez pensar que podia cuidar de uma pessoa doente?
– Eu consultei Madame Pomfrey. Ela me disse o que fazer. Agora pare de ser rabugento e tome sua poção.
– Tomar uma poção que você fez? Isso pode me envenenar!
Harry perdeu a paciência:
– Pois para seu governo, a poção funciona! Sua febre abaixou, e os ferimentos não infeccionaram.
– Febres? Ferimentos?
– Você teve febre muito alta, não sei como não delirou. E havia ferimentos bem profundos em todo seu corpo. Perdeu muito sangue, então tive que fazer a poção. Está muito fraco, e precisa tomar isso. Vamos lá.
Severus o encarou, tentando esconder sua surpresa. Harry tinha se esforçado demais para mantê-lo vivo. Na verdade, ele ainda se sentia fraco demais para discutir.
– Então me dê logo essa maldita poção e a sopa.
Harry imediatamente lhe entregou dois vidros:
– Uma é para o sangue, a outra para febre. Espere que vou esquentar a sopa.
O rapaz deixou Severus, que tomou suas poções com um milhão de pensamentos sobrevoando sua cabeça ainda pesada de febre. Um arrepio de frio percorreu-lhe o corpo e ele fechou os olhos, suspirando alto.
A voz de Harry o devolveu à realidade.
– Severus, tudo bem?
– Sim, eu estou ótimo – mentiu, ajeitando-se na cama e recebendo uma bandeja com o prato de sopa no colo – Eu não tenho uma bandeja.
– Eu transfigurei uma chaleira. Coma logo antes que esfrie.
– Você está mesmo decidido a bancar a enfermeira, não está?
– Você precisa de cuidados e eu sou o único por perto. – Houve uma pausa. – Eu senti que Vold – Você-Sabe-Quem estava muito irritado.
Severus demorou a responder.
– E sua Oclumência?
– Estava sob controle, mas era raiva demais. Por que ele tinha tanta raiva?
– Bem, ele queria saber a seu respeito.
– Eu? Como assim?
– Ele soube que você tinha sido preso e não estava mais na casa de seus tios. Pensa que está desprotegido e vulnerável a um ataque. Quer localizá-lo de qualquer maneira.
– E descontou essa raiva toda em você?
– Minha saída de Hogwarts foi considerada... inoportuna. O Lord das Trevas ficou deveras desgostoso.
– Para dizer o mínimo – Harry se sentiu culpado – Desculpe.
– Por quê?
– Pelo que passou por minha causa. É culpa minha.
– Bobagem. Você não aplicou nenhuma maldição. Além do mais, fui punido por não ter informações valiosas e úteis. Isso sempre acontece nas férias, quando fico longe de Hogwarts.
– Não podia dar nem uma meia informação?
– Isso não só seria arriscado como não aplacaria a ira do Lord, se é o que está pensando – ele colocou a bandeja de lado – Já comi o bastante.
Harry olhou o prato quase cheio e protestou:
– Não comeu quase nada! Precisa se alimentar.
Severo o encarou com um olhar aborrecido:
– Você tem feito seus deveres?
A mudança de assunto pegou o rapaz de surpresa:
– É... Quer dizer... Um pouco...
Severus suspirou, exausto.
– Nem preciso usar Legilimência para ver que não se dedicou aos estudos.
– Ora, eu estava cuidando de você.
– Agradeço seus esforços, mas não eram necessários. Agora vá estudar.
Harry recolheu o prato e continuou protestando:
– Devia descansar mais.
Ele mal conseguia manter os olhos abertos, os músculos todos relaxando depois daquela sopa quentinha.
– Não se preocupe comigo.
Fraco, deitou a cabeça, com um suspiro. Ainda tinha um fiapo de consciência quando sentiu ser coberto, suavemente.
– Descanse bem.
