Capítulo 5

Só quando Harry terminou todos os seus deveres de verão – menos Poções – é que Severus começou as aulas de Legilimência. Eles escolheram a sala de estar para as aulas, pois era o cômodo mais espaçoso da casa.

– Seu objetivo é penetrar nas camadas da mente alheia de modo a identificar uma informação escondida ou falsidade. Contato visual é imprescindível para a correta aplicação dessa técnica.

– Entendi.

– Muito bem, vamos fazer uma primeira tentativa. Eu não vou resistir. Procure identificar as camadas da mente. Pronto? Pode começar.

Legilimens!

Harry não tinha muita certeza de ter conseguido até ver um pensamento que não era seu: uma receita de poção usada no dia anterior. Ele viu a receita inteira, toda organizada e o livro onde ela se encontrava, e o laboratório pequeno onde ele estava trabalhando...

E de repente, ele sentiu os seus joelhos batendo em alguma coisa, as mãos também, e ele se viu ajoelhado na sala da cabana, em frente a Snape.

Pelo menos a cicatriz não estava doendo.

– Oh... – ofegou, tonto – Eu pensei que essa parte já tinha passado...

– Nada mau para uma primeira tentativa, Harry. Você conseguiu penetrar na camada mais superficial de minha mente.

– Eu vi o laboratório no porão – ele se ergueu – E a poção.

– Muito bem. Agora tente novamente. Procure identificar as diferentes camadas da mente.

Harry tentou novamente, animado pelo fato de essas lições não serem tão doloridas quanto Oclumência. Ele viu a cena do café da manhã, e viu-se com os olhos de Severus, cortando suas panquecas. Depois, sentiu uma sensação líquida no ambiente, e viu-se na aula de Poções, com Hermione e Ron, levando bronca por não ter seguido as instruções corretamente. Nova sensação líquida, e dessa vez ele estava patrulhando os corredores de Hogwarts à noite, movendo-se em silêncio pela escuridão, movimentando as capas, procurando alunos fora de seus dormitórios...

E o chão voltou a bater contra os seus joelhos. A voz de Severus o trouxe à realidade:

– Você está indo muito fundo na minha mente, Harry. Está observando tudo da minha perspectiva. Assim é muito desgastante. Procure ver a cena de fora, como um observador. Assim será mais fácil acessar as diversas camadas da minha mente.

Harry se sentiu meio envergonhado, mas assentiu. Severus sentiu uma pontada de dor de cabeça, mas preparou-se para não resistir à nova invasão.

Dessa vez, Harry localizou Severus na sala de professores, um exemplar do Profeta Diário na mão e uma xícara de chá em frente a ele. Harry se sentia mais como se estivesse num Pensieve, mas com imagens mais vívidas – cheiros, cores, texturas, tudo mais real. Ele desejou sair daquele pensamento e a sensação líquida o invadiu. Então ele viu a cena se dissolver e desta vez viu uma sala grande, mal-iluminada, figuras de capuz e vestes negras dispostas em semicírculo, todas de frente a uma outra figura, sentada numa cadeira alta.

Voldemort.

O susto de Harry foi tão grande que os contornos da cena estremeceram, e ele achou que fosse perder o controle, mas persistiu e viu Voldemort se erguer da cadeira.

– Harry Potter saiu da casa de seus tios e foi preso pela polícia Muggle. Mas alguém o soltou, provavelmente enviado por Dumbledore. Agora o garoto está sem a proteção da sua mãe de sangue ruim e será presa fácil se o pegarmos – ele se virou – Meu espião, venha até aqui.

Harry viu uma das figuras deixar o círculo e se ajoelhar diante de seu Lord.

– Você é meu espião junto a Dumbledore. Como não me avisou disso?

A voz de Severus soou firme, mas grave:

– Eu não estou em Hogwarts, milord. É época de férias.

– Ah, então achou que poderia tirar férias, Severus?

– Não, milord, mas a escola está...

– Isso não me interessa – interrompeu Voldemort – Você falhou. Eu poderia ter agarrado o menino quando ele estava preso, longe de Dumbledore e seus protetores.

– Lamento tê-lo desapontado, milord.

– Pode se redimir dando-me a localização do garoto. Ele não está com os tios.

– Sim, milord.

– Obviamente, não pense que isso o exime de sua punição. Reducto!

Severus curvou-se quando um corte profundo apareceu no seu ombro, sangue empapando-lhe as vestes, mas ele não emitiu um som além de um gemido curto e baixo. Não satisfeito, Voldemort voltou à carga:

Crucio!

Agora sim, Severus gritou. E se contorceu. Desgostoso, Harry procurou sair dali, mas novamente o chão veio de encontro aos seus joelhos. Ele estava de quatro no chão da sala, ofegando. Ergueu os olhos e viu Severus o encarando, o rosto cheio de preocupação.

– Queria poder evitar que isso acontecesse de novo.

E Harry não sabia se estava falando sobre si mesmo ou sobre o que acabara de ver.

Severus ergueu uma sobrancelha e deu a lição por encerrada.

– Vou lhe pedir que faça o jantar. Preciso preparar algumas poções imediatamente. Pode me chamar se quiser companhia para o jantar.

– Está bem – Harry suspirou, pois se sentia estranhamente cansado.

– Você foi muito bem, Harry.

Uma estranha onda de orgulho percorreu o corpo do rapaz. Tinha sido apenas sua primeira aula e ele tinha ganhado um elogio!... De Snape, ainda por cima!

Aliás, Harry notou que estava estranhamente nervoso. Ficou preocupado que a torta de frango não crescesse o suficiente, ou o que Severus diria sobre os brócolis gratinados. Estava agitado, e sentiu-se muito estranho, sem saber se deveria consultar Severus sobre isso. Quem sabe ele estivesse passando por algum grande influxo hormonal da adolescência?

Fosse o que fosse, piorou quando ele foi chamar Severus. Seu corpo tremia quando bateu à porta do laboratório.

– Entre!

Timidamente, Harry obedeceu:

– Uh, o jantar está pronto.

– Certo, eu vou apenas colocar as poções em seus frascos.

– Posso ajudar?

– Não será necessário, obrigado.

Os dois subiram juntos, e ao chegar à cozinha, Severus elogiou:

– O cheiro está delicioso.

De novo, a onda de orgulho varreu o rapaz. Harry apressou-se a retirar a caçarola do forno, e os dois puseram-se a comer em silêncio.

– Está muito bom – comentou Severus – Você cozinha surpreendentemente bem para quem só usa o jeito Muggle, como você diz.

– Obrigado. Er, eu posso fazer uma pergunta?

– Certamente.

– Legilimência vai me dar acesso a seus pensamentos, não é?

– Pensei que isso estivesse claro.

– Sim, mas... é uma invasão. Ainda mais se você tentar resistir, aí é violência!

– Agora você entende porque esse campo de conhecimento geralmente é deixado de lado.

– Sei.

– Mas não se engane: o Lord das Trevas é muito bom nisso e não hesitará em usar contra você. Por isso as aulas de Oclumência.

– Mas eu... – Harry parecia constrangido – eu acho que isso é violar segredos...

– Não pense por um instante que o Lord das Trevas terá esses pruridos.

– São coisas íntimas. E você está me deixando ter acesso a todas elas... Confia tanto em mim assim?

Severus quase mordeu o lábio. Nada poderia estar mais longe da verdade. Confiança era algo que ele absolutamente não tinha em Harry Potter. Ele sabia o uso que suas memórias podiam ter nas mãos de um adolescente. Harry o odiava, ele sabia. Então era óbvio presumir que Harry iria usar suas memórias como fonte de muitas horas de riso com os amigos. Severus esperava por isso, e mais: sabia que não podia fazer nada quanto a isso, só agüentar as conseqüências. Mas o estrago não seria tão grande quanto podia ser. Ele tinha escondido, nas masmorras em Hogwarts, um Pensieve inteiro com as piores memórias, aquelas que ele gostaria de esquecer se pudesse.

Se apenas ele tivesse sorte para esquecer.

Mas Harry agora o observava atentamente, os olhos verdes brilhando, o rosto inteiro em expectativa. Severus procurou se mostrar o mais neutro possível.

– Harry, se você conseguir dominar a arte da Legilimência, você terá acesso a várias particularidades sobre minha vida, e certamente algumas informações que eu não gostaria de ver divulgadas. Deixarei que sua consciência decida como pretende utilizar esse conhecimento.

A resposta certamente não era o que Harry esperava. O menino empalideceu, arregalando os olhos.

– Eu... eu... eu nunca contei para ninguém o que vi naquele Pensieve, naquela vez.

– Eu sei – Para Severus, o único motivo pelo qual Harry tinha mantido sigilo a respeito das humilhações sofridas nas mãos de James e sua gangue tinha sido a necessidade de preservar a imagem de seu pai, não por consideração a seu professor de Poções.

Com uma dor no coração maior do que gostaria de admitir, Severus optou por inclinar a cabeça:

– Agradecido – cruzou os talheres, tendo perdido totalmente a fome – Aconselho-o a recolher-se cedo. Legilimência pode ser muito exigente, e não é incomum algum descontrole emocional. Gostaria de uma poção para isso?

– Não, obrigado.

Severus ergueu uma sobrancelha.

– Muito bem, então. Deixe a louça comigo. Já que você fez o jantar, nada mais justo que eu lave a louça.

Cansado, Harry não discutiu e resolver seguir a recomendação de dormir cedo, dando-se conta de que realmente estava muito mais emocional do que de costume. Custou-lhe pegar no sono, subitamente saudoso de Hogwarts e de seus amigos.

Uma sensação líquida fez seu coração se apertar. Ele sentiu medo, muito medo, e de repente um clarão de luz verde explodiu diante dele, um suor frio brotou-lhe na testa e uma voz de mulher gritou seu nome alto, gritando a plenos pulmões, do fundo da alma, como soubesse que aquela seria a última vez que falaria seu nome.

Lily Potter.

– Harry!

Um novo clarão de luz o levou a um lugar que de repente ficou escuro, muito pouco iluminado. Um cemitério. O suor frio só aumentou quando ele reconheceu onde estava: o cemitério onde Voldemort voltara a ter um corpo sólido. Harry olhou para o lado e viu Cedric Diggory, a pele branca como se todo o sangue tivesse sido drenado, os olhos arregalados, as mãos cadavéricas se estendendo para Harry em súplica:

– Me ajude...

Harry recuou, apavorado, tropeçou e quase foi ao chão. Cedric deu um passo em sua direção cada vez parecendo mais fantasmagórico:

– Socorro, Harry... Não deixe que ele me mate...

Harry se virou e pôs-se a correr, correr, correr, até que tropeçou e caiu...

E de novo estava escuro, numa espécie de anfiteatro circular não muito grande, um onde havia um grande arco do qual pendia uma cortina velha, com a barra em farrapos, que balouçava suavemente a uma brisa sobrenatural. Uma figura saiu de trás da cortina, e Harry sentiu o suor escorrer-lhe pelas costas ao ver quem tinha vindo de detrás do véu.

– Você não me salvou, Harry – acusou Sirius Black, em voz grave – Você deixou aquela mulher louca me matar, você me deixou morrer, Harry.

– Não!... Não!... Sirius, não!

Ele continuou gritando, mesmo quando a cena diante de si mudou radicalmente, e ele se viu girando, caindo, o ambiente a seu redor voltando-se contra si, e ele não conseguiu segurar suas emoções, desabando em choro copioso, lágrimas abundantes, soluços profundos, o corpo todo trêmulo.

– Harry! Harry!

Ele reconheceu a voz, sabia que Severus o chamava, mas tudo estava tão confuso e ele só conseguia se enroscar, curvar-se sobre si mesmo, e então ele notou que estava no chão do quarto, num cantinho, as cobertas todas espalhadas à sua volta, quase em posição fetal.

Severus continuou a chamá-lo, mas Harry não conseguia parar de chorar, mesmo já sabendo que tudo tinha sido só um pesadelo, muito, muito vívido, mas que já terminara. Foi então que aconteceu uma coisa que Harry jamais previra: dois braços o envolveram, e ele sentiu como se estivesse dentro de um corpo sólido, firme e aconchegante. Era uma sensação nova, extática.

Nunca ninguém o tinha abraçado quando ele tivera um pesadelo, nunca ninguém o fizera se sentir tão seguro e confortado em toda a sua vida. Bom, ele se lembrou de um abraço de Mrs. Weasley, mas não, dessa vez parecia ser diferente. Ele se sentia seguro, aceito. Demorou para Harry conseguir parar de chorar, sempre agarrado a Severus, sequioso do contato, sedento pelo toque.

Sem notar, aos poucos, foi parando de chorar e deixou-se ser levado para a cama, onde (ainda agarrado a Severus) ainda soluçou um pouco, até conseguir se compor o suficiente para tentar dizer, meio choramingando:

– Desculpe... Eu...

Foi interrompido:

– Abra a boca.

Sem hesitar, Harry obedeceu e sentiu a poção escorregar garganta abaixo, de gosto amargo e consistência grossa. Ele tentou de novo, enxugando as lágrimas no pijama:

– Eu... Não queria... Pesadelo...

– Deite-se – Severus trazia um tom menos áspero na voz – A poção não vai demorar a agir.

Harry obedeceu, mas protestou quando Severus ameaçou se levantar:

– Não! – ele enrubesceu quando seu professor o olhou, intrigado – Por favor... não vá.

Os olhos de Severus praticamente emitiram um brilho totalmente diferente quando ele encarou Harry e garantiu:

– Não se preocupe. Não vou a lugar nenhum.

– Promete? – ele não pôde evitar se sentir como se tivesse cinco anos.

– É uma promessa.

Harry virou-se de lado, colocou a cabeça no travesseiro e procurou não se preocupar. O quarto voltou a ter silêncio, quebrado ocasionalmente por um soluço esparso varrendo o corpo do garoto.

Severus se viu olhando para a figura na cama, um sentimento parecido com identidade a invadir-lhe o corpo. Sim, ele sabia o que eram pesadelos desse tipo. Também sabia exatamente como era ter sua infância arrancada de si do modo mais cruel possível, sem ter ninguém que o consolasse, que o guiasse. Severus sabia exatamente o que Harry Potter estava passando, e sentia que seu coração sangrava um pouco pelo menino.

Examinou seus sentimentos e teve que admitir que essa poderia ser a origem dos sentimentos "impróprios" que tinha em relação ao rapaz. Ainda assim, não podia quebrar a confiança de Harry dessa maneira. O garoto estava desesperado por uma figura adulta, por orientação e atenção, e Severus não podia trair essa confiança com seus sentimentos inadequados. Inadequados e fantasiosos, completou. Porque Harry só se aproximaria dele por pura carência, pela necessidade de afeição, a sede de carinho que ele tão flagrantemente exibira num simples episódio emocional. Isso seria se aproveitar do rapaz, e Severus sabia que ceder a essa tentação era um convite ao desastre.

Não, Severus sabia hoje que todos estiveram certos a seu respeito: seu pai, James Potter, Sirius Black, o Lord das Trevas... Ele não valia grande coisa e ninguém o iria querer por perto, porque ele não merecia. Sujo, estragado. Como ele ousava pensar em manchar e corromper um garoto que parecia ser inocente, mesmo que já trouxesse sua própria escuridão?

A respiração de Harry tornou-se mais profunda, e ele teve certeza de que o jovem tinha conseguido adormecer. A poção garantiria que ele estaria livre de pesadelos. Não havia necessidade alguma de velar o sono de Harry.

Severus só retornou a seu quarto quando o sol já estava alto.