Recordações

Nota da autora: Tanto neste quanto no capítulo anterior, há algumas passagens de violência contra os homossexuais. Não se trata de violência gratuita, trata-se de um alerta para repensarmos a forma como os mesmos são tratados pela sociedade preconceituosa.

Recordações - Fase: Cartas - Capítulo II – A outra carta lacrada

No capítulo anterior, Kamus achou a caixa de recordações do amigo e começou a ler as cartas lacradas endereçadas a si e descobriu que o grego gostava dele desde a adolescência. Milo ficou triste ao se lembrar do Aquariano e Ian, o francês que o Escorpiniano conheceu na danceteria, contou o motivo de estar na Grécia. Kamus tentava entender porquê o amigo não havia mencionado o conteúdo das cartas em seu retorno.

... Meditou um pouco. Nada. Nenhuma palavra sobre isso havia sido, ao menos, insinuada.

O Aquariano não sabia o quê, mas alguma coisa tinha acontecido durante sua ausência na Sibéria que impelira o grego a mudar a idéia de se declarar.

Kamus era uma pessoa determinada. Ainda não tinha estas respostas, mas iria conseguir.

-oOo-

Capítulo II – A outra carta lacrada

Na danceteria, Milo e o francês ainda conversam, quando foram interrompidos por uma garota.

- Oi, Ian.

- Thaise ! Você está linda, meu amor. – levantou-se e deu dois beijos no rosto de uma ruivinha simpática.

A garota não era tão bonita de corpo, mas o rosto parecia o de uma boneca. A roupa que vestia também ajudava no conjunto.

- Oi. – cumprimentou o grego de longe.

- Oi.

- Você viu a Louise por aí ? Ela falou que vinha direto do trabalho e que era para eu encontrar com ela aqui dentro, mas eu ainda não a vi e nem consegui falar no celular dela.

- Non, ainda não vi, mas se eu encontrar com ela digo que você a está procurando.

- Ok.– A garota beijou-o novamente e foi embora.

Depois que a garota saiu, Ian continuou a falar.

- O lado bom de ser viado é poder fingir que somos o que queremos ser. É como se brincássemos de atores o tempo todos e vivêssemos constantemente fora da realidade, sonhando um mundo ideal.

- Fingir não me parece tão bom assim. – comentou o grego.

- E o que podemos fazer vivendo aqui, Mon Ange ? – o outro retrucou com sotaque acentuado.

- Não entendi. Aqui na Grécia as pessoas não aceitam os viados numa boa ?

- Parece que você non é viado há muito tempo, não é ?

O Escorpiniano permaneceu calado. O outro continuou

- Dois amigos meus já foram espancados por caça-bichas. Até hoje, na Grécia, o governo non reconhece a união de gays, mesmo para casos de herança. E quanto aos direitos ? Não temos nenhum. Somos a..., como vocês dizem ? A escória da sociedade. (1) (2)

- Mas na Grécia antiga não era assim que acontecia. Era permitido ser homossexual. (3)

- Já ouvi esta história, mas soube que apenas era permitido em certas circunstâncias, e somente sendo ativo. Não se aceitava que um homem quisesse tomar o lugar de uma mulher. A passividade era imperdoável e essa pessoa era banida da sociedade. (3)

- Mas isso era antigamente – justificou Milo.

- Em que mundo você vive, Mon Ange ? Hoje em dia, não somente aqui na Grécia, mas em vários outros lugares, qualquer um que dê o rabo é escória. (2)

- As coisas não são bem assim como você está falando. – o grego replicou.

- Non ? As pessoas sabem de você e do seu amigo ?

- Claro que não. – respondeu prontamente.

- E por que vocês não contam ?

O Escorpiniano ficou com as palavras presas na garganta, sem conseguir responder.

- Tudo bem, Mon Ange, vou mudar a pergunta. Você conhece algum gay declarado, alguém que as pessoas realmente sabem que ele ou ela é viado ?

O Escorpiniano lembrou-se de Afrodite.

- Conheço. – falou com cautela.

- E como as pessoas o tratam ? – perguntou desafiador.

O Pisciano sofria muito. Ian tinha razão, as pessoas NÃO aceitavam os gays. Uma tristeza profunda se abateu sobre Milo.

- Ele sofre muito. – disse com pesar.

- Mon Ange, ser gay non é fácil – falou colocando sua mão sobre a mão do moreno – por isso a gente vem aqui, em um lugar como esse, para esquecer o que passamos porta afora.

- Me desculpe, Ian – falou retirando a mão de baixo da mão do outro – mas me parece mais que vocês vêm aqui para FINGIR que são felizes. – disse discordando desta atitude.

- Oui, Mon Ange. Você está certo. Muitos vêm para cá pela dor, procurando pessoas que os compreendam para esquecer o que passaram no mundo que chamamos de realidade. Veja a Thaise, por exemplo, conheceu um cara e ficou grávida. Obrigaram a menina a se casar. Ela gostava do cara, mas ele só estava a fim de curtir. Um dia chegou bêbado em casa, bateu nela e a violentou. Ela non emitiu um som, para não acordar a filha de quatro anos, que dormia no quarto ao lado. Depois disso nunca mais fizeram sexo, mas infelizmente ela engravidou de um petit garçon (menino). Eles se separaram. Quando o menino tinha dois anos começou a perguntar do pai e ela achou melhor voltar por causa das crianças. Depois de seis meses, não agüentou mais. Fez uma mala para os filhos e os deixou na casa da mãe. Fez uma mala para si e foi morar com uma mulher que tinha conhecido, a Louise. Já tem quatro anos que as duas dividem a cama.

O grego estava chocado com a revelação. Olhou a menina ao longe, junto da outra garota que já tinha chegado. Pareciam tão felizes.

- Aquela loira ali, de mãos dadas com a morena gordinha, é a Grace. O pai morreu quando tinha onze anos. A mãe se casou novamente para dar um pai para a garota, mas o padrasto se interessou por ela e se aproveitou da menina durante quase um mês. A pobrezinha estava morrendo de medo e de vergonha, mas contou para a mãe. O padrasto convenceu a mãe da garota que a menina o havia seduzido. Seduzido ? Ela era apenas uma enfant (criança) ! Mesmo assim, a mãe a colocou para fora de casa por ter transado com o marido. Hoje ela mora com uma mulher que conheceu.

Milo observou a loira ao longe. Era uma mulher muito bonita e não aparentava esconder tanto sofrimento.

- O Muiss, o outro barman, - o francês continuou - sempre gostou de homem, mas os pais não aceitavam e o obrigaram a se casar com uma moça. Um dia o filho se machucou na escola e a mulher saiu do trabalho para buscar a criança. Quando chegou em casa mais cedo, encontrou o marido com um outro homem na cama. Colocou-o para fora e fez com que o garoto o odiasse. Hoje ele tem treze anos, mas desde aquela época não olha na cara do pai. Eles eram super amigos e o Muiss sente muita falta do menino, mas o que dá para fazer, se o destino o obrigou a uma situação destas ?

O grego não conseguia pronunciar uma palavra. Parecia que estava vendo um filme de terror e não que estava em uma danceteria.

- Veja o Rômulo e o Remo. Os dois gêmeos eram pobres a mãe os abandonou na estação de ônibus. Umas prostitutas viram que os garotos estavam dormindo há dias na rua e tomaram conta deles. Eles acabaram virando michês. Trabalham para o Myers, aqui na região.

Milo continuava estarrecido.

- É mon ami, não é fácil ser bicha. Além da história de cada um, ainda temos que suportar o preconceito das pessoas e continuarmos calados, sem dizer nada a ninguém. Ninguém se importa com a sua dor. Se você é gay, tem mais é que sofrer para se purificar dos pecados.

O Escorpiniano estava com o semblante completamente abatido.

- Ai, ai, pardon, falei demais. Mas diga Mon Ange, há quanto tempo você é viado ? Qual é a sua história ?

Ficou um tempo calado pensando no que podia falar. Não dava para revelar que era um cavaleiro de ouro.

- Bem, gosto da mesma pessoa desde a adolescência. Há pouco mais de cinco meses me declarei e tivemos nossa primeira vez, mas agora Ele não quer mais.

- Depois de você gostar dele tanto tempo, ele simplesmente te deixou ?

- Ele não sabia que eu gostava Dele tanto tempo. Ele acha que eu me interesso por Ele há pouco mais de um ano.

- E por quê ele te deixou ?

- Eu falei para Ele que o amava. Ele conversou comigo depois e disse que para mim poderia até ser outra coisa, mas para Ele era apenas... – Milo sentiu a garganta apertando antes de completar - ...sexo.

- E quando foi isso ?

- Hoje. – falou com a voz sumida.

O Escorpiniano não conseguiu segurar mais. Uma lágrima correu por sua face e em seguida vieram outras. Estava destruído emocionalmente. Colocou a mão no rosto. Era uma vergonha chorar na frente dos outros, mas não estava conseguindo se controlar.

Sentiu-se ser abraçado.

- Oh, criança, não fica assim. – Ian falou com forte sotaque, enquanto acariciava seus cabelos e o aconchegava em seu peito.

O grego estava tão carente que abraçou o desconhecido, buscando algum conforto. Repensou seu plano de vingança e começou a achar que não valia a pena. Se Kamus não se interessava mais por ele, talvez até brigasse pela inconseqüência do amigo em transar com um desconhecido, mas por que teria ciúme de alguém que não o interessava mais ?

Sentiu-se um nada, um verme, um zero à esquerda.

Não tinha mais o que fazer. Nada mais tinha importância. Era melhor aceitar a dura realidade. Tinha acabado. E para sempre.

O francês tentou afastar os pensamentos que lhe povoavam a mente. Pensar que seu lindo Escorpiãozinho pudesse estar nos braços de outro, corroia-o de dor e de ciúmes. Nunca fora uma pessoa ciumenta, mas o grego tinha realmente virado sua vida de cabeça para baixo, fazendo com que sentimentos nunca manifestados, viessem à tona. Milo sabia o quanto Kamus odiava vê-lo cheio de atenção para outro homem. Às vezes, parecia que fazia isso de propósito, só para aborrecê-lo.

O grego já era mais expansivo e tinha ciúmes do Aquariano até com mulheres, mas disfarçava porque não podiam revelar que estavam juntos. Kamus sabia que o grego se mordia por dentro e às vezes até ficava sem falar com o francês por causa disso.

O guardião do décimo primeiro templo sorriu com a infantilidade do outro e depois riu pensando na sua própria.

Voltou a ficar sério quando outros pensamentos vieram à sua mente. Ficou refletindo alguns instantes. Ainda tinha algumas dúvidas a esclarecer.

Seus olhos se desviaram novamente para a caixa. Pegou a próxima carta entre as mãos. Era uma outra carta que enviara aos amigos.

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Recordações – Cartas: A segunda carta oficial

"Sibéria, xx de Fevereiro de xxxx

Amigos,

Saibam que a minha estadia aqui está sendo uma excelente oportunidade de crescimento e estou amadurecendo bastante ao enfrentar as dificuldades que estão surgindo.

Infelizmente não foi possível receber as cartas que me enviaram, mas a partir do início do mês de Maio, estarei sob minha própria supervisão.

Tenho maturidade suficiente para saber as minhas obrigações, por isso lerei as cartas aos poucos.

Peço que reenviem as cartas na segunda quinzena de Maio e que tenham um pouco de paciência para a resposta.

Gostaria de parabenizar todos os aniversariantes, em especial Aioria e Milo. Continuem firmes.

Ainda não sei a minha data de retorno, mas creio que devo voltar bem antes de dois anos, então estarei presente ao menos para o próximo aniversário do Escorpiniano.

Kamus"

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Era verdade. Kamus tinha realmente se desenvolvido muito lá.

Tinha recebido uma oportunidade única de melhorar como cavaleiro e não podia desperdiçá-la nem decepcionar os que acreditavam nele.

Nesta época, o Aquariano estava tão preocupado em ter um bom rendimento no treinamento que nem estava preocupado com o contato com o mundo externo. Todos os dias tinham muitas coisas para fazer e as horas passavam muito depressa.

Com toda esta agitação, não sobrava muito tempo para pensar nos amigos. A solidão era sua companheira e conselheira. Usava todo o tempo livre para aprimorar suas técnicas e conhecimentos.

Enquanto estava lá, passara por uma provação muito difícil, envolvendo um subordinado seu e enviara uma carta ao Mestre. Em resposta, o mesmo tinha avisado para que o francês não comentasse nada a respeito com os cavaleiros em suas cartas, para não desestimular os amigos.

Pela carta do Mestre, Kamus teve uma certeza: estava completamente só.

E foi com a sua determinação, que conseguiu superar os problemas e aprender com os erros. Venceu as dificuldades que se apresentaram e obedecendo às ordens do Mestre, demonstrou que era digno de confiança.

Estava utilizando muito bem o autocontrole, mas a solidão ainda o afetava. Tinha ficado muito triste quando soube que as cartas haviam sido devolvidas. Não havia restado nenhuma. Diferente das cartas que Kamus enviava ao Santuário, que eram públicas, as cartas que recebia eram particulares, mas nem o nome da pessoa que escreveu disseram. Apenas informaram que as cartas foram devolvidas tal qual como chegaram.

Lacradas vieram e lacradas retornaram.

Sabia que estava sob regras e devia obedecer. Este era o único consolo que tinha.

Tornou a pensar no amigo. Como o Escorpiniano tinha conseguido resistir tanto durante sua ausência ? Mesmo depois de tantos anos, o grego continuava a alimentar o sentimento por ele, sem esmorecer. Era admirável.

Kamus voltou à realidade e olhou no relógio. Milo estava demorando. No dia seguinte o Escorpiniano tinha que trabalhar, então não podia chegar tão tarde assim.

O Aquariano se abaixou e pegou a próxima carta lacrada. Estava endereçada a si e também tinha um carimbo de DEVOLVIDO. Rasgou o envelope, como fez com as duas cartas anteriores, mas diferente das demais, não havia nenhum outro envelope dentro. Era somente a carta e um bilhetinho do Mestre dos Desejos. Começou a ler.

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Recordações – Cartas: A terceira carta lacrada

"Santuário, xx de Maio de xxxx

Kamus,

Meu coração já despedaçado se partiu quando chegaram, intocadas, as duas primeiras cartas que te enviei. O que me animou um pouco mais foi a sua carta, dando-me esperanças de que a partir deste mês você passe a responder.

Acabei emagrecendo um pouco e tomei uma boa bronca da Ilana. Nem perdi tanto peso assim, mas você sabe como ela é mãezona. Ela pediu para mandar um beijo para você.

Durante o tempo em que você não respondeu, escrevi outras várias cartas além das duas primeiras, que voltaram, mas rasguei todas antes de enviar.

Por isso, me perdoe se não chegou a você os desejos de um feliz aniversário, mas estes votos estavam em uma das cartas que rasguei Tenho certeza que você vai compreender.

Não precisa ficar preocupado com a minha saúde. Já estou treinando todos os dias com o Aldebaran e estou conseguindo recuperando o meu peso. Agora também já estou dormindo melhor e as olheiras estão desaparecendo.

O Aioria tem se mostrado muito amigo e me chama para sair sempre que pode. Fazemos muitas coisas juntos. Uma pena você não estar aqui para aproveitar com a gente.

Esses dias fomos andar de kart. Foi uma galera e o Afrodite acabou ganhando a corrida. O Deba quase não coube no carrinho e teve que guiar sem capacete, pois não tinha nenhum que coubesse nele.Foi muito engraçado.O Aioria até sentou no chão para rir.

Há três semanas saí com o Deba e tomamos um porre que se você estivesse aqui, nem acreditaria. A minha sorte é que ele também encheu a lata, porque até hoje eu não sei se falei alguma besteira que não podia falar.

Aliás, nem sei como o Mestre não ficou sabendo deste porre depois de tanto barulho. Imagine o que teria acontecido se ele soubesse que nós bebemos... E o que fizemos, então ? Ficamos cantando um tempão bem embaixo da janela de Áries. Ainda bem que não tem nenhum cavaleiro lá ou com certeza teríamos recebido algum golpe mortal por fazer tanta algazarra.

Aqui estamos todos bem. Temos utilizado nossos poderes de vez em quando com um ou outro inimigo que tem aparecido, mas estamos dando conta do recado.

Obrigado por me desejar feliz aniversário. O Aioria fez uma festinha surpresa e apesar deu não estar com muita vontade de comemorar, foi até legal. Ganhei a jaqueta de couro que eu tanto queria.

Fico feliz em saber que você está aproveitando seu tempo por aí e que está se desenvolvendo. Uma pena as suas cartas serem tão curtas.

Eu pedi para o servo que toma conta do quadro de avisos e ele me deu as cartas que você mandou. Espero que você não ache ruim, mas se preferir posso te devolver quando você chegar.

Talvez se você estivesse aqui, tudo teria sido diferente. Talvez eu não teria ficado com tantas olheiras, nem perdido os dez quilos que perdi..."

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Kamus parou de ler. Tinha os olhos marejados.

- Dez quilos. – disse balançando a cabeça negativamente. – Mon Ange, quanto sofrimento você suportou por minha causa.

Pegou novamente a carta e continuou a ler.

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Recordações – Cartas: A terceira carta lacrada (continuação)

Talvez se você estivesse aqui, tudo teria sido diferente. Talvez eu não teria ficado com tantas olheiras, nem perdido os dez quilos que perdi.

Agora, até acho que a dor já me calejou por dentro, pois não sinto mais o coração apertar a todo instante, somente algumas vezes durante o dia.

Quando a dor é muito forte, eu releio as suas cartas e toco a sua letra para confortar meu coração.

Meu amigo, como eu gostaria de receber a sua resposta em breve. Às vezes até sonho acordado com este momento ou, melhor ainda, com o momento do seu retorno.

Fiquei muito contente pela felicitação especial que você deu para mim e mais feliz ainda em saber que você estará aqui no meu aniversário. Será o meu pedido. Como Mestre dos Desejos, quero que você esteja aqui. Inclusive envio o bilhetinho do pedido junto da carta, para que você se lembre e cumpra. Se a sua oferta for mais interessante, podemos negociar, mas desde que envolva a sua presença.

Como fiz da última vez, envio a primeira carta em um dia, a segunda no outro e esta no terceiro dia, pois sei que você é muito organizado e vai querer ler cada uma em ordem cronológica.

Fico esperando ansiosamente a sua resposta e a sua chegada.

Sinceramente,

Milo"

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A cada carta que lia, Kamus se sentia pior. Nunca achou que o grego fosse assim no seu interior. Sempre via o outro sorrindo, simpático, feliz. Jamais teria imaginado que o amigo passasse por todas estas coisas calado.

Apesar de se entristecer com o que estava lendo, a cada carta o francês admirava cada vez mais o outro. Sua fortaleza interior era impressionante, passando por tudo aquilo e conseguir se manter impassível, continuando a tratar os outros bem, sempre de bom humor, apesar da destruição que se alastrava em seu interior.

O Aquariano refletiu. Como Mestre do gelo e da água tinha que controlar os seus sentimentos, demonstrando apenas o que podia ser demonstrado em público. Sempre achou que Milo era irresponsável e falava as coisas sem pensar. Estava enganado. O outro tinha um autocontrole muito superior ao seu.

O francês achava que se fosse Ele quem tivesse passado por aquilo, não teria estrutura emocional para tentar conquistar o amigo mais uma vez, depois da ressurreição, como o Escorpiniano teve, com tanta paciência e resignação.

Não. Ele próprio com certeza teria sucumbido à dor e se isolado dos outros. Teria desistido e se fechado em sua concha. Tornaria-se ainda mais frio e amargo. Transformaria seu coração em uma pedra de gelo, dando ainda mais razão para o chamarem de homem de gelo.

Kamus admirou o amigo. Milo era um vencedor.

O francês ainda acariciava os cabelos do grego. Milo estava deitado no seu colo. Já estava bem mais controlado. Levantou-se do colo do outro, olhando para o novo amigo.

- Vá ao banheiro lavar o rosto, Mon Ange. Eu te espero aqui.

O Escorpiniano se levantou.

- Mon Ange ? - o outro ainda o chamou.

Milo virou-se para ver o que o outro queria.

- Se você decidir ir embora, eu vou entender. Foi um plaisir (prazer) te conhecer.

- Eu volto. Tudo já acabou mesmo. Não tenho mais o que fazer. – falou tristemente.

Ian levantou-se e se aproximou do grego.

- Então lave seu rostinho e volte aqui para conversar comigo. – falou dando um beijo de leve no rosto do novo amigo.

Milo sorriu. Se o SEU francês o quisesse, como esse, todos os seus problemas estariam resolvidos.

O grego foi até o banheiro e entrou. Levou um susto. Só tinha meninas lá dentro. Pediu desculpas e ia sair quando uma garota lhe impediu a passagem.

- Pode ficar. Os banheiros são unissex.

O Escorpiniano olhou a menina de cima a baixo. Era um travesti muito bonito.

O grego virou-se, foi em direção à pia e lavou o rosto. Parou em frente ao mictório e desabotoou a calça. Quando abriu o zíper, percebeu um silêncio constrangedor no lugar. Virou um pouco o rosto e viu que algumas das meninas olhavam para ele, mais propriamente para a região onde estava a sua mão. Subiu o zíper e entrou em um dos banheiros, sem olhar pra nenhuma delas.

Mesmo depois que saiu, seu rosto ainda queimava de vergonha.

Voltou à pia. Algumas meninas ainda olhavam, mas não havia mais silêncio.

Ficou um pouco incomodado por estar no mesmo banheiro que várias mulheres, pois além de não estar acostumado com isso, elas não paravam de falar, se maquiar e secar o grego.

Milo saiu do banheiro e olhou discretamente para a plaquinha para saber se era unissex mesmo. Na entrada tinha o símbolo de um homem e de uma mulher. Ficou satisfeito e voltou para onde o francês estava.

O amigo não estava mais no lugar que tinha deixado. O Escorpiniano ficou um tempo parado, esperando. Deu uma última olhada em volta e depois achou melhor ir embora. Perder dois franceses no dia era ruim para qualquer um.

Virou-se e deu de cara com um dos gêmeos.

- Olá.

- O que você quer ?

- Oh ! Você fala !

- E bato também. – respondeu estreitando os olhos.

- Calma gatinho. No stress. Não estou a fim de arrumar confusão.

- O que você quer ? – perguntou desafiador.

- Nada de mais, só ficar olhando para você.

- Não está escrito na minha testa EM EXPOSIÇÃO. – falou irritado.

- Nossa ! Que gato arisco. - falou uma voz por trás.

Milo virou o rosto para olhar. Era o outro gêmeo. Suspirou.

- Vocês não têm o que fazer, não ?

- Claro que temos. – o primeiro gêmeo falou – temos que ficar atrás de garotos bonitos, assim como você.

- Se não querer arrumar confusão, então fiquem longe. – disse em tom ameaçador.

- Ok. - falou o gêmeo andando à sua volta e parando nas suas costas. – Eu proponho uma trégua. – falou ao seu ouvido. – Vou trazer uma coisinha para a gente se divertir. – falou e saiu.

O outro gêmeo que continuava olhando para Milo, olhou por seu ombro e ficou agitado.

- Quando ele voltar, eu volto também. Tchau Amore. – mandou-lhe um beijo e saiu.

O Escorpiniano virou-se para ver do que fugia. Ian vinha com duas taças.

- Você gosta de lambrusco, Mon Ange ?

A pergunta o remeteu ao dia em que ele e Kamus passaram a primeira noite juntos. O brinde havia sido regado a lambrusco. Ficou um pouco triste com a lembrança, de saber que isso não se repetiria mais, mas se recompôs antes que tivesse que lavar o rosto novamente.

- Gosto. – respondeu ainda abatido.

- Então vamos brindar, Mon Ange.

- A quê ? – perguntou o cavaleiro.

- A uma nova vida que você vai ter a partir de hoje ! Salut (Saúde) – falou o francês animadamente.

- Salut. – Milo respondeu levantando a taça, sem muita convicção.

Enquanto tomava o líquido borbulhante, o Escorpiniano varreu o lugar com os olhos e viu um dos gêmeos conversando com uma moça muito bonita. Instantes depois a menina estava na sua frente.

- IAN !

- Kelly !

O francês e a garota se cumprimentaram.

- Olá. - a menina falou sedutoramente olhando o grego de cima a baixo – Eu sou a Kelly, e você ?

- Pode me chamar de Ange. – falou olhando de rabo de olho para o amigo francês.

- Ange ? Que nome bonito. Então Ange, você gosta de dançar ?

- Muito.

- Que tal irmos os três para a pista ? – o travesti falou puxando-os pela mão e levando-os para o outro lado da pista.

A música alta e a bebida na cabeça deixaram o grego mais relaxado e ele começou a dançar com os outros dois. Ao longe os dois gêmeos não tiravam o olho do Escorpiniano.

Rômulo abraçou Remo por trás, e começou a beijar-lhe o pescoço.

- Estou louco para fazer sanduíche hoje. – disse sensualmente em seu ouvido, ainda olhando para o grego.

O irmão olhou para o outro e lhe deu um selinho.

- Eu também.

Kamus já estava decidido e sabia muito bem o que queria. Admitiria que era mentira o que tinha falado. Não era apenas sexo. Era medo.

- Como fui tolo.

Refletiu um pouco e depois olhou para o lado. Abaixou-se novamente e pegou a próxima carta da caixa. Era outra carta enviada por ele mesmo. Iniciou a leitura.

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Recordações – Cartas: A terceira carta oficial

"Sibéria, xx de Setembro de xxxx

Amigos,

Fique sabendo que recebi algumas cartas de vocês, mas achei que não agiria corretamente se as lesse já que sob supervisão isso não me era permitido isso.

Por este motivo pedi para que devolvessem todas.

Surgiu uma nova oportunidade de um treino em uma área mais remota. Parto amanhã pela manhã e só retorno daqui a três meses.

O Mestre pediu que eu ficasse disponível para o retorno a partir de Janeiro, então o meu retorno agora está condicionado à solicitação dele.

Neste período aproveitarei para me desenvolver bastante e corresponder à oportunidade de crescimento que me foi oferecida.

Parabéns Aioria pelo aniversário. Parabéns também Shaka, já que é aniversariante do mês.

Kamus".

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O francês terminou de ler a carta enviada e levantou. Foi até a janela e a abriu. Ficou algum tempo olhando para as estrelas. A noite estava maravilhosa. A lua cheia banhava o Santuário com sua luz pálida.

Pensou no que tinha acabado de ler. Ele PRÓPRIO mandara devolver TODAS as cartas, INCLUSIVE as de Milo. Nem tinha se dado o trabalho de saber quem escrevera, pediu simplesmente para devolverem.

Algo lhe dizia que a resposta do porquê do grego não tocar no assunto da paixão que sentia encontraria na próxima leitura. Voltou a olhar para as estrelas. O Aquariano estava ganhando tempo e coragem. Estava com medo de ler a próxima carta.

Próximo capítulo - No próximo capítulo, os dois gêmeos colocam em ação o plano para ganharem o Escorpiniano. Kamus lê as cartas sem lacre e depois de uma revelação em uma delas, toma uma decisão definitiva.

BIBLIOGRAFIA

As doze faces do preconceito – Jaime Pinsky – Editora Contexto

O amor entre iguais – Humberto Rodrigues – Editora Mythos

De Safo a Sade momentos na história da sexualidade – Jan Baemmer – Editora Papirus

WEBGRAFIA (Mais informações sobre o assunto)

http:www.sexodrogas.psc.br/texto2.htm

http: fazer o capítulo tão pesado, mas quando decidi escrever Recordações, pensei em fazer uma fic com alguma utilidade social, mostrando o preconceito com que os homossexuais são tratados. Infelizmente algumas das histórias relatadas neste capítulo aconteceram de verdade. Uma delas, inclusive, com duas pessoas muito próximas minha. Fico muito triste com a discriminação contra os homossexuais e gostaria de poder dividir com vocês a indignação que eu sinto. Desculpem se ofendi alguém com a violência relatada. Não era esta a intenção.

Tem a Webgrafia referente ao assunto dos livros, mas é um pouco difícil de publicar no então vou tentar colocar nas características do autor. Se preferirem, podem mandar e-mail que eu repasso os sites.

Nota da autora – agradecimentos: Gostaria de agradecer todas as meninas que escreveram.

Anjo Setsuna - que ficou triste com a segunda carta do Milucho. Por favor, não me pendure no relógio ! Prometo que vou tentar (será que consigo ?) ser mais boazinha com os meninos. A Anjinho ainda se solidarizou e informou que também é contra o preconceito contra os homossexuais.

Pipe - obrigada por estar me acompanhando e ajudando. Se me permite dizer, estou com um sentimento de pupila para Mestra com você. Obrigada de montão.

Ilia-chan - que depois de tanto tempo voltou a escrever para dizer que está curiosa porque o Mi não falou nada para o Kâ quando ele voltou da Sibéria. Continue escrevendo Ilia, eu já estava com saudades.

Nica-Bel – que está gostando da fic e contou uma historinha muito bonitinha sobre os dois meninos a atrapalharem enquanto escrevia no PC. Se ela publicar a review, todos vão conhecer também. Estou esperando :)

Bjinhos a todos e até o próximo capítulo. Podem escrever para comentar, sugerir, reclamar ou criticar.

Nota da autora: contato.

Podem me contatar via e-mail no erika(ponto)patty(arroba)gmail(ponto)com ou via review neste site.