O LOBO E O FALCÃO

Capítulo 2


Yamazaki carregava a bandeja com duas tigelas cheias de um grosso caldo de costeletas e batatas, andando apressadamente. Já estava escuro. Demorara mais do que supunha e esperava que seu mestre não estivesse zangado. O cheiro da comida fazia sua boca encher de água, apertou o passo, querendo chegar logo a seu destino. Entrando no estábulo, seguiu direto para a única baia ocupada, porém quase deixou a travessa cair no chão quando, ao invés de encontrar seu senhor, deparou-se com uma bela mulher.

A desconhecida usava uma túnica rústica num tom verde claro, de mangas frouxas e gola canoa, que ia até os joelhos. Uma calça, um cinto e um par de botas, todos de couro marrom, completavam o visual. Os cabelos eram curtos, à altura do queixo, e o rosto exibia um sorriso melancólico, enquanto as mãos delicadas deslizavam, distraidamente, pela crina do cavalo.

Das sombras da baia, um rosnado chamou a atenção da moça e o aroma de comida a fez perceber que tinha companhia.

"Oh... Olá!", disse ela, jovialmente. Naquele momento, Yamazaki pode contemplar melhor o rosto e ver, graças à luz do candeeiro, que os olhos dela eram verdes, como as folhas novas numa manhã de primavera. "Posso ajudar-te?".

O elfo a fitava, embevecido. Nunca tinha visto uma humana tão linda.

"Ei? Estás bem?".

"Ah! Er... Olá...", a pequena criatura despertou de seu transe. "Desculpe incomodar, minha senhora, mas este servo gostaria se saber, se por algum acaso, viste um cavaleiro todo vestido de preto por aqui?".

Novamente, um rosnado se fez ouvir e Yamazaki estremeceu, amedrontado. Não percebeu o olhar que a jovem lançou para o canto da coxia.

"Hum... Procuras um cavaleiro de preto... Como ele se parece?", a moça perguntou, curiosa.

"Bem... Meu senhor é alto, forte... Tem cabelos castanhos... Um tanto rebeldes na opinião deste humilde servo... Os olhos são castanhos também... Ele tem uma expressão muito séria e as sobrancelhas grossas... E este cavalo é dele".

Um sorriso divertido surgiu no rosto da dama. "Diga-me, caro elfo, qual tua relação com este homem?".

Ao ser tratado de maneira tão educada, Yamazaki enrubesceu. Desde que o Duque Susano assumira o governo daquela região, anos atrás, as relações entre humanos e demais seres foi duramente estremecida. Susano não escondia de ninguém seu ódio e preconceito pelos seres encantados. O arrogante nobre considerava os humanos superiores e acabou incutindo essa idéia em seus súditos. Aquela bela jovem e seu mestre eram os primeiros humanos que o tratavam com consideração e gentileza, em muito, muito tempo.

"E então?". A voz da moça o tirou de seus pensamentos de novo.

"Este servo tem uma dívida de honra a cumprir, minha senhora. Servirei meu bondoso Mestre Li até poder retribuir o favor. É o código dos elfos".

A estranha ergueu as sobrancelhas. "Quer dizer então que acompanharás este cavaleiro na viagem?".

"Sim, minha senhora".

"Qual é tua graça, elfo?".

"Yamazaki, minha senhora".

"É um prazer conhecer-te, Yamazaki. Eu sou Sakura", ela disse, sorridente. "Por que não te sentas? Essa bandeja parece estar bem pesada".

Concordando com a cabeça, o elfo entrou na larga baia e depositou a travessa no chão, para depois sentar-se. Estava imaginando como dividiria a comida com aquela dama tão gentil, quando ouviu, pela terceira vez, um rosnado forte e das sombras um enorme lobo negro surgiu. A primeira reação de Yamazaki foi fugir, mas não podia deixar a senhorita ali, sozinha com aquela terrível besta.

"Monte no cavalo e fuja, minha senhora...", disse com a voz mais corajosa que conseguiu arrumar.

Sakura olhou do elfo para o lobo e seu sorriso sumiu. "Não te preocupes, Yamazaki. Ele não te fará mal algum", assegurou.

Com os olhos arregalados, o elfo viu a moça se aproximar e se agachar diante do animal selvagem. As mãos pequenas que brincavam com a crina de Wei, momentos atrás, agora afagavam afetuosamente o lobo, que emitiu um grunhido diferente, que podia ser entendido muito bem como um rosnado de satisfação. Yamazaki notou que a fera apreciava a atenção que a moça lhe dispunha. Ela murmurava, docemente, palavras que o elfo não podia ouvir, mas que certamente acalmaram o animal. Viu o lobo praticamente deitar-se, como um grande cão, deixando-se acariciar por Sakura. Acomodando-se melhor, a jovem se voltou para Yamazaki.

"Pronto... Ele está mais calmo...", disse ela, soltando um longo suspiro. "Sei que Ookami não irá machucar-te, Yamazaki, mas é melhor não arriscar. Fique sempre onde eu possa ver-te".

"Sim, minha senhora...", o elfo respondeu, ainda trêmulo. "Este servo fará o que mandas".

"Então não precisas temer. Que tal comermos agora?", sugeriu Sakura, mudando de assunto.

Yamazaki olhou para as duas tigelas. "Eis aqui, minha senhora. Tenha a parte deste servo".

"E tu? O que vais comer?", diante do silêncio da criatura, Sakura continuou. "Come teu jantar, Yamazaki. E dê-me o outro prato".

"Mas e o meu senhor?".

"Creio que ele mandou-te comprar esta refeição para mim", ela confessou.

"Oh...", Yamazaki não entendia mais nada. "Conheces meu mestre?".

"Sim... E creio que seguirei viagem com vocês".

"Isto é bom, minha senhora!".

Os dois comeram em silêncio. O olhar de Sakura, vez ou outra, voltava-se para o lobo ao seu lado. E quando isso acontecia, era impossível ocultar a tristeza daqueles lindos orbes verdes. Terminou de comer e entregou a tigela à Yamazaki que foi levar os utensílios usados de volta à estalagem. Sozinha outra vez na baia, Sakura deitou-se sobre a grossa capa preta estendida sobre o feno, ao lado do lobo.

"Jamais me acostumarei...", murmurou antes de dormir.

Quando voltou à coxia, Yamazaki encontrou a dama dormindo, marcas de lágrimas nas bochechas delicadas e, postado ao lado dela, o lobo. Um tremor percorreu todo o corpo do elfo quando seus olhos se encontraram com o olhar selvagem do animal. Rosnando, a fera mostrou seus dentes afiados, num claro sinal para que o elfo não se aproximasse.

"Er... Bichinho bonitinho...", balbuciou Yamazaki, mas o rosnado ficou ainda mais forte. Resolvido a não testar mais sua sorte, o elfo saiu da baia, andando para trás, devagar, sem desgrudar a vista do animal. "Acho que vou dormir lá fora... hehehe...", riu nervosamente. E assim que alcançou a porta, saiu correndo, subindo na primeira árvore que encontrou.

* * *

O dia seguinte chegou, trazendo junto uma terrível dor nas costas do pobre elfo. Dormir num galho não era nada confortável. Desceu de sua 'cama' e foi procurar a bonita dama na estrebaria. Lá chegando, encontrou seu mestre, arrumando os arreios no cavalo, o falcão no ombro.

"Mas... Onde...? Cadê...?", assombrou-se Yamazaki. Na noite anterior, Li havia desaparecido e agora, ali estava ele, como se nada houvesse acontecido.

"Bom dia, Yamazaki", disse o guerreiro sem parar seus afazeres. "Pronto para partir?".

"Mas... Mas... Onde ela está?", atônito, o elfo esqueceu-se das formalidades. Se a moça tivesse saído, com certeza teria escutado. Passara a noite praticamente em claro no galho daquela árvore. E para piorar, o olhar estreito e totalmente desconfiado de Li causava-lhe tremores.

"Ela, quem?", perguntou o homem em um tom de voz baixo e perigoso.

"A-a da-dama que apareceu aqui ontem-tem...", gaguejou Yamazaki. "Quando voltei... O senhor havia sumido... Ela estava aqui com Wei e um lobo... Ela comeu seu jantar!".

"Lady Sakura", foi tudo o que Li respondeu.

"O quê?".

"Deves mostrar respeito para com ela. Chame-a de Lady Sakura", continuou o guerreiro de preto. "Ela estará conosco todas as noites. Quero que cuides para que nada lhe falte, entendeste?".

"Mas, senhor... Como ela...? Não entendo...".

"Não há nada para entender. Apenas cuida para que Lady Sakura passe bem as noites. Darei-te dinheiro. Compra sempre comida ou o que ela precisar".

"Está bem, meu senhor... Este servo fará--", o elfo respondia, quando foi interrompido por Li.

"E Yamazaki?".

"Sim?".

"Para com essa coisa de 'este servo', sim? Estás me irritando sobremaneira".

"Sim, meu senhor...".

"Agora, vá buscar nosso café. Temos uma longa jornada até Shintoen".

"Sim, meu senhor!", Yamazaki retirou-se rapidamente.

Depois de comerem, seguiram viagem para a vila de Shintoen. Já era possível sentir o frio das montanhas eternamente cobertas de neve daquela parte do reino. Enrolado na capa, Li olhava a vista à sua frente. A última notícia que ouvira sobre Reed Clow era que, desde a proclamação de Susano como governador do norte, ele se escondera nas gélidas montanhas. Depois de anos de busca, finalmente o guerreiro estava prestes a alcançar seu objetivo.

* ~ * ~ *

Continua...

N/A: Ah! Estou muito empolgada com esta história! ^_^ E espero que estejam gostando dela também. Sei que os capítulos não estão tão longos quanto os de Luz, mas é que quero fazer algo mais leve e dinâmico... E se me conheço bem, creio que, conforme a história for seguindo, eles aumentarão de tamanho com certeza.

Respondendo as perguntas: Yamazaki está parecendo um elfo doméstico mesmo, né? Hehehehe Essa era a intenção! Mas aos poucos, com a convivência com os novos 'senhores' e com a chegada de mais um membro no grupo, ele vai começar a se soltar. No filme, tem-se a impressão que o feitiço foi lançado há vários anos... Eu não sei dizer quanto tempo... Vamos supor que tenha sido há mais de cinco anos, ok? O nome que Sakura deu ao lobo é Ookami, que significa, pelo que li, lobo em japonês. Alguém me corrija se eu estiver errada. E o nome do falcão nem precisa dizer, né?

Quero dedicar este capítulo à Saki_Kinomoto, que faz aniversário nesta Segunda-feira. Parabéns, querida! Obrigada pelo e-mail e pelas palavras gentis. Ah, e valeu também pelo toque do 'cinto'. Eu já tinha lido em algum lugar que aquela faixa dos quimonos se chama OBI, mas não lembrei deste detalhe enquanto estava escrevendo a história... -_-' Mas agora não esqueço mais! ^_^ Valeu mesmo! E feliz aniversário!

Um beijo a todos e por favor, não esqueçam de deixar um comentário!!!

Andréa Meiouh

Em 15/05/03