O LOBO E O FALCÃO

Capítulo 3


Conforme se aproximavam da vila de Shintoen, o frio aumentava mais. Li observava com o canto dos olhos Yamazaki tentar se aquecer inutilmente enroscando-se em sua capa preta. Os dentes do elfo batiam sem parar e a ponta das orelhas e os lábios estavam empalidecendo. 'Tenho que comprar roupas de inverno para ele', pensou preocupado. 'E para ela também...'.

Entraram na rua principal e Li soltou o falcão, vendo-o voar no céu nublado. Guiou o cavalo até uma pequena casa, onde havia uma placa escrita "Srta. Maki - Modista". Descendo de Wei e puxando um quase congelado Yamazaki junto, dirigiu-se para lá. Uma mulher de longos cabelos negros e sorriso fácil o cumprimentou.

"Bom dia, meu senhor! Em que posso ser útil?".

"Quero roupas de frio para o meu amigo", disse Li, indicando Yamazaki com o dedo.

"Ora! Mas ele é um elfo!".

"E qual o problema?".

Li não suportava o preconceito das pessoas em relação ao que era diferente. Que mal havia em Yamazaki ser um elfo? Ele era um ser vivo como qualquer um. Merecia ser tratado com respeito.

"Ah... Er... Bem, senhor... Eu não tenho roupas do tamanho dele...", respondeu a modista.

"Não me diga que não tens roupas para crianças...", retrucou o guerreiro.

"Não que-que-quero ro-roupas de cri-cri-criança, meu se-se-se-senhor...", disse Yamazaki, ainda trêmulo, apesar de estar diante de uma lareira.

"Então vais congelar, Yamazaki. Pois iremos seguir para as montanhas. Lá o frio é muito maior do que aqui".

Suspirando, o elfo admitiu que seu mestre estava correto. "Vou parecer ridículo...".

"Ridículo será ver tu congelado". E virando-se para a modista, ordenou. "Arranje-nos algumas blusas de mangas compridas, agasalhos, gorros, luvas e meias".

Diante do tom imperativo, Maki não viu como recusar. "Sim, meu senhor".

Uma hora depois, os dois saíram de lá com dois novos alforjes. Além das roupas para Yamazaki, que depois de um chocolate quente e de um par de luvas havia parado de tremer, Li também comprou roupas para si mesmo e para Lady Sakura, instruindo o elfo que as entregasse assim que a moça surgisse à noite.

* * *

A taberna tinha uma aparência desleixada, mas o cheiro da comida impregnava o ar, deixando Li e Yamazaki totalmente cientes de seus estômagos vazios. Sentaram-se numa mesa e quando o taberneiro se aproximou, pediram duas refeições e uma garrafa de hidromel, uma bebida doce, feita à base de vinho, água e mel. Comeram num silêncio incômodo, pois estavam conscientes dos olhares atravessados que recebiam.

"Elfos não são bem vindos à nossa vila, forasteiro", disse um homem grande, chegando perto da mesa.

"Por que não?", Li perguntou friamente, como se falasse sobre o tempo.

"Não queremos nos misturar com esta corja", respondeu o troglodita, segurando o cabo da espada.

"Vós sois um bando de idiotas...", disse o guerreiro, depois de beber um longe gole de seu hidromel.

"O que disse?".

"Disse que sois um bando de idiotas", repetiu Li. "Aceitais as idéias imbecis de Susano sem ao menos questionar. Que mal há em respeitar elfos e outros seres?".

"Ninguém ofende nosso governador e sai vivo para contar a história, forasteiro". Um grupo de soldados se aproximou, todos com suas espadas desembainhadas.

"Por caridade!", gritou o taberneiro. "Briguem lá fora! Não estraguem meu estabelecimento!".

Li se levantou e se retirou. "Vamos, Yamazaki. Não percamos nosso tempo com este bando de tolos". O elfo seguiu atrás do mestre sem nem pensar duas vezes.

Os soldados, entretanto, tinham outras idéias. Partiram atrás de Li e o encurralaram, formando um círculo em torno dele. Estreitando os olhos, o guerreiro fitou os homens. Seis contra um. Aquilo seria uma luta injusta.

"Vai até Wei e espere-me lá", ordenou para Yamazaki. "Não demorarei aqui".

A partida rápida do elfo foi o sinal que homens precisaram para avançar. Soltando fortes brados, investiram contra Li. Tirando sua espada da bainha, o guerreiro prontamente se pôs em posição de luta. Podia sentir o sangue correr mais rápido em suas veias. Seu espírito de lutador aflorava, fazendo seus instintos ficaram alertas.

Facilmente bloqueou o homem que vinha pela esquerda, desarmando-o com um simples golpe e usando-o como apoio, deu um salto, acertando um chute no adversário que se aproximava. Menos dois. Trocou golpes de espada com dois soldados, mas por simples diversão. Eles estavam fora de forma e muito lentos. Com um soco certeiro no queixo derrubou um e uma cotovelada no estômago derrubou o outro. Faltavam apenas dois.

Em volta daquele embate, uma pequena multidão se formou. As pessoas se perguntavam quem era aquele guerreiro que conseguia dar cabo dos seis melhores soldados da cidade sem nenhuma dificuldade, sem ao menos transpirar. Yamazaki, encolhido entre as pernas de Wei, rezava para não ser visto, pois só isso aumentaria a confusão.

Um grito estridente cruzou os céus e, surpreendendo a todos, um falcão surgiu e, com um vôo rasante, atacou um dos homens, bicando-lhe com força a cabeça.

"Sai, bicho!", gritou o soldado, tentando acertar-lhe com a espada.

Aquilo aumentou a fúria de Li. Partindo para cima do homem que tentava agredir seu pássaro, golpeou-o diversas vezes, antes de derrubá-lo inconsciente no chão, junto com os outros quatro provocadores. O último deles, talvez o mais covarde, largou a espada no chão e, tremendo dos pés à cabeça, se afastou correndo.

Li olhou em volta. Os moradores da vila olhavam-no, cheios de espanto e medo. Suspirando, embainhou a espada e estendeu o braço, onde YingFa pousou. Abrindo caminho pela multidão, caminhou até Wei. Montou, ajudou Yamazaki a subir também e depois partiu, desejando nunca mais botar os pés ali.

"Meu senhor?".

A vozinha trêmula de Yamazaki chamou sua atenção. "O quê?".

"Onde aprendeste a lutar daquela forma?".

As mãos de Li crisparam-se nas rédeas e ele forçou-se a relaxar. Era uma pessoa muito reservada. Não gostava de contar sua história à ninguém. A única que sabia de tudo, a quem contara espontaneamente sobre sua vida, estava tão longe de seu alcance naquele momento quanto o sol.

"Servi no exército do Duque Susano há muito tempo atrás, Yamazaki", respondeu, depois de respirar fundo. "Antes dele tornar-se esse governador déspota que segrega as pessoas...".

Balançando a cabeça, Yamazaki ouvia tudo atento. "E não trabalhas mais para o Duque, senhor?".

"Não... Se um dia eu me encontrar com aquele monstro, o matarei".

A voz gélida do mestre causou arrepios no elfo. Tinha certeza que Li cumpriria sua palavra. Pela primeira vez na vida, teve pena de Susano. Não queria estar na pele dele de jeito nenhum.

* * *

Continuaram sua jornada, saindo da vila de Shintoen. O próximo destino era Hakugan. Somente quando deixou o vilarejo, foi que Li se lembrou que não teve oportunidades de perguntar por Reed Clow. Bem, teria mais chances no caminho, pensou, cansado.

Infelizmente, não tiveram a mesma sorte da noite passada e não encontraram nenhum lugar para o pernoite. Quando o sol foi baixando lentamente no horizonte, estavam cruzando uma floresta. Parando numa clareira, Li ordenou a Yamazaki que pegasse gravetos para acender uma fogueira, enquanto preparava o acampamento.

Seus gestos apressados refletiam sua preocupação. O anoitecer avançava e precisava deixar tudo pronto. Separando as roupas de frio que comprara para Sakura, estendeu a capa debaixo de uma árvore, perto do buraco que preparara para fazer o fogo. O relincho de Wei chamou sua atenção e logo ouviu barulho de passos. Pessoas se aproximavam. Praguejando, pensou desesperadamente no que fazer. De repente, uma pequena luz atravessou o acampamento, seguida por um grupo de garotos.

"Pega ela! Pega ela!", gritavam, carregando redes e tochas.

A luzinha voou desenfreadamente até acertar o peito de Li, que num arco-reflexo, estendeu as mãos. Uma pequena fada caiu em suas palmas. Os meninos pararam, vendo que aquele estranho homem havia capturado sua presa. O maior deles deu dois passos à frente.

"Me dá isso, senhor", pediu. "Tivemos um maior trabalho para caçá-la até aqui".

Naquele momento, Yamazaki apareceu do outro lado da clareira, causando uma comoção entre as crianças. Voltando o olhar do homem para o elfo e outra vez para o homem, o menino pediu de novo.

"Me dá, moço!".

"Não", foi a resposta de Li. "Vós não tendes o direito de caçar essas criaturas. Aposto que brincareis com ela até matá-la".

"Ela é nossa!", soou uma vozinha fininha no grupo. "Dá logo!".

"Não!", Li rosnou, protegendo a fada contra o peito. "Partam!". Os meninos olharam amedrontados para o desconhecido "Agora!", ele exclamou, fazendo as crianças correrem, gritando assustadas.

Calado, Yamazaki observava tudo. Viu o mestre cair de joelhos no chão, como se experimentasse uma grande dor.

"Mestre Li?".

"Afasta-te, Yamazaki", grunhiu o homem, liberando a criatura iluminada que tinha nas mãos. "Vá para as árvores e leve-a contigo".

YingFa começou a voar em círculos ao redor de Li, emitindo altos ginchos, causando dor nas orelhas sensíveis de Yamazaki. Mas o elfo não conseguiu sair do lugar. A clareira ia escurecendo à medida que a noite avançava. A única luz que tinham era aquela vinda da pequena fada, que agora se encontrava no ombro do elfo.

"O que está acontecendo?", ela perguntou, assombrada.

"E-eu não se-sei...", respondeu Yamazaki, sem tirar os olhos de seu senhor.

Com um urro, Li bateu com os punhos no chão. Seu corpo foi lentamente se transformando, enchendo-se de pêlos negros. O rosto se alongava, as belas feições masculinas dando lugar a um focinho e orelhas de lobo. Os minutos foram passando em agonia. O elfo e a fada acompanhavam aquela surpreendente metamorfose, de olhos arregalados.

Um baque surdo não muito longe de onde Li estava chamou a atenção da dupla. YingFa havia caído no chão. Perceberam que o falcão também começara a se transformar. O corpo pequeno e coberto de penas foi alongando-se, ganhando a forma de um corpo humano. Os olhos amarelos foram mudando de cor, passando a ser verdes.

"Oh, minha nossa!", exclamou a fada. "São eles!".

"Eles quem?", disparou Yamazaki, assustado demais para pensar.

"Escute aqui, seu idiota? Em que mundo vives?", alfinetou o ser iluminado, colocando as pequeninas mãos nos quadris. "Nunca ouviste falar deles não?".

"Deles quem, raios?".

Revirando os olhos, a fada voltou-se para o casal, que se transformava. "Conta uma história, que há muitos anos, a filha do Rei Kinomoto foi prometida ao Duque Susano, mas ela apaixonou-se pelo capitão da guarda. O Duque descobriu e, como vingança, mandou um poderoso mago enfeitiçá-los".

Yamazaki foi lembrando-se da história. "Sempre juntos, mas eternamente separados... Pensei que fosse uma lenda!".

"Mas não é, como podemos ver...".

"Mestre Li e Lady Sakura...".

"Tu os conheces?", a fada perguntou, curiosa.

"Sim...", disse o elfo. "Estou viajando com eles... mas nunca imaginei... Se bem que isso responde a tudo".

Um gemido fraco chamou a atenção da dupla. Sakura sentava-se com dificuldade. "Onde estou?". Olhando em volta, avistou Yamazaki e a fada. Eles tinham visto a transformação. Sentiu o rosto esquentar de vergonha. Logo um focinho úmido e frio tocou-lhe o braço.

"Ookami...", ela murmurou, enquanto uma lágrima corria por sua bochecha. "Meu Syaoran...". Abraçando-se ao animal, Sakura ficou ali, derramando seu pesar nos pêlos negros macios.

"Lady Sakura...", o elfo se aproximou relutante. "Estás bem?".

A dama ergueu o rosto e olhou-o tristemente, balançando a cabeça. "Desculpem-me".

"Não há o que se desculpar, senhora", disse a fada, voando até ficar defronte de Sakura. "Nossa! Como és linda!", exclamou com as mãos no rosto, depois de olhar bem para a mulher.

Esquecendo sua sina por alguns momentos, a moça estendeu um dedo e tocou a criatura brilhante. "Quem és tu?", perguntou, curiosa.

"Eu sou Tomoyo", disse a fada, com um grande sorriso.

Envolvida por um brilho lilás, ela tinha cabelos longos e escuros, presos de uma maneira diferente: em cada lado da cabeça, havia um coque, um odango, que terminava com um grosso rabo que cavalo, preso por fitas; a parte de trás estava solta, caindo pelas costas, e uma franja caía-lhe sobre os olhos violeta. Sua roupa parecia ser formada por pétalas de flores, a saia tinha duas camadas de pano e chegava até o joelho. A parte de cima do vestido e as mangas eram apertadas, permitindo que a fadinha pudesse mexer bem os braços. Nas costas nuas, asinhas delicadas davam-lhe um ar etéreo.

"Uma fada...", Sakura admirou-se. Nunca tinha visto uma pessoalmente. "Tu és muito bonita, Tomoyo", elogiou.

"Oh, minha senhora! Obrigada! Mas não sou tão bela quanto tu... Os comentários sobre tua beleza, Lady Sakura, são verdadeiros, mas não te fazem jus! És encantadora!".

Sakura riu diante da esfuziante fadinha. Aquele gesto quebrou o clima tenso que enchera a clareira depois da metamorfose do casal. Yamazaki lembrou-se das ordens de seu mestre e finalmente as compreendeu. Tinha o dever agora de cuidar de Lady Sakura, fazer de tudo para que ela se sentisse confortável e bem. Rapidamente, acendeu a fogueira e, depois avistou um pacote caído no chão. Reconhecendo-o de imediato, entregou-o à dama.

"O que é isso?", ela perguntou.

"Um presente do meu mestre, senhora".

Abrindo o pacote, Sakura encontrou uma túnica de lã azul e um grosso casaco. Haviam também um gorro, luvas e meias. "Ele mandou me entregar isso?".

"Sim...", Yamazaki desviou o olhar. Li não mandara entregar aquilo exatamente, mas depois de tudo que presenciara, o elfo sabia para quem eram aquelas roupas.

"Obrigada, Yamazaki", disse ela, dando um beijinho na bochecha do elfo, sem se importar com os rosnados do lobo.

O pequeno grupo sentou-se à beira da fogueira. Ookami não tardou a fugir para a floresta, seu espírito selvagem falando mais alto. Enquanto comiam pão e queijo, Sakura contou à Tomoyo e Yamazaki o que realmente acontecera com ela e Syaoran e porque eles estavam viajando. Reed Clow fora o bruxo que lançara o feitiço neles. Tinham a esperança que o homem pudesse reverter o sortilégio, por isso iam para o norte.

"Então estais à procura de Reed Clow...", ponderou a fada. "Eu também estou...".

"É mesmo? E o que queres com ele?".

A fada corou diante da pergunta de Sakura. "Quero pedir um favor... Quero que ele me faça um feitiço...".

"Um feitiço? Por quê?".

Vendo a fada ficar cada vez mais constrangida, Yamazaki imaginou que segredo ela guardaria. Por que ela estava procurando o bruxo?

"Ah... É um motivo bobo", respondeu Tomoyo. "O vosso é muito mais importante...".

Se a fada também procurava Clow, significava que estavam mesmo no rumo certo. "Então, Clow está mesmo aqui no norte?".

"Foi o que eu ouvi dizer... Parece que ele está vivendo com um discípulo nas montanhas", disse apontando com o dedinho o referido lugar.

'Falta pouco...', pensou Sakura com esperança. 'Falta muito pouco... E então ficaremos juntos, meu querido Syaoran'.

* ~ * ~ *

Continua...

N/A: Yea! Mais um capítulo pronto! Êba!

Sei que não existe fada na história, mas um fic de SCC sem a Tomoyo não fica completo. Até que ela forma uma fadinha bonitinha, né? Pra quem quiser imaginar Tomoyo como fada, imagine-a com aquela fantasia amarelinha do episódio da Carta Tempo ou então como a Primera, a fadinha de Guerreiras Mágicas de Rayearth. Neste endereço () tem uma imagem da Primera com o Mokona. Trocando a cor dos olhos e dos cabelos, é desse jeito mesmo que imagino a Tomoyo.

Quero mandar um beijo a todos que estão acompanhando o fic. Obrigada de coração pelos comentários!

Andréa Meiouh

Em 24/05/03