O LOBO E O FALCÃO
Capítulo 9
Um mundo de som e cores. Era assim que estava o castelo de Nimah, totalmente adverso de suas costumeiras condições. Os empregados haviam se esmerado, preparando a festa para o patrão e seus convidados, que assistiam às apresentações e danças. Susano tinha um sorriso de satisfação nos lábios e estava sentado ao lado do Rei Kinomoto e da comitiva real, formada pelo Príncipe herdeiro, Touya, sua esposa, Kaho, e Kerberus, o guardião da família.
"Está tudo muito bonito, Sr. Duque, parabéns", cumprimentou o soberano.
"Muito obrigado, Majestade. Fizemos tudo isto para vos agradar", respondeu o nobre, cheio de afetação.
Ao lado do pai, Touya ouvia tudo e revirava os olhos, tentando conter-se. Odiava aquele duque pomposo e realmente não entendia como Fujitaka conseguia suportá-lo. Ia replicar o comentário do aniversariante, mas uma mão pousou em seu braço. Virou-se e fitou os olhos castanhos do pai. O rei o olhava como se pedindo que nada dissesse. Era engraçado como Fujitaka sempre conhecia suas reações... Concordou com um aceno quase imperceptível de cabeça. Não seria bom começar uma confusão ali. Não gostava dos suseranos arrogantes que serviam seu pai, mas isso não era motivo para perder a diplomacia.
Um grupo de dançarinas entrou no salão, vestindo roupas coloridas e diáfanas, agitando seus lenços de um lado para o outro. Executavam movimentos com os quadris, que eram enfeitados com correntinhas cheias de pinguentes circulares, e as que não tinham véus, batiam palmas ao ritmo da música. Kero, entretido com os doces, balançava a cabeça e a cauda, acompanhando a dança. Sentada entre o marido e o guardião, Kaho apenas observava tudo com uma expressão neutra. Passara a festa inteira daquele jeito.
"Kaho?", Touya a chamou. Não precisava ser sensitivo para perceber que algo afetava a esposa. "Está tudo bem?".
Com olhos vagos e distantes, a princesa respondeu "A hora está chegando...".
Touya e Kero entreolharam-se interrrogativamente. O que diabos ela estava falando?
* * *
Enquanto isso, na rede de esgotos do castelo, Yamazaki guiava seus amigos até a masmorra. Assim como diversos castelos, a residência do Duque Susano tinha um verdadeiro labirinto de grandes corredores, por onde passava a água da chuva, e os dejetos vindos das latrinas. O grupo andava por uma calçada, evitando tocar nas paredes ou pisar na água.
"Tens certeza que é por aqui?", perguntou Sakura, que seguia logo atrás do elfo.
"Sim, minha senhora. Já fugi algumas vezes desta prisão", respondeu o outro, falando baixo.
"Nem vou perguntar o que fizeste para vir parar aqui...", alfinetou Tomoyo, fazendo o elfo trincar os dentes de raiva.
Respirando fundo e acalmando-se, Yamazaki voltou a atenção para o caminho e, quando chegaram a uma espaçosa galeria, pediu que parassem. O corredor ali se dividia em vários caminhos, diversas opções. Olhou para os lados antes de seguir para a direita. A única iluminação do ambiente eram a luz natural de Tomoyo e uma pequena tocha que Eriol trazia nas mãos.
"É por aqui", apontou para um outro corredor. Andaram vários metros, e aos poucos as paredes iam se estreitando. Yamazaky os guiou até o final do caminho, onde chegaram a uma nova galeria. Nesta, havia uma escadaria, onde havia uma grade no topo. Era uma das saídas da masmorra. "Venham!", chamou o elfo.
Passaram pelo portão de ferro e tomaram um outro corredor, mais estreito que o primeiro, e cujas paredes eram cheias de aberturas circulares de alguns centímetros de diâmetro. Um homem normal não seria capaz de passar, porém um elfo passaria sem nenhum esforço. Sakura sentia suas botas afundarem em algo mole e pegajoso, fechou os olhos tentando não imaginar o que era. O odor fétido que vinha do local fez com que todos protegessem o nariz. Até mesmo Spinel, que ia no ombro de Eriol, estava enjoado e enojado com o cheiro. A princesa agradeceu aos céus pelo fato de Ookami estar do lado de fora.
"Chegamos", anunciou Yamazaki.
O plano era entrar no castelo pela masmorra, alcançar os portões e, após o nascer do sol, abri-los para que Li entrasse e desmascarasse Susano na frente do rei. O elfo dissera que conhecia um jeito de entrar, mas ninguém imaginara que fosse pelas latrinas das celas.
"Não, não e não!", Tomoyo disse, cruzando os braços e balançando a cabeça vigorosamente. "Não entro aí nem morta!".
"Não vai dar pra trás agora, vai?", foi a vez de Yamazaki alfinetar a fada.
"Não... Mas pelo que me consta... Alguém esqueceu de mencionar certos detalhes do plano!", exclamou ela, fuzilando-o com o olhar. "Mentiste para nós!".
"E de que jeito pensaste que entraríamos aqui, hum? Que haveria um túnel cheio de flores e borboletas? Isto é um esgoto, minha cara... Todo os podres da nobreza e da peble do castelo vem pra cá!".
"Era assim que conseguias escapar, Yamazaki?", perguntou Sakura tentando aliviar o clima. "Entravas na latrina e escorregavas até aqui?".
"Sim, minha senhora... Eles nunca repararam que o buraco da fossa era largo o suficiente para que eu passasse...".
"Ah! Talvez eles soubessem sim!", interrompeu Tomoyo, amarga. "Talvez eles apenas não se preocupavam com um elfo ladrão de galinha como tu!".
"Chega, Tomoyo! Já basta", falou Eriol, com firmeza. "Vamos continuar com o planejado. Procure a fossa que estiver mais seca e suba".
Assentindo com a cabeça, a fada fez o que o mago mandou. O restante do grupo voltou até a saída, na galeria que passaram instantes atrás, onde guardas, vez ou outra, faziam 'desova' de prisioneiros. Esconderam-se atrás de uma grande pilastra
"Só nos resta esperar agora".
Voando mais rápido que podia, Tomoyo logo alcançou uma cela vazia. Agradeceu o conselho de Eriol, que a mandou procurar uma fossa seca, sinal que estava sem uso e que provavelmente não haveria prisioneiros por ali. Saindo pela portinhola, localizou dois guardas. Usando um pó especial dado pelo mago, fez os homens dormirem. Avistou o objeto que procurava preso na cintura de um deles: o molho de chaves. Pegou-o e quase caiu no chão. Era muito pesado.
Reunindo todas as forças, pegou as chaves e voou, praticamente a um palmo do chão, resmungando interiormente contra o elfo e sua idéia maravilhosa. 'Yamazaki me paga...'.
Parou subitamente quando chegou próximo de um salão iluminado. O restante dos guardas estavam reunidos ali, junto com os carrascos, jantando. Prendeu a respiração e se escondeu atrás de uma coluna, nas sombras. Para que lado ficava a saída para o esgoto mesmo? 'O que faço agora?', perguntou a si mesma, em pânico, encolhendo-se ainda mais atrás do pilar.
* * *
Por causa da presença do Rei Kinomoto e de muitos nobres no castelo, a segurança no local tinha sido redobrada. Dezenas de soldades foram destacados para realizar rondas por toda a construção, inclusive na prisão.
"Odeio este lugar", retrucou um jovem, um novato que acabara de se juntar ao exército de Susano. "Como fede...".
"Acostume-te com isso, rapaz...", respondeu seu parceiro gorducho, cujo uniforme esmagava-lhe a pança. Apesar do lugar imundo em que estava, ia saboreando uma coxa de leitão. "Fazer ronda é assim mesmo", continuou de boca cheia.
"Não sei como consegues comer nesta imundice...". O garoto fez uma careta de asco. "Minha barriga embrulha só de estar aqui". Eles caminhavam lentamente pela parte final da masmorra, onde esta se encontrava com a grande galeria do esgoto. Abriram e passaram pelo portão, alcançando a escada. No final desta, havia algumas colunas e a vala onde passava a água.
O gordo riu, cuspindo pedaços de carne e saliva. "És mesmo um fracote! O que fazes aqui então? Este serviço é para homens, não para maricas que mal acabaram de sair dos cueiros...".
Mordendo o lábio inferior para não soltar uma imprecação, o jovem continuou seu passo, mas parou ao ouvir um barulho. Desembainhou sua espada e começou a andar lentamente, olhando para os lados com atenção. O parceiro, observando a mudança de atitude do rapaz, não tardou a brincar.
"Ei, maricas! O que foi? Ouviste alguma coisa? Um ratinho? Ou tua mãe chamando?". Ao invés de responder, o outro estancou no lugar. O que ele não imaginava era que, ao dobrar no final da escada, daria de encontro com a mulher mais bonita que já vira.
"Olá!", cumprimentou ela, com voz melódica, sorrindo docemente. "Estou perdida... Será que algum de vós podeis me ajudar?".
Os dois homens ficaram boquiabertos diante da visão que ela proporcionava. A face encantadora reluzia com o sorriso que ela tinha nos lábios, os cabelos curtos emolduravam o belo rosto, cujos olhos verdes brilhavam sedutoramente. O que aquela deusa estava fazendo ali?, perguntaram-se aturdidos demais para pensar numa resposta coerente.
"Senhores... Não fiqueis aí parados... Aproximai-vos!", ela estendeu a mão, com graciosidade.
Totalmente abobalhados e fascinados por aquela beleza, os soldados se achegaram à dama, somente para ter um estranho pó jogado nos olhos. Logo caíam no chão, desacordados.
"Bons sonhos...". Sakura suspirou e se afastou. Não gostava e nunca gostara de usar sua beleza quase irreal para atrair homens, mas aquilo era por uma justa causa.
Eriol, Yamazaki e Spinel saíram do esconderijo. "Bobocas", retrucou o elfo, chutando o gordo, fazendo o uniforme do soldado arrebentar.
"Vamos", disse o mago, depois de pegar a espada do guarda mais novo. "Temos que descobrir porque Tomoyo está demorando tanto...". Ele começou a subir as escadas, na direção oposta em que os soldados vieram. Em silêncio, chegaram ao grande salão onde uma parte da tropa estava reunida, comendo. Entenderam o motivo do atraso da fada.
"Spinel, procure-a", ordenou Eriol ao gato preto. Este saiu sorrateiramente, misturando-se à algazarra que os homens faziam. Ninguém o viu. Logo ele retornava com Tomoyo na garupa.
"E agora?", perguntou a fada.
"Para cima... Venham por aqui", murmurou Yamazaki, conduzindo-os pelo lado escuro até o corredor que dava para os cômodos superiores do castelo. Seguiram para um lance de escadas, prontos para qualquer eventualidade que surgisse no caminho.
"Está tão quieto", sussurrou Tomoyo. "Não gosto nada disso".
Sakura ia responder quando foram surpreendidos por um grupo de soldados que vinha descendo a escada, em sentido contrário. Eram muitos para se usar o pó do sono.
"Quem sois vós?", perguntou um guarda. "O que fazeis aqui?".
"São intrusos!", exclamou um segundo. "Prendam-nos!".
Então eles avançaram. Transformando seu pingente em báculo, Eriol lançou os homens longe, escada abaixo, e os desacordou, entretanto o alerta já tinha sido dado. Podiam ouvir barulho de passos apressados vindos na direção deles. Outros guardas se aproximavam, atraídos pelo som e pelos gritos dos companheiros.
"Para onde?", perguntou, olhando em volta.
"Por aqui", chamou Yamazaki. Terminaram de subir as escadas e alcançaram um corredor finamente decorado, diferente dos que estavam a minutos atrás na masmorra. Sakura então tomou a dianteira do grupo. Passara vários meses naquele castelo e o conhecia bem.
Iam correndo, desarmando e desacordando os soldados que encontravam no caminho graças ao báculo mágico de Eriol. Sakura os levou até duas grandes e pesadas portas de carvalho. Usando sua magia, o feiticeiro as escancarou. O que quer que estivesse acontecendo no interior daquele cômodo parou abruptamente no momento em as portas se arreganharam. Dezenas de pares de olhos se voltaram e fitaram-nos com surpresa,
Tinham ido parar no salão principal.
* * *
Alheio a entrada de Sakura e seus amigos no castelo, Susano conversava com outros nobres, aproveitando a noite. Bebia e comia, satisfeito, sua festa estava sendo um sucesso. Nem sequer imaginava que a filha do rei e sua ex-noiva estivesse invadindo seus domínios. O barulho do salão, somado ao som da música, impediam que pudesse ouvir a comoção que se dava nos corredores. Porém, todos voltaram as cabeças para a porta quando esta se abriu de súbito. Parado, na entrada, estava um estranho grupo: um homem de vestes largas e escuras, segurando um tipo de báculo dourado, um elfo, uma fada, um gato e uma mulher, de cabelos curtos e trajando roupas masculinas. E foi esta última quem mais chamou a atenção de algumas pessoas no recinto.
"Por Deus...", Touya se levantou, sem poder acreditar.
"Sakura", o nome da filha escapoliu dos lábios de Fujitaka. Apesar do aviso de Kaho, estava chocado com a aparição de sua menina.
Recobrada do choque inicial, a jovem princesa fitou o pai e o irmão com os olhos cheios de saudades. Há quanto tempo não os via? Há quanto tempo não ia para casa? Sentia falta das conversas agradavéis com o pai no jardim e as discussões tolas com Touya... Avistou também Kerberus e Kaho, que tinha uma estranha expressão no rosto.
Igualmente chocado, Susano encarava Sakura de olhos arregalados. Depois de noites e noites sonhando em tê-la novamente em sua vida, eis que ela surge no meio de seu salão, em sua festa de aniversário. O desejo e a raiva acumuladas em seu coração explodiram de forma dolorosa e seu grito ressoou pelo salão, assustando a todos.
"Prendam estes intrusos!".
"Não!", exclamou a dama, protegendo com o corpo Yamazaki e Tomoyo. Ao seu lado, Eriol erguia o báculo de maneira defensiva.
"Sakura!", Touya sacou a espada e correu para junto da irmã, acompanhando de Kero, este esquecido completamente dos doces e da comida.
"Susano!", Fujitaka se ergueu, sua voz normalmente calma soava dura e cheia de indignação. "Como ousas fazer mal a um membro da família real? À minha própria filha?".
Exclamações foram ouvidas por todo o salão e os guardas, que avançavam, pararam de imediato, permitindo ao príncipe e ao tigre alado alcançarem a princesa. Os dois irmãos se abraçaram. Se Touya sentiu o estranho cheiro de Sakura, nada comentou, não era nem o lugar e nem o momento. Caminhando por entre seus súditos, o rei também se aproximou da filha e a tomou nos braços.
"Espero que tenhas uma boa explicação para isso, Duque", disse o soberano, voltando a olhar o nobre. Não havia mais nada de pacífico em Kinomoto naquele instante.
Os olhos frios de Susano se estreitaram, encarando Sakura com fúria e fazendo a moça estremecer. Dentro do duque, todos os sentimentos guardados ao longo daqueles anos: o ressentimento, o amor não correspondido, a frustração, o ódio, iam crescendo e borbulhando, atingindo níveis assustadores. Não se importava mais com os outros convidados, nem ao menos com o rei. Tudo o que importava era ter Sakura e realizar, em fim, seu plano de vingança. Sem ligar para as pessoas que o fitavam, aturdidas, se aproximou de Fujitaka com a espada em riste. Com movimentos apressados puxou um cordão de dentro da gola da roupa, cujo pingente era um pequeno cristal acinzentado. Apertou-o na mão com força. Sakura tombou ao chão, ofegante e gemendo.
'O amuleto!', Eriol constatou. Abaixou-se para ajudar a amiga. Sakura sentia uma dor intensa, inexplicável. Mordia os lábios para não gemer alto e tinha os olhos cheios de lágrimas.
"Sakura!", exclamaram pai e filho ao mesmo tempo, vendo a jovem naquele estado. "O que fizeste com ela, seu cretino?!", disparou Touya, apontando sua espada para o peito do Duque. "Vais te arrepender por isso!".
Com uma risada de deboche, Susano girou o pulso, movimentando sua arma com uma velocidade impressionante e lançando a espada do príncipe para longe. No instante seguinte, enconstava a ponta da lâmina afiada no pescoço do futuro rei. "Quem vai se arrepender aqui?", escarneceu.
"Touya... Não... Pare...", gemeu Sakura, pondo-se de pé com o auxílio de Eriol e Fujitaka. Ao lado deles, Kerberus rosnava, mostrando os dentes afiados.
"Se não queres que seu irmãozinho morra, minha querida princesa, aconselho-te a me acompanhar", disse o nobre, sem desviar os olhos de Touya.
Por que? Por que aquilo tudo estava acontecendo? Sakura sentia a dor amenizar, mas era atacada agora pela angústia e tristeza. Abaixou a cabeça, respirando fundo para acalmar as batidas do coração. Avaliou as opções que tinha: salvar a vida do irmão e entregar-se nas mãos sujas do Duque ou ver Touya perecer diante de seus olhos, pois sabia que Susano não hesitaria em matá-lo, mesmo seu alvo sendo herdeiro do trono e filho do rei.
"Abaixa a espada", pediu ela, se decidindo. "Irei convosco".
"Sakura, não!".
"Princesa!".
"Boa menina...", o sorriso cruel de Susano causou calafrios nela. Viu que ele estendeu a mão livre. Aproximou-se, sem olhar para trás. Não queria ver a cara desapontada do pai e dos amigos. Quando chegou no alcance dele, foi agarrada pelo braço.
"Não vos atrevais a me seguir... Matarei-a no mesmo instante!". E arrastando Sakura, Susano saiu do salão e desaparecendo no corredor.
"Droga!", praguejou Touya. "O que aquela idiota da Sakura foi fazer?!".
Eriol olhava para lugar que a amiga e o Duque saíram. Como contar a Li o que acontecera? O guerreiro teria um verdadeiro ataque. Sentiu que decepcionara não apenas Syaoran e Sakura, como também seu mestre.
"Eriol...", a voz de Tomoyo chamou sua atenção. "O que faremos agora?".
"Eu não sei...", respondeu o bruxo com sinceridade.
"Quem sois vós?", perguntou Fujitaka, dirigindo-se ao grupo. "O que fazíeis com minha filha?".
"É uma longa história, Majestade...", respondeu Eriol, curvando-se diante do rei.
"Touya, organiza tudo por aqui junto com Kaho e Kerberus. Eu e este jovem temos muito o que conversar".
O príncipe concordou com a cabeça. Olhou para os presentes no recinto. Todos fitavam-nos com curiosidade, espanto... Podia ouvir murmúrios, sussurros... Falavam deles, com certeza. Sentiu a raiva arder no peito. Queria gritar, socar alguém, mas um toque delicado no ombro o fez voltar-se e se acalmar um pouco. Sua doce esposa o fitava com os grandes olhos dourados.
"Touya.... Tranqüiliza-te, por favor...", ela disse, sabendo quanto o marido estava irritado.
"Como ficar tranqüilo, Kaho? Aquele patife está com Sakura!".
"Sei disso, querido... Mas precisamos nos recompor e planejar as buscas... Ele ainda está no castelo. Encontraremos Sakura, não te preocupes". Apesar das palavras de consolo, os olhos de Kaho mostravam tristeza e apreensão. Touya a abraçou, numa tentativa de confortar a ambos.
"Vamos... Quanto antes terminarmos aqui, mais rápido sairemos em busca de minha irmã".
* * *
Atravessando o corredor, Susano levava Sakura em direção à masmorra. Os únicos que poderiam detê-los jaziam no chão, vítimas do encanto de Eriol. A moça bem que tentava atrasar o passo, oferecendo alguma resistência, mas não era suficiente para parar o Duque, maior e mais forte que ela.
"Meu senhor... Por favor... Soltai-me...", implorou ela mais uma vez, tentando afrouxar o aperto da mão dele em seu braço.
"Soltar-te? Ah, cara princesa, não me faças rir...", rebateu ele, sarcástico. "Achas mesmo que te soltaria, depois de tudo o que me fizeste?".
Engolindo em seco, Sakura tentou esconder o medo que sentia. "O que farás comigo? Para onde estás me levando?".
"Para um lugar onde ninguém possa nos interromper", respondeu Susano parando no topo da escadaria e pegando uma tocha da parede. Desceram alguns degraus e pararam outra vez. O Duque tocou num entalhe que havia na parede, e esta abriu-se como por encanto, dando acesso a um novo lance de escadas. Entraram e a passagem secreta se fechou.
"Vamos!", ele a puxou com força, fazendo-a morder os lábios para não gemer de dor.
Depois de uma descida que durou uma eternidade para Sakura, chegaram a um corredor. Susano acendeu a primeira tocha e as demais se acenderam no instante seguinte, para o espanto da dama. O Duque riu com a expressão do rosto dela. "Aquele teu amigo não é o único que sabe alguns truques...", disse ele, maldoso. "A propósito, onde o encontraste? Aquela coisa que ele segurava me pareceu um tanto familiar...". Sakura nada respondeu, não queria comprometer o novo amigo, dizendo que Eriol era discípulo de Clow.
Alcançaram um aposento sem janelas, uma espécie de câmara, onde a princesa pôde observar diversos aparelhos e utensílios, muitos relacionados a magia. Acompanhando o olhar dela, o nobre resolveu matar-lhe a curiosidade.
"Andei ocupado durante estes anos... Procurei magos e estudei um pouco de feitiçaria... Pude aperfeiçoar este amuleto que Clow me deixou...".
"Foi assim que me causaste aquela dor...", deduziu Sakura.
"Não foi apenas em ti, minha querida...".
Os olhos dela se arregalaram quando entendeu a mensagem. Syaoran também havia sofrido o mesmo castigo. "Por que...? Por que?".
Agarrando-a pelos ombros, Susano a sacudiu com força. "Ainda perguntas por que?! Tudo é tua culpa! Por que não pudeste me amar? Por que te entregaste àquele traidor?!". O rompante do homem terminou com ele largando-a, como se tivesse queimado as mãos. "Tu és a responsável por isto".
Cambaleante, Sakura deu um passo pra trás. "Não... Não sou culpada... Por que não pudeste aceitar?".
"Aceitar uma traição?!", exclamou ele com fúria, gritando no rosto dela. "Aceitar a desonra e a humilhação de ver minha noiva, minha futura esposa na cama com outro?! Nunca! Tudo o que eu queria era amor! Por que não retribuiste?".
"Não podes mandar nos meus sentimentos...".
A resposta dela aumentou o furor do Duque. Erguendo o braço, deu-lhe uma forte bofetada, lançando-a no chão. "Vadia... Podes ter sangue real, mas és tão vadia quanto as mulheres dos prostíbulos...". Chutou-a na barriga. "Tenho vontade de matar-te por causa da vergonha que me fizeste passar!". Chutou-a mais uma vez. Gemendo, Sakura encolheu-se, tentando proteger-se dos golpes. Não controlava mais as lágrimas.
Quando cansou de espancá-la, Susano se afastou, passando as mãos no cabelo grisalho. Sentia-se estranhamente satisfeito, parte de sua ira havia se aplacado. Olhou para o corpo trêmulo da mulher que um dia amara, encolhido no chão. Pegou-a e levou-a até um canto do salão, onde havia umas grandes almofadas. Largou-a ali. Depois, acionando uma alavanca, fez uma grande jaula descer sobre ela, prendendo-a ali.
Sem forças, Sakura apenas fitava sua prisão ir descendo lentamente. Voltou-se para o Duque. Ele tinha um estranho brilho nos olhos. "O que pretendes fazer?", perguntou, arrumando forças para falar e se mexer um pouco. "Por que me prendes?".
"Não posso me dar ao luxo de deixar-te fugir... O amanhecer se aproxima... Não sou idiota, sei o que acontece", ele respondeu. Andando para a mesa, tirou a espada da bainha e começou a fitar a lâmina brilhante. "Também sei que aquele traidor está por perto. Ele virá atrás de ti... E quando chegar, estarei pronto... Para matá-lo. Então tu serás minha!".
Pondo a mão no peito, Sakura temeu pela vida de Syaoran. O lobo, realmente, não estava longe e iria para o castelo tão logo se transformasse novamente em humano. E então cairia numa terrível armadilha.
"Agora, fique quietinha aí como uma boa menina...".
"Aonde vais?".
"Resolver umas coisas... Preparar a chegada para o nosso querido Capitão Li".
Sakura ficou sozinha, com o coração apertado. Tudo dera errado. Todo o plano cuidadosamente elaborado por ela e os amigos fora por água abaixo. Deixou o corpo relaxar e chorou, chorou copiosamente até dormir. Sonhou com antigas lembranças. Sua mãe aparecia-lhe, sorridente e bela, mas com um olhar melancólico. Apesar de ela ter morrido quando Sakura era apenas uma criança, a figura de Nadeshiko surgia nítida, como se nunca tivesse se afastado.
"Minha menina... Minha Sakura... tudo terminará bem...".
A imagem alterou e Sakura viu a si mesma, com cerca de 11 anos de idade, no pátio do castelo, brincando com Kero, Touya estava junto a eles. Era uma menina doce, inocente e alegre. Tivera uma infância feliz, mesmo com a ausência da figura materna. Avistou Fujitaka se aproximar sorrindo da pequena briga que se dava entre os filhos. Abraçou-se, sentindo saudades daquela época; sentindo saudades do pai, do irmão e do guardião.
Outra mudança na imagem à sua volta e agora ela estava numa outra lembrança. Encontrava-se no grande hall do castelo de Nimah. Avistou-se, tímida e calada, enquanto os empregados davam-lhe as boas vindas. E, assim como a Sakura da lembrança, percebeu de imediato quando Syaoran se aproximou. No momento em que o jovem capitão se aproximara e se curvara, apresentando-se e colocando-se à seu serviço, o coração de menina de Sakura se entregou à paixão. Viu a troca intensa de olhares entre ela e o amado, perguntando-se como ninguém havia notado nada.
Aquela memória se desfez e outra apareceu. Viu-se no jardim, aproveitando o sol da tarde. Susano havia partido para resolver alguns problemas num vilarejo e ela estava sozinha, entregue aos seus conflitos emocionais. Tentara não amar o capitão, mas a cada dia que passava, mais se sentia atraída por aqueles incríveis olhos cor de âmbar. Havia um magnetismo em Li, algo que a impedia de desviar o olhar quando estavam próximos. Sabia que era errado sentir esses tipos de coisa por um homem, ainda mais estando noiva de outro. Mas não conseguia controlar o coração e os sentimentos. Passos chamaram a atenção das duas Sakuras e, voltando as cabeças, ambas avistaram Syaoran se aproximando. Ele sentou ao lado da Sakura da lembrança e começaram a conversar. A Sakura real não precisava ouvir para saber o que conversavam. Lembrava-se bem das palavras trocadas, do tom emocionado da voz grave de Li. Ele havia se declarado a ela. A paixão e o destino deles foi selado com um beijo apaixonado.
Uma nova lembrança surgiu em torno dela. Estava na clareira da floresta próxima ao castelo e, metros adiante, estava o chalé onde ela e Syaoran consumaram sua paixão. Entrou na pequena casa, e tocou levemente os móveis. Li havia providenciado aquele local para que pudessem se encontrar longe dos olhos dos demais empregados de Susano. Passavam as tardes ali, esquecidos do mundo, perdidos em seu ninho de amor. A porta se abriu e ela viu a si mesma e a Syaoran, entrando sorrindo, abraçados, como faziam desde que passaram a se ver ali. Mas, de alguma maneira, Sakura sabia que aquela cena não era apenas mais um de seus encontros fortuitos. De súbito, uma sombra cruzou a janela. Viu, estática o rosto de Susano se contorcer de ódio diante do que se passava no interior da cabana. No instante seguinte, ouviu seu próprio grito e o corpo da 'outra' Sakura se transformar em falcão. Viu todo o desespero de Syaoran, tentando entender o que acontecia.
Acordou banhada de suor. Tentou sentar-se, mas o corpo injuriado e dolorido não permitiu. Respirou fundo, abraçando-se. As lembranças queimavam-lhe a mente. Se soubesse o que o futuro lhe reservara, teria sucumbido ao coração? Teria se entregue ao amor de Syaoran se soubesse onde isso os levaria? Novas lágrimas surgiram em seus olhos.
"Syaoran... Não venha... Por favor, não venha...".
* ~ * ~ *
Continua...
N/A: Oi, pessoal! Aqui está o capítulo nove, fresquinho! Graças aos deuses da informática e a um cooler novo, meu computador ficou bom! Eu já estava pra infartar... Tenho uma relação de amor e ódio com meu pc... Ruim com ele, pior sem ele! Bem... Agora que está tudo muito bom, poderei voltar a escrever meus fics!
Espero que tenham gostado deste capítulo, confesso que fiquei meio travada no começo, mas depois a coisa destravou. Destravou tanto que acho que acabei me empolgando um pouco! ^_^ Espero mesmo que tenham gostado.
Quero dedicar este capítulo ao meu amigo, Felipe S. Kai, que teve a paciência de revisar este capítulo pra mim e me dar opinões importantes para a continuação. Vou aproveitar o momento e fazer propaganda: leiam o fic dele, Chrono. É muito bom mesmo, é ótimo!! Quero mandar um beijo à Kath, à Diana, à Naki, ao Marcelo, à Graça e à Rô, amigos virtuais que fazem meus momentos na net muito mais alegres. E agradecer a todos, todos sem exceção que mandaram mensagens para mim no dia do meu aniversário, vocês fizeram o meu dia! ^_^ e também a todos que estão acompanhando a estória! Obrigada!
Um grande beijo e até o próximo capítulo,
Andréa Meiouh
Em 18/07/2003
